Educador Paulo Freire.
Publicado originalmente no site [brasil.elpais.com], em 22 de outubro de 2019
A prisão de Paulo Freire, “subversor dos menos favorecidos”,
na ditadura
Educador brasileiro foi preso por mais de 70 dias durante o
regime militar sob a justificativa de doutrinação marxista. Leia trecho do
livro 'O Educador', de Sérgio Haddad
Por Sérgio Haddad
Quando os militares tomaram o poder em 1º de abril de 1964,
depondo o então presidente João Goulart, Paulo Freire vivia com a família em
Brasília, a serviço do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Envolvido com o
trabalho de formação de professores em Goiânia, era sua assistente, Carmita
Andrade, quem o mantinha informado sobre a intensa movimentação política na
capital. Apenas dois dias antes, Carmita havia sugerido que ele voltasse a
Brasília de imediato, porque as tensões pareciam se agravar decisivamente.
Retornado às pressas, Paulo se surpreendeu ao procurar Júlio Furquim Sambaqui e
ser convidado a acompanhar a leitura de uma conferência que o ministro daria
dali a alguns dias. O chefe queria sua opinião. Incrédulo com a ingenuidade de
Sambaqui, Paulo o alertou para o que lhe parecia um quadro de grave
instabilidade institucional — e para a improbabilidade de ocorrer qualquer nova
atividade do governo que representavam. No dia seguinte, os militares se
instalariam no poder.
O ambiente político tornou-se tenso, com notícias
desencontradas de todos os lados: haveria resistência da população? O Governo
deposto conseguiria reagir ao golpe de Estado? Diante do clima de insegurança e
da incerteza sobre seu futuro no ministério, Paulo pediu à mãe que levasse os
filhos dele para Recife, onde mantinha uma casa. Providências tomadas, ele e a
esposa, Elza, permaneceram em Brasília, levando uma vida reservada na casa de
amigos. Queriam ser notados o mínimo possível.
Com lançamento previsto para 13 de maio, o Programa Nacional
de Alfabetização seria extinto em 14 de abril, treze dias depois do golpe
militar. O novo Governo aproveitou a ocasião para fazer duras acusações ao
trabalho que Paulo e sua equipe vinham desenvolvendo; apontaram o material
didático produzido como contrário aos interesses da nação e acusaram seus
autores de querer implantar o comunismo no país. Acabava ali o sonho de lançar
60.870 Círculos de Cultura para alfabetizar 1,8 milhão de pessoas ainda em
1964, 8,9% do total na faixa de quinze a 45 anos que não sabiam ler nem
escrever. A preocupação maior de Paulo era agora com o imponderável, um futuro
incerto e perigoso para ele e sua família diante de tais acusações e do clima
de perseguição política que se instalara.
Ao extinguir o Programa Nacional de Alfabetização, os
militares respondiam às pressões de parcela conservadora da sociedade brasileira
que atacava e desqualificava o trabalho de Paulo Freire. As denúncias passaram
a ser instrumento de luta dos partidos políticos que apoiavam o golpe contra as
siglas ligadas ao ex-presidente João Goulart. Paulo viu sua situação se tornar
cada vez mais complicada.
Condenação do método
Na Câmara dos Deputados, políticos conservadores se
revezavam na condenação permanente de seu método de alfabetização. Em 18 de
abril, o deputado Emival Caiado, do partido conservador União Democrática
Nacional (UDN), denunciou Mauro Borges, então governador de Goiás e aliado do
ex-presidente Jango, de implantar o comunismo no Estado: “O método comunizante
do sr. Paulo Freire teve entusiástica acolhida do Governo goiano. O sr. Mauro
Borges deu total e completa cobertura a órgãos estudantis dominados por
comunistas”. Caiado concluiu, aos brados: “Não creio que em nenhum outro Estado
o comunismo tenha se infiltrado tanto!”.
Intensamente debatido como uma questão social das mais
relevantes, o analfabetismo exigia dos militares uma resposta rápida, algo
concreto que pudesse ser contraposto ao que vinha sendo feito nos anos
anteriores. Em 15 de maio, os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo
repercutiram a proposta apresentada pela vereadora paulistana Dulce Salles Cunha
Braga ao novo ministro da educação, Flávio Suplicy de Lacerda. Figura ativa na
articulação do golpe, a advogada e professora afirmava poder erradicar o
analfabetismo no Brasil em apenas oito meses. Denominado “Alfabetização para
massas”, seu método teria se mostrado bastante eficiente ao ser aplicado a
partir de veiculação na rádio Record, no estado de São Paulo. Dulce propunha,
com base nessa experiência, uma cartilha a ser distribuída pelo MEC, com apoio
radiofônico do pro- grama A voz do Brasil, a fim de alcançar todo o território
nacional. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, uma nova versão da cartilha já
estaria pronta para divulgação imediata, com leituras retiradas do “ideário
democrático, numa espécie de réplica ao modelo comunizante do método Paulo
Freire”. O ministro Suplicy de Lacerda respondeu que analisaria a proposta com
atenção e que logo se manifestaria.
Ao mesmo tempo, também o debate sobre o voto do analfabeto
voltou à tona nos meses que se seguiram ao golpe militar. Em um país que historicamente
proibia o voto aos iletrados, o Programa Nacional de Alfabetização representava
uma ameaça aos redutos políticos cativos nas eleições seguintes. Em Sergipe,
por exemplo, o Programa permitiria acrescer 80 mil eleitores aos 90 mil já
existentes. Da mesma forma, em Recife, a iniciativa praticamente dobraria a
quantidade de eleitores, elevando de 800 mil para 1,3 milhão o número de
títulos. Projetados no cenário nacional, os exemplos demonstravam como o método
do professor Paulo Freire, que propunha alfabetizar um iletrado em 40 horas,
poderia alterar a correlação das forças políticas.
Como o programa de alfabetização, a questão do voto dos
analfabetos também estava em debate e exigia uma resposta do novo governo. O
marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro militar a assumir a
presidência depois do golpe, encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta de
mudança tímida, que estendia o voto aos iletrados apenas nas eleições
municipais — e de maneira facultativa. Ainda assim, a proposição foi derrotada,
em parte pelo pouco empenho da bancada governista, fazendo crer que a medida
era mero jogo de cena.
Intensiva propaganda comunista
Em sua edição de 30 de junho de 1964, o jornal O Estado de
S. Paulo publicou um artigo de Antônio Bernardes de Oliveira, médico, professor
universitário e membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo,
intitulado “O voto do analfabeto, um desserviço à Nação”. O autor argumentava
que tal possibilidade “só pode interessar ao demagogo e ao oportunista sem escrúpulos;
não corresponde a nenhuma aspiração nacional; anula e avilta o voto
consciencioso e de qualidade; compromete o regime; afasta as elites legítimas;
reduz o papel dos partidos; convida ao suborno; nivela por baixo”. Sobre o
método de Paulo Freire, em sua opinião adotado pelo governo deposto apenas para
ampliar o colégio eleitoral, Bernardes de Oliveira dizia não passar de “uma
manobra para alcançar dois escopos, uma intensiva propaganda comunista e a
eclosão de uma invencível força eleitoral de índole facciosa onde a demagogia
teria as portas abertas”.
Em Brasília, Paulo assistia a tudo com discrição. Elza já
havia voltado para Recife para ficar junto aos cinco filhos do casal —
Madalena, a mais velha, com dezoito anos, seguida por Cristina, Fátima, Joaquim
e o caçula Lutgardes, então com cinco anos. Através de um intermediário com
contatos entre os militares, Paulo sondou o então chefe do Gabinete Militar, o
general Ernesto Geisel, e o general Antônio Carlos Muricy, comandante da 7ª
Região Militar, se haveria algum impedimento para que deixasse Brasília e se
juntasse à família. Quando soube que não, embarcou imediatamente para
Pernambuco.
Chegando em Recife, tratou de retomar suas atividades
acadêmicas e seus escritos, que havia deixado de lado com a mudança para
Brasília. Paulo conquistara alta visibilidade a partir de 1963, quando encampou
uma experiência de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, trabalho
desenvolvido com a equipe do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade
de Recife. Ali, 300 jovens e adultos participaram de seu processo de
alfabetização em 40 horas. Amplamente propagandeados pelo governo estadual, os
bons resultados levaram João Goulart a se deslocar de Brasília até o interior
potiguar para participar do encerramento do curso. Com o sucesso e a
repercussão da iniciativa, Paulo foi convidado pelo Ministério da Educação e
Cultura a estender o trabalho para todo o país. Aceitou a proposta e se mudou
com a família para Brasília. Em junho de 1963, começou a trabalhar na formação
de futuros coordenadores dos núcleos de alfabetização, que seriam implantados
em praticamente todas as capitais. Só no estado da Guanabara, cerca de 6 mil
pessoas se inscreveram naquela ampla mobilização nacional pela educação, que
seria interrompida pelos militares em abril do ano seguinte.
De volta a Recife, Paulo se apresentou voluntariamente à
Secretaria de Segurança Pública e constatou que não havia qua quer ordem de
prisão contra ele. Foi informado, no entanto, de que poderia ser chamado para
depor a qualquer momento.
Intimidação durante a ditadura
O clima de intimidação era geral. As universidades e demais
instituições de ensino público seriam afetadas diretamente pelos Atos
Institucionais, que davam poder aos militares a partir de comissões de
investigação instauradas para averiguar opositores, cassar mandatos políticos,
destituir de cargos e retirar o direito ao voto. Com o objetivo declarado de
voltar a integrar os alunos “na sua tarefa precípua de estudar e os professores
na sua missão de ensinar”, as medidas estabeleciam um rígido controle sobre o
universo estudantil com a pretensão de coibir os crescentes protestos e
manifestações.
Atendendo às orientações impostas pelo Ato Institucional
nº1, de 9 de abril de 1964, João Alfredo, reitor da Universidade de Recife, em
que Paulo trabalhava, convocou uma reunião do Conselho Universitário para o dia
27 de abril. Decidiu-se instalar uma comissão de professores para apurar
responsabilidades de docentes e servidores na “prática de crime contra o Estado
e seu patrimônio, a ordem política e social, ou atos de guerra revolucionária”,
conforme rezava a portaria. Essa co- missão deveria abrir rapidamente
sindicâncias e analisar documentos a fim de elaborar relatórios para o reitor.
Paulo foi interrogado sobre sua atuação na universidade. A
comissão solicitou que os esclarecimentos necessários à sua defesa lhe fossem
passados por escrito. Os dias seguintes foram dedicados a produzir um documento
descritivo de seu trabalho, em resposta às dezoito perguntas encaminhadas a
ele. Paulo aproveitou para tecer considerações pessoais, indignado com a
evolução dos fatos na instituição de ensino e no país. O documento seria
entregue no dia 25 de maio. Ao esclarecer que atuava no SEC desde sua
implantação, em 1962, Paulo chamava a atenção para o fato de ser amigo do
reitor, a quem tinha o dever de lealdade: “Aprendi com meu pai e com minha
Igreja que a lealdade, a coragem e a honradez, a retidão não podem ser
desprezadas pelo homem, sob pena de se desprezar a si mesmo, e deixar de já ser
homem”. O documento respondia às perguntas enumerando as atividades realizadas
nos dois anos anteriores. Paulo mencionou que havia sido convidado pelo então
ministro Paulo de Tarso para coordenar um programa nacional de educação para
adultos, e não simplesmente de alfabetização. E que entendia o convite como
honroso não só para ele, mas também para a universidade. Por isso havia exigido
que o trabalho ocorresse por meio do SEC, em convênio do ministério com a
Universidade de Recife, na qual continuaria com suas pesquisas regulares.
Atividades consideradas subversivas
Em relação às críticas da imprensa recifense sobre suas
atividades, tachadas de subversivas ou propagadoras de ideias contrárias ao
regime democrático, respondeu que não só tinha conhecimento do que se dizia na
cidade “mas também em todo o Brasil e que a leitura dessas críticas lhe servira
para fazer um verdadeiro curso de como se pode, por ignorância, má-fé, ou
outras coisas quaisquer, distorcer o pensamento dos homens”. Em contrapartida,
destacou a valorização e o apoio ao trabalho do SEC em artigos e depoimentos de
nomes como o do sociólogo Gilberto Freyre e do professor Walter Costa Porto.
Paulo fez referência também à Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos
Deputados, em Brasília, onde estivera para dar uma conferência que, seguida de
debate, gerou muitos elogios ao seu trabalho. Todas essas pessoas, observou,
não eram comunistas nem estavam interessadas em comunizar o país — e justamente
por isso apoiavam o que estava sendo feito. Escreveu que não podia deixar de
rir quando o acusavam de “lavador de cérebros”, pois a essência da sua teoria
pedagógica era alérgica a regimes totalitários: “Nego, pois, a vera- cidade das
acusações assacadas contra o SEC, anteontem, on- tem e hoje. Nego que o SEC […]
exerça atividades subversivas ou contrárias ao regime democrático. Horroriza-me
o assanhamento destas acusações”.
Em suas considerações finais, Paulo faria uma defesa
intransigente da alfabetização de adultos. Escreveria: "Há até quem diga
que não adianta alfabetizarmos esses 36 milhões de brasileiros porque talvez
'papagaio velho não aprende a ler'. Como se estas legiões de analfabetos não
constituíssem, para nós, seus irmãos letrados, uma prova de nosso desamor. De
nossa incúria. De nosso fracasso. Nunca pretendemos ser os donos da
alfabetização nacional. Há analfabetos demais. […] Se tudo o que dissemos em
nossa defesa pessoal e na defesa do SEC a ninguém convencer, paciência.
Salvem-se, porém, os analfabetos".
Entregue o documento, Paulo ficou à espera do parecer da
comissão e de como o Ministério da Educação e Cultura reagiria frente ao
declarado. Cerca de três semanas depois, em 16 de junho, dia do aniversário de
Elza, estava em casa trabalhando na reescrita para publicação de sua tese
Educação e atualidade brasileira quando dois agentes bateram à sua porta e
pediram para que os acompanhasse. Sem imaginar o que viria, vestiu-se, tomou um
café, despediu-se da esposa e seguiu com os policiais. No trajeto, passaram
pela Secretaria de Segurança Pública, pela polícia e de lá seguiram para o
quartel do 4º Exército. Apresentado ao capitão de plantão, foi fichado e detido
— sem nenhuma peça de roupa ou objeto de higiene pessoal, nenhum livro para
acompanhá-lo. Paulo não tinha imaginado que de fato pudesse ser preso.
Duas semanas depois, em 1º de julho, prestou novo depoimento
sobre suas “atividades subversivas antes e durante o movimento de 1º de abril,
assim como suas ligações com pessoas e grupos de agitadores nacionais e
internacionais”, agora em inquérito policial militar chefiado pelo
tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima. Duro nos interrogatórios, em 2014 Ibiapina
Lima foi apontado no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, junto a
outros 376 agentes do Estado, por violação dos direitos humanos e crimes
cometidos durante o regime militar.
O tenente-coronel iniciou o interrogatório pela formação e
pelas atividades profissionais de Paulo; questionou-o em seguida sobre inúmeros
autores e seus métodos pedagógicos: Dalton, Montessori, Mackinder, Decroly,
Kilpatrick, Peter- sen, Cousinet, Laubach, Alfredina de Paiva e Souza,
sintético, analítico-sintético… Surpreso, Paulo respondeu sobre aqueles que
conhecia, afirmou que, em sua maioria, eram integrantes de uma pedagogia
moderna, defensora de uma educação ativa na qual o educando pudesse superar a
passividade característica da escola antiga e assumir uma posição participante
em seu aprendizado.
Na sequência viriam perguntas para testar seu conhecimento
específico sobre os autores e métodos apresentados, os resultados que
produziram, onde foram aplicados. Depois, sobre sua avaliação dos sistemas de
ensino adotados pelo Exército dos Estados Unidos e do Brasil a partir de 1941.
Em seguida, Paulo foi questionado sobre a diferença entre sua visão pedagógica
e a perspectiva de cada um dos outros educadores citados. E, finalmente, sobre
o seu método de aprendizado — destinava-se apenas à alfabetização ou ao ensino
de maneira geral?
Em relação ao último questionamento, Paulo se deteve mais
pacientemente, explicando com didatismo para Ibiapina Lima que sua principal
preocupação era educar, e não só alfabetizar. Esclareceu que era um método
baseado no diálogo, que abordava situações da vida cotidiana e pretendia fazer
com que os alunos se tornassem pessoas ativas a partir das discussões sobre o
contexto em que viviam. Descreveu os procedimentos para a escolha das palavras,
o modo como elas eram decompostas em sílabas que depois se juntavam em outras
combinações para construir novas palavras. Para concluir, disse que todo seu
trabalho educativo se fundava no absoluto respeito ao ser humano e que o
importante era educar, não doutrinar.
Nesse momento do inquérito, tendo ouvido Paulo com atenção,
Ibiapina Lima tornou-se mais agressivo; perguntou como ele poderia se
considerar um educador se demonstrava desconhecer parte dos teóricos citados.
Paulo argumentou que não lhe cabia julgar a si próprio e que não tinha nada a
acrescentar sobre os demais autores.
O tenente-coronel então fez referência à duração do método
de alfabetização de Paulo Freire, questionou o porquê das 40 horas — rapidez
tão alardeada pelos meios de comunicação. A busca por uma solução ágil,
respondeu Paulo, era necessária porque o problema era muito grave, e argumentou
que a alfabetização deveria ser aprofundada em fases subsequentes. Quanto à
originalidade de seu trabalho, afirmou que não tinha pretensões de ser
original, mas de dar sua contribuição ao combate do analfabetismo.
Ibiapina Lima então questionou Paulo sobre seu suposto
envolvimento com o comunismo ou com regimes totalitários, comparando seu método
àqueles utilizados por Hitler, Mussolini, Stalin e Perón. Quis saber também sua
opinião a respeito de Cuba, da União Soviética e da China. E o que pensava
sobre Brizola, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Francisco Julião e Gregório
Bezerra. Em uma guerra entre o Brasil e um país comunista ou socialista, de que
lado Paulo estaria? Paulo se defendeu de todas as perguntas. Constrangido pelas
circunstâncias, repudiou o comunismo, expressou-se como apoiador das reformas
do marechal Castello Branco, mostrou-se satisfeito com sua liderança, negou
vontade de deixar o país e, por fim, colocou-se na condição de cristão que
valorizava o ser humano e que se orientava pela doutrina da fé. Depois de horas
de tensão e afrontamento, pôde enfim voltar para a cela. Dois dias depois, em 3
de julho, foi solto.
Prisão
Por pouco tempo, entretanto. Paulo voltou a ser preso já no
dia seguinte. Sem maiores explicações, foi levado para o Quartel de Obuses, no
bairro de Jatobá, na vizinha Olinda. Foi encarcerado em uma das solitárias do
piso inferior, onde ficava a prisão dos sargentos e tenentes. A cela era
pequena, as paredes, ásperas; havia apenas uma cama e altura justa para que
Paulo ficasse em pé. Poucos dias depois, foi transferido para a enfermaria dos
oficiais, no andar de cima, para onde eram encaminhados os presos com curso
superior.
Ali passaria a maior parte de seu segundo encarceramento,
convivendo com outros detidos como Clodomir Santos de Morais, ativista político
ligado ao Partido Comunista e às Ligas Camponesas, Pelópidas Silveira, o
prefeito deposto de Recife, o advogado Joaquim Ferreira e Plínio Soares,
ex-funcionário da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene),
entre outros políticos e lideranças sociais.
Para passar o tempo, além de conversar e contar casos,
jogavam xadrez e faziam palavras-cruzadas. Paulo também se dedicou intensamente
à leitura. Caiu-lhe nas mãos o clássico Grande sertão: veredas. Incomodado com
a linguagem de Guimarães Rosa, desistiu do livro e comentou com Clodomir sua
dificuldade com o estilo, o palavreado, o tom regional do romance. Surpreso, o
companheiro explicou as circunstâncias que levaram aquela região entre o rio
São Francisco e Goiás a manter uma espécie de dialeto próprio, o mesmo falado
até então por sua mãe e alguns parentes que moravam ali. “Se você quiser, eu,
com toda a satisfação, vou tratar de traduzi-lo”, propôs Clodomir, disposto a
fazer anotações sobre as expressões idiomáticas no próprio livro. Paulo aceitou
de imediato.
Em clima de camaradagem, o tempo se arrastava no andar de
cima do Quartel de Obuses. Um dia, um jovem tenente se aproximou da cela de
Paulo: “Professor, vim conversar com o senhor porque agora nós vamos receber um
grupo de recrutas e, entre eles, há uma quantidade enorme de analfabetos. Por
que o senhor não aproveita sua passagem por aqui e ajuda a gente a alfabetizar
esses rapazes?”. Ao que Paulo respondeu, surpreso com a ingenuidade do rapaz:
“Mas meu querido tenente, estou preso exatamente por causa disso! Está havendo
uma irracionalidade enorme no país hoje, e se o senhor falar nessa história de
que vai convidar o Paulo Freire para alfabetizar os recrutas, o senhor vai para
a cadeia também. Não dá!”.
Somados os dois períodos de encarceramento, em Recife e em
Olinda, Paulo ficou preso por mais de setenta dias. Fez um acordo com a mulher
para que os dois filhos mais novos não o visitassem na prisão. Para eles o pai
estava viajando. Durante todo esse tempo, Elza desdobrou-se como pôde para
cuidar da família e atenuar o sofrimento do marido na prisão. Uma de suas
estratégias era entregar regularmente uma panela da comida de casa, sempre que
possível em quantidade suficiente para alimentar não só os companheiros de
cela, mas também os outros presos. A justa distribuição era garantida com a
colaboração dos carcereiros ainda não submetidos aos rigores do golpe.
A vontade de Paulo era permanecer no Brasil, mas as circunstâncias
não ajudavam. Desde que fora solto pela última vez, estava obrigado a
comparecer regularmente a instâncias do Exército para registrar suas
atividades. Em um desses encontros, ele seria convocado para um novo inquérito,
desta vez no Rio de Janeiro. A essa altura, Elza já alentava a possibilidade de
sair do país para preservar a integridade física e mental do marido — e da
família.
Exílio na Bolívia
Quando chegou no Rio, atendendo a uma nova intimação
militar, Paulo se rendeu ao apelo feito por vários de seus amigos, entre eles o
professor de literatura e líder católico Alceu Amoroso Lima, conhecido também
como Tristão de Ataíde, e buscou exílio na embaixada da Bolívia. Antes disso,
tentara sem sucesso a representação diplomática do Chile, que recusara seu
pedido. Muitos colegas também tentaram encontrar formas de acolhê-lo no
exterior, caso de Ivan Illich, educador austríaco radicado no México, que
conhecera Paulo em uma visita ao Recife. Mas nada havia dado certo até então.
Enquanto esperava pela autorização para viajar a La Paz,
Paulo foi informado de que um representante do Ministério da Educação da
Bolívia, que estava no Rio para um congresso de educadores latino-americanos,
gostaria de se reunir com ele na embaixada. O colega boliviano propôs que Paulo
trabalhasse em seu país como assessor de educação, em particular no ensino de
adultos. O convite foi aceito na hora.
Em 28 de setembro, Ibiapina Lima expediu um mandado de
prisão para Paulo Freire, baseado nos seguintes argumentos: o educador estaria
implicado em subversão nos meios intelectuais e de alfabetização; seu método
não tinha qualquer originalidade e a velocidade era inferior a de outros
modelos; a experiência de Angicos era por si só um atestado de subversão na
medida em que mais politizava do que alfabetizava; seria um mistificador,
suposto criador de um método e sem pejo de negar que desconhece tudo o que há a
respeito; seria um aliciador sistemático do marxismo; refugiou-se em embaixada
estrangeira depois de viajar para o Rio de Janeiro para atender a um inquérito,
utilizando passagens compradas pelo governo.
Enquanto a viagem ao exterior não se arranjava, Elza e os
filhos, por segurança, passaram a viver inicialmente na casa de Zé de Melo, seu
irmão. Depois se mudaram de Recife para a casa de Stela, irmã de Paulo, em
Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, para poderem visitá-lo com
maior frequência. Nesse período, também esteve na embaixada o advogado Odilon
Ribeiro Coutinho, seu colega e amigo dos tempos em que frequentaram juntos a
Faculdade de Direito. Além de um pacote de livros, Odilon entregou a ele alguns
dólares para serem usados em sua chegada à Bolívia, dada a sua dificuldade para
acessar recursos financeiros. Parte do dinheiro ele daria a Elza para ajudar nas
despesas da família. Sem passaporte, porque nunca havia deixado o país, Paulo
embarcou para La Paz apenas com sua carteira de identidade, enfiada por Elza em
seu bolso no último instante.
Em 18 de outubro, alguns dias após Paulo ter partido para o
exílio, Ibiapina Lima divulgou o relatório final do inquérito sobre o educador,
no qual o acusava de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata
dos menos favorecidos. Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada
mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização dos mesmos”. Para
Ibiapina Lima, Paulo não tinha criado método algum e sua fama viria da
propaganda feita por agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um
criptocomunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, acusava. Para o
militar,
Paulo era um fugitivo: "Recebeu um chamado para depor
no Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, e ali chegando fugiu
sem considerar que a Nação forneceu passagem de avião, confiando que um dos
seus intelectuais não seria um relapso e um fujão. Após viajar, […] asilou-se
na embaixada da Bolívia, negando-se a depor e caracterizando, desta forma, toda
a sua culpabilidade criminosa de que era um dos chefes. Assim, confirmou as
acusações que pesavam sobre ele: assumiu por conta própria toda a
responsabilidade por ter fugido. Quem não teme não se esconde".
Sérgio Haddad é doutor em história de filosofia da educação
pela Universidade de São Paulo (USP). Este extrato é parte de seu livro "O
educador: um perfil de Paulo Freire", publicado pela editora Todavia em
2019.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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