Imagem do livro em quadrinhos "Vingadores, a Cruzada
das Crianças"
que está sendo comercializado na Bienal Internacional do
Livro do Rio
e que sofreu tentativa de censura por parte do prefeito Marcello
Crivella.
Imagem: divulgação
Publicado originalmente no site [biblioo.cartacapital], em 07 de setembro de 2019
Quem pode dizer o que é erotismo e pornografia?
O desejo na pauta do dia
Por Cláudio Rodrigues
É bizarro. Mas não é novidade. A história está aí para
trazer a nossas vistas as recorrentes tentativas de interdição ou policiamento
do desejo. Esta semana o Brasil se escandalizou com o vídeo do pastor
neopentescontal e prefeito do Rio de Janeiro no qual informava que fiscais da
prefeitura visitariam a Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro para
recolher todos os livros que, por serem considerados pornográficos, deveriam
estar lacrados com saco preto com advertência do conteúdo proibido para
menores, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A
advertência se encerra com “é preciso proteger nossas crianças”.
Sabendo que coordeno um grupo de estudos na UFC que
desenvolve pesquisas sobre erotismo e pornografia na história ocidental, com
destaque para a literatura brasileira, tenho recebido perguntas de colegas,
alunos e desconhecidos sobre a diferença entre erotismo e pornografia. Querem
saber, ainda, o que pode ser considerado pornografia. Especificamente em
relação à HQ da Marvel – Os vingadores: a cruzada das crianças – motivo da
tentativa de censura pelo prefeito-pastor, perguntam por que o beijo entre dois
homens é visto como obsceno e/ou pornográfico.
A questão é complexa, porque pensar sobre o sexo sempre foi
uma forma de tentar controlar o que não se deixa prender nos domínios das leis,
das crenças e dos governos. No entanto, essas três instâncias sociais, mais a
ciência e a medicina, sempre buscaram apreender esse território perigoso que
chamamos desejo, libido, prazer, pulsão e suas inúmeras formas de manifestação
entre os homens, desde o afeto demonstrado num abraço ou num beijo até o ato
sexual e seu alfabeto do prazer entre dois corpos, homem-mulher, homem-homem,
mulher-mulher, ou mesmo solitariamente, com a masturbação.
O problema é que apreender não significa necessariamente
compreender. A história tem mostrado que o olhar ao que nos é desconhecido e
nos move na direção do desejo tem sido uma forma de conhecer para controlar,
não para libertar. Isso é o que, por exemplo, diz a obra de Foucault sobre a
sexualidade. Ao contrário do senso comum, que repetiu por muito tempo a
cantilena de que, desde a Idade Média, o corpo e o sexo foram instados ao
silêncio, sofrendo uma feroz interdição, Foucault afirma que nunca se incitou tanto
os homens a falarem sobre o sexo. Era uma verdadeira obsessão, seja por meio da
confissão (um sacramento da igreja), seja através da medicina (as tentativas de
tratar a histeria no século XIX), seja por meio do Estado e de seus mecanismos
jurídicos (a elaboração de normas para definir o que é proibido ou não em
matéria da sexualidade).
O homo sapiens, de que nos orgulhamos fazer parte (não me
refiro ao homo argilorum, produto de um mito, reforçado por aqueles que se
negam a pensar na hermenêutica das mitologias), é também homo sexualis que,
contrariando a ideia de que biologicamente só podemos, como qualquer mamífero
não humano, praticar o sexo em tempos de cio, com fins à procriação, dissemos
não a essa natureza e inventamos a sexualidade, elaboramos uma cartilha do
prazer, fizemos do sexo uma linguagem. Os humanos praticam o sexo no sentido
mais amplo possível. Portanto, não me refiro à penetração de um pênis na
vagina, essa ação tão binária, tão heteronormativa, tão culturamente
compulsória.
Se não compreendemos que somos sexo da cabeça aos pés, que,
do mais insignificante fio de cabelo à unha encravada do dedão do pé, tudo em
nós respira sexualidade, (embora, como já disse Freud, não se saiba onde nasce
e se esconde o desejo), se isso for uma constante negação em nós e naquelas
instituições que nos congregam socialmente, estaremos fadados ao fracasso em
qualquer atividade que nós propusermos a executar individual ou coletivamente
falando.
O erótico e o pornográfico, duas instâncias de representações
culturais do prazer, estão presentes em espaços onde jamais poderíamos supor,
apenas tendo como recorte o Ocidente, O que nos dizem os corpos nus nas
pinturas e esculturas em vários momentos da história da arte (com destaque para
a representação do corpo feminino)? O que dizer das cenas famosas de amantes
cantados e narrados na literatura, desde Ilíada, e suas representações nas
artes visuais? Que imaginar quando fachadas de igrejas medievais europeias
expõem vaginas e pênis disfarçados de calhas de recolhimento da água da chuva?
Que pensar quando livros da Bíblia apresentam poemas e prosa de rara beleza
sobre o desejo sexual e suas manifestações nos corpos dos amantes, inclusive
homoafetos? Podemos dizer que toda essa cultura fartamente documentada é pura
perversão? Não estaríamos falando de uma pedagogia do desejo, que nutre tudo o
que temos enquanto cultura e molda o que nossa humanidade?
Mas ainda não disse o que compete ao erótico e o que é da
alçada do pornográfico. Quem estuda o erotismo costuma ler e ouvir duas
vertentes em relação a isso. A perspectiva tradicional faz questão de enfatizar
a dualidade hierarquizante entre o erotismo (algo sempre elevado, que não
apenas sugere, que não se expõe, implícito) e o pornográfico (algo rebaixado,
da ordem do obsceno, que mostra tudo, explícito).
Imagem do livro em quadrinhos “Vingadores, a Cruzada das
Crianças”
Assim, por ser algo elevado, inclusive tendo em seu conceito
o radical da mitologia grega, o deus Eros, o erotismo pode ser adequado a
figurar nas páginas dos livros, nas pedras esculpidas e expostas em casas ou
museus, nas telas da pintura, na fotografia e no cinema. Já o pornográfico é
relegado aos lugares fétidos do proibido, tanto que na sua etimologia leva o
nome “porn”, que significa “puta”, como se as putas não tivessem seu valor
social, afetivo e econômico nas culturas. Mas qual o lugar social delas? E no
que uma mulher puta difere de uma mulher casadoura? Inúmeras perguntas, que não
cabem aqui agora.
Acontece que o termo pornografia e suas variantes é bem
recente, tem aí por volta de 500 anos. A historiadora Lynn Hunt, em A invenção
da pornografia (1999), situa a elaboração desse conceito entre 1500 1800, ou
seja, trata-se de um conceito moderno, nascendo justamente “em resposta à
ameaça de democratização da cultura” (1999, p.12), ou seja, quando se
popularizou o livro, com o advento da reprodução tipográfica, foi preciso que
se dissesse o que era permitido e o que era proibido ler: “A pornografia
começou a aparecer como gênero distinto de representação quando a cultura
impressa possibilitou às massas a obtenção de escritos e ilustrações” (HUNT,
1999, p.13). E logo se criam os infernos na biblioteca, espaços para onde os
livros obscenos eram destinados, onde não saiam para a leitura do público comum
(dentre esses livros, encontravam-se inúmeras obras escritas por ou sob o tema
da prostituição); surgiram também os museus secretos, espaços onde eram
trancafiados os objetos considerados pornográficos.
Ou seja, a pornografia como conceito e palavra nasce para
separa o joio do trigo, na acepção bíblica do que pode e o que não pode ser apresentado
à sociedade. E, é claro, que “a história de sua regulamentação demonstra que os
esforços empreendidos para controlar a pornografia contribuíram, em parte, para
a sua definição” (HUNT, 1999, p. 12). Então, não se pode falar de erotismo e
pornografia, sobretudo dessa última, sem pensar que não são palavras, mas
conceitos historicamente maleáveis e inseridos nas políticas e moralidades do
seu tempo. Estamos falando de leituras sobre a representação do desejo. Por
exemplo, quando a sociedade atual fala do pornográfico, quase sempre está
pensando na indústria e no comércio em torno do sexo que se proliferou com os
cinemas, as TVs, as revistas com ensaios fotográficos de corpos nus e as
fotonovelas com narrativas cuja finalidade é excitar o leitor ou espectador.
Quem consome esses produtos está mesmo ciente da disputa dos termos erótico e
pornográfico no campo político? Parece que não.
Voltando a Foucault, nunca como nos séculos XVIII e XIX, se
falou e se estimulou a falar sobre o sexo na tentativa de se mapear os
discursos sobre o desejo a fim de intervir, controlar e dirigir. É o sexo como
uma instância de poder, portanto, um domínio a ser perseguido: “Mas o essencial
é a multiplicação dos discurso sobre o sexo no próprio campo do exercício do
poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez mais;
obstinação das instâncias do poder a ouvir falar e a fazê-lo falar ele próprio
sob a forma da articulação explícita e do detalhe infinitamente acumulado”
(FOUCAULT, 2015, p. 20).
A questão que se coloca é: a quem interessa dizer o que é
obsceno e pornográfico? Em nome de quem e do que se interpreta um beijo gay,
por exemplo, como a representação de um ato obsceno? As legislações e os
governos, sobretudo aqueles autoritários e fundamentalistas, sabem tirar
proveito dos discursos sobre o desejo em benefício próprio. A pesquisadora e
ativista feminista lésbica estadunidense, Gayle Rubin, em texto clássico sobre
a política da sexualidade, escrito na década de 1980, é categórica ao afirmar
que “O sexo é sempre político. Mas há também períodos históricos em que as
discussões sobre a sexualidade são mais claramente controvertidas e mais
abertamente politizadas. Nesses períodos, o domínio da vida erótica é com
efeito renegociado” (RUBIN, 2017, p. 64).
Nessa direção vai o escritor estadunidense Gore Vidal, num
famoso artigo intitulado “Sexo é política”, publicado inicialmente na Playboy
americana, em 1979 e em de Fato e Ficção (1987), no qual fala de “botões
quentes” usados por certos políticos para angariar o apoio das massas em
determinados momentos; entre esses “botões”, estaria a repetição do “Salvem
nossas crianças”, que o autor traduz para “abaixo as bichas”.
Parece que estamos vivendo em tempos como esses descritos
por Rubin, e não resta outra saída a não ser elaborar estratégias de
renegociação do que é da ordem do erótico, visto aqui como algo mais amplo, e
não necessariamente o que é menos ou mais explícito. Em tempo autoritários, as
legislações são usadas para legitimar ações interpretativas esdrúxulas como a
do prefeito-pastor, que se utiliza do ECA para censurar uma obra, ao invés de
se apropriar da mesma lei de proteção do menor e do adolescente para ajudar na
educação no núcleo familiar, onde estão abusadores em potencial e onde se sabe
que ocorrem estupros e feminicídios.
Gayle Rubin, no mesmo artigo afirma que, na sociedade
americana da década de 1960, “comunidades eróticas cujas atividades não se
enquadravam no sonho americano do pós-guerra sofreram forte perseguição. Os
homossexuais foram, junto com os comunistas, objeto de uma caça às bruxas em
todo o país” (RUBIN, 2015, p. 68). E uma das táticas que governos assim se
utilizam para incitar uma “histeria erótica”, segundo Rubin, é a necessidade de
se proteger e defender enfaticamente as crianças.
Ou seja, através do pânico se obtém adesão ao projeto de
extermínio do diferente ou do que causa incômodo. Não foi exatamente isso o que
ocorreu por essa época aqui no Brasil, quando os militares tomaram o poder,
apoiados por civis, pela imprensa e por parte da igreja, justamente aquele
segmento que dizia defender a moral e os bons costumes?!
A procura pelo tema do erotismo e da pornografia só tem
aumentado. Recentemente, junto com meu grupo de Estudos da língua de Eros, do
Departamento de Literatura e do programa de Pós-Graduação em Literatura
Comparada, ambos na UFC, oferecemos um curso sobre introdução ao erotismo na
cultura e na literatura. Eram apenas 20 vagas, mas tivemos quase 60 inscrições.
Sujeitos das mais variadas ambiências sociais e profissionais queriam ouvir e
falar sobre erotismo e sexualidade, entre eles, alunos de Letras, professores,
psicólogos, atores, jornalistas, donos de sex shopping, religiosos…
Montamos uma turma que representa justamente as múltiplas
faces sociais do desejo, e os encontros prometem, sobretudo, desconstruir as
velhas dicotomias e, com elas, as ideias preconcebidas sobre o que é ou não da
ordem do erótico. Fora disso, uma busca rápida no Google sobre erotismo e
pornografia, ou sobre interdição e transgressão, traz uma enxurrada de links, dos
mais variados matizes, que vão desde vídeos e cena do mercado pornô, que agora
migrou consideravelmente para a comunidade www, até as notícias da imprensa
oficial e popular que cobrem as tentativas de cerceamento de exposição de
trabalhos artísticos sobre as corporeidades, sobretudo as dissidentes (gays,
lésbicas, travestis, transexuais, mulheres, negras…).
Ou seja, não se trata apenas de tentar interditar o desejo e
suas representações, mas é, sobretudo, a necessidade de impor uma determinada
visão sobre o que deve ser aceito em matéria de desejo. E é claro que o que
deve ser aceito por esses censores da moralidade é a ideia binária da
sexualidade, heteronormativa, especificamente aquele modelo centrado numa
hierarquia, que reconhece o lugar do homem sempre acima da mulher, inclusive na
cama.
As masculinidades tóxicas se disfarçam às vezes. Podem vir
disfarçadas de pastores, de padres, de professores, de cientistas, de
advogados… É preciso estar atentos aos que usam as batas da profissão para
disseminar seus preconceitos, suas homofobias, lesbofobias, transfobias,
Lgbtqfobia, misoginia, racismo, xenofobia, enfim, tudo aquilo que torna a
humanidade um pouco menos humana. Quem pode contra o desejo? Nem eu, nem você,
nem a igreja, nem tampouco o Estado. Mas é preciso estar muito atento: onde há
tentativa de cerceamento do desejo alheio, há medo e não aceitação da
diversidade. Daí que é melhor dizer o que é erótico e ter domínio sobre ele
para, assim, continuar perpetrando o discurso vertical de dominação masculina.
Resta-nos entender e viver o erótico, valorizando a
autodescoberta, mas sobretudo, é preciso retirar o erótico das instâncias do
poder cerceador. Por isso, só pode ser louvável ações individuais ou coletivas
que rapidamente tentam deslegitimar discursos preconceituosos como o do
prefeito-pastor do Rio de Janeiro. Diante da ameça de censura à bienal, as
editoras começaram a publicar nas suas redes fotos da bandeira LGBT junto com
textos de repúdio ao governo municipal do Rio. E, o mais notável, exemplo de
contradiscurso, pelo alcance que tem e pela grandeza da ação, o youtuber Felipe
Neto se utilizar da influência nas redes para comprar todos os livros de
temática LGBT da bienal (cerca de 15 mil volumes) e oferecer de graça numa ação
que é uma perfeita performance política.
Em síntese, o beijo na HQ dos Vingadores é problema não por
ser obsceno, mas por ser a legítima representação de afeto entre dois homens
adultos. A caça às bruxas, nesse caso, se resume na tentativa de interdição da
homoafetividade pura e simples. Diante disso, impõe convocar cristãos –
católicos e evangélicos – que não compactuam com o patriarcalismo falocêntrico
disfarçado de pastores e presidentes orarem a seguinte litania: “De Crivellas e
Bolsonaros, libera nos Domine!”.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: a vontade de
saber. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
HUNT, Lynn. A invenção da pornografia: obscenidade e
invenção da modernidade. São Paulo: Hedra, 1999.
RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu Editora,
2017.
VIDAL, Gore. “Sexo é política”. In: De fato e ficção:
ensaios contra a corrente. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 227-250.
Texto e imagens reproduzidos do site: biblioo.cartacapital.com.br
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