Roberto Marinho em 1960. (Acervo Roberto Marinho )
Publicado originalmente no site [brasil.elpais.com], em 29 de outubro de 2019
A disputa que fez a Companhia das Letras tentar barrar nova
biografia de Roberto Marinho
Autor Leonêncio Nossa acusa empresa de querer mudar seu
livro por causa de trecho sobre Walther Moreira Salles. Editora diz que
jornalista descumpriu contrato e ganha na Justiça direito de receber os
royalties pela obra
DANIEL HAIDAR
Em uma disputa inédita, a Companhia das Letras, maior
editora do Brasil, tentou impedir na Justiça que o jornalista Leonêncio Nossa,
um dos mais premiados do país, publicasse e vendesse uma nova biografia do
empresário Roberto Marinho (1904-2003), fundador do poderoso Grupo Globo. A
tentativa foi feita assim que a gigante editorial soube do lançamento do livro
Roberto Marinho: o poder está no ar por uma nova editora, a Nova Fronteira, em
17 de maio no Rio de Janeiro. O plano completo da Cia das Letras, que havia
rompido com Nossa por divergências sobre a obra no processo de edição, não deu
certo, mas era só um dos capítulos de uma das disputas mais rumorosas do
mercado editorial brasileiro.
O pedido de proibição de vendas foi a medida mais grave da
Companhia das Letras depois de uma série de divergências que levou para a
Justiça uma relação que era entre autor e editora. O jornalista afirma que
procurou a Companhia em meados de 2013, quando já havia apurado informações
inéditas e montado um roteiro de pesquisa para um trabalho investigativo de
fôlego, com o objetivo de revelar histórias desconhecidas de Marinho. Nossa já
havia publicado o livro-reportagem Mata! O major Curió e a Guerrilha do
Araguaia pela Companhia das Letras em 2012. Antes disso, ele também publicou
três livros jornalísticos pela editora Record.
O jornalista e a Companhia das Letras acabaram por assinar
contrato em 20 de agosto de 2014 para que ele produzisse uma nova biografia do
mais influente e mais controverso empresário de comunicações do Brasil. Marinho
fundou a rádio Globo em 1944, e a rede Globo em 1957, que teria acertado um
polêmico acordo com o grupo americano Time Life em plena guerra fria. Seu pai,
Irineu, havia aberto o jornal O Globo em 1925. Para contar essa história, foi acertado
que Nossa administraria uma verba de 40.000 reais para pesquisa e receberia
diretamente 160.000 reais de adiantamento das vendas futuras do livro, em cinco
parcelas —a última com previsão de pagamento apenas depois da entrega dos
originais (sem data especificada).
No processo judicial a que o EL PAÍS teve acesso, o autor
relata que começou a se desentender com a editora depois que o editor Luiz
Schwarcz, sócio-fundador e presidente da empresa, recebeu o capítulo O mulato e
o embaixador, que narrava como o banqueiro e ex-embaixador Walther Moreira
Salles tentou comprar, sem sucesso, a Rede Globo. Fernando Moreira Salles, um
dos filhos do banqueiro, era sócio da Companhia das Letras na época.
Em recurso apresentado à Justiça, a defesa do jornalista diz
que Schwarcz declarou que “precisavam conversar sobre o capítulo ‘o mulato e o
embaixador”. A partir desse recado, de acordo com a versão do autor, é que a
relação com a editora se deteriorou até ficar insustentável. O advogado
Alexandre Fidalgo, que defende Nossa, argumentou no processo que a preocupação
com esse capítulo resultou na indicação de um revisor externo e, ao fim, na
recusa de publicação da obra.
O jornalista diz que entregou em 1º de março de 2017 seu
livro finalizado com 623 páginas, pronto para edição e revisão. O último
pagamento de adiantamento foi feito em 30 de março de 2017, de 25.000 reais, de
acordo com comprovantes bancários anexados pela editora no processo judicial. A
defesa do jornalista argumenta que esse último pagamento, que tinha desembolso
contratual previsto apenas na "entrega dos originais", e os e-mails,
que mostram o início das conversas sobre a revisão do livro, mostram que Nossa
efetuou a "entrega dos originais", etapa clássica no mercado
editorial em que a editora recebe o texto final do autor para edição e revisão.
É justamente essa “entrega dos originais” a divergência
central no processo que pode estabelecer quem descumpriu o contrato para edição
do livro, de acordo com juristas que analisaram o caso e conversaram com o EL
PAÍS. Isso porque o contrato do jornalista com a Companhia das Letras continha
a seguinte cláusula: "A editora se compromete a publicar a obra no prazo
de 12 (doze) meses contados do recebimento dos originais". Nossa alega que
os originais foram entregues em 1º de março de 2017. Já a Companhia afirma que
o texto não estava pronto e continha lacunas, o que, na sua visão, não
configuraria uma legítima "entrega dos originais".
“Se houve entrega de originais ou não, isso é uma questão de
fato. O cerne da discussão é esse, se foi entregue ou não o original naquela
data”, explica o advogado João Marcelo Assafim, professor de propriedade
intelectual da UFRJ. "Quem diz que a obra está pronta é o autor. Não cabe
a ninguém mais falar nada em relação a isso. A editora pode dizer que não
publica, mas não pode interferir no conteúdo da obra [sem anuência do
autor]", acrescenta. A Companhia diz ter feito tudo sempre com a
concordância de Nossa.
O juiz Claudio Marquesi, da 24ª Vara Cível de São Paulo,
julgou a disputa em menos de três meses, sem recorrer a peritos ou testemunhas
como havia solicitado a defesa do jornalista. O magistrado deu ganho de causa à
Companhia das Letras em primeira instância, argumentando que só poderia ser
considerado que houve “entrega dos originais” se o texto não tivesse
“necessidade de alteração em seu conteúdo”. “Não há como considerar, portanto,
a data de março de 2017 como aquela de efetiva entrega “dos originais”, e como
termo inicial dos 12 meses previstos na cláusula 2 do contrato, uma vez que
esse prazo somente poderia ter início após a entrega do texto sem necessidade
de alteração em seu conteúdo”, diz o juiz na sentença.
Além de efetuar o bloqueio e a transferência das receitas do
jornalista com a biografia para a editora de Schwarcz, a sentença condenou o
jornalista a restituir a Companhia das Letras em 160.000 reais e pagar uma
indenização por danos materiais de 40.000 reais, tudo isso com correção
monetária e acrescido de juros, além do pagamento das custas processuais e dos
honorários de sucumbência.
Pela falta de perícia e da convocação de testemunhas da
editora que poderiam esclarecer o assunto, o advogado Alexandre Fidalgo, responsável
pela defesa de Nossa, pediu em segunda instância a anulação da sentença e o
desbloqueio das receitas do autor na nova editora. Fidalgo argumenta que a
primeira decisão desconsiderou o significado da palavra “original”, que consta
no Dicionário Michaelis como a “primeira redação de qualquer obra”.
O professor da UFRJ concorda que, em tese, o Poder
Judiciário não pode decidir se houve ou não “entrega dos originais” sem a
realização de uma perícia. “O Poder Judiciário teria que resolver essa questão
de fato com um perito. Juiz não pode declarar fato. Juiz declara direito”,
avalia Assafim.
Revisão, o pomo da discórdia
Pelo argumento da defesa do jornalista, a Companhia das
Letras teria, por contrato, até março de 2018 para lançar a biografia, o que não
ocorreu, porque a revisão do livro de Nossa acabou se tornando o principal
palco da discórdia. Para essa tarefa, a editora propôs e obteve a concordância
do jornalista para que fosse convidado o também jornalista Lira Neto, um dos
mais premiados biógrafos do país e autor de 12 livros. Ainda na revisão dos
primeiros capítulos, Nossa protestou e disse que teve o texto amplamente
alterado, desfigurando sua obra original, sem a marcação de quais trechos ou
palavras foram revistos.
O jornalista ficou insatisfeito com os rumos da revisão e se
mostrou especialmente irritado quando disse ter ouvido de uma fonte no Rio de
Janeiro que Lira Neto estava sendo apresentado pela editora como novo
responsável pela biografia —é o que o próprio Nossa relata em um e-mail anexado
ao processo. Procurado pelo EL PAÍS, Lira Neto negou que tenha sido convidado a
participar do projeto como coautor ou autor, para além de revisor, e diz que
não foi informado de nenhuma preocupação especial com o capítulo que trata de
Walther Moreira Salles. Esclareceu, por e-mail, que foi contratado, porque a
"editora pediu um trabalho técnico, de edição de texto".
"Fui contratado, com a devida ciência e aprovação do
autor, para o trabalho de edição de texto, uma praxe do mercado editorial.
Recebi os capítulos iniciais e sugeri alterações, inclusões e cortes de
trechos. Depois disso, submeti tais sugestões à editora e ao autor. Mas o
trabalho não seguiu adiante, uma vez que não recebi o texto reformulado",
afirmou Lira Neto.
Depois de Nossa criticar as alterações no seu texto e o
ritmo de revisão, a Companhia das Letras mudou de revisor no fim de novembro de
2017. Nos e-mails anexados ao processo, o editor da casa ainda fazia
comentários ao capítulo dois do livro no fim daquele ano e pedia alterações a
Nossa. O trabalho de edição da obra ainda não havia acabado em 21 de março de
2018, quando o jornalista enviou um e-mail para seu editor na Companhia das
Letras, Otávio Marques da Costa, em que dizia que tinha decidido retirar o
projeto da editora e que se colocava à disposição para tratar do encerramento
do contrato.
O editor lhe desejou sucesso, mas cobrou a devolução do
adiantamento de 160.000 reais. Nossa alegou então que o contrato havia
expirado, em referência ao prazo de 12 meses que a empresa teria a partir da
entrega dos originais para publicá-lo, e que, por isso, na sua interpretação,
não era exigível a devolução de adiantamentos. “Diante da pressa da editora,
observo que o contrato expirou. Não há dívida de minha parte”, afirmou Nossa.
A Companhia das Letras ainda enviou uma notificação
extrajudicial em junho de 2018 para cobrar a devolução dos adiantamentos, mas
só processou o jornalista em maio deste ano, quando começou a divulgação do
lançamento da obra pela nova editora, a Nova Fronteira, pouco mais de um ano
após a despedida entre o autor e a Companhia das Letras.
"A Companhia das Letras esclarece que sua iniciativa de
ingressar em juízo nunca visou a censura do livro, mas o reembolso dos valores
pagos ao autor a título de adiantamentos, que seriam abatidos com a publicação
e venda do livro, o que acabou não acontecendo por vontade unilateral do
autor", diz nota da editora enviada ao EL PAÍS. "As informações
prestadas por Leonencio, entre elas a que menciona a 'inclusão de coautor', não
estão de acordo com a verdade dos fatos, o que é corroborado pela decisão
judicial favorável à editora", segue a empresa, que não quis comentar a
respeito da acusação de Nossa de que as divergências começaram por causa de um
capítulo a respeito do banqueiro e ex-embaixador Walther Moreira Salles.
O imbróglio mostra como, mesmo depois de o Supremo Tribunal
Federal proibir o impedimento de biografias não autorizadas em 2015, o
lançamento de livros de não-ficção ainda pode entrar num limbo. Para o
professor de direito da UFRJ, a disputa chama atenção para o poder que a
Justiça pode conferir a uma editora, sem tratar apenas dos resultados
específicos para a empresa ou o autor. “O desafio do Poder Judiciário é dizer
se poderá um editor contratar uma obra e, por qualquer motivo, manter a obra
oculta. Pagar para não publicar”, afirmou.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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