Imagem: Ana Galvan
Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 20 de julho de 2019
Quando todos somos fascistas
Cem anos depois da fundação do fascismo na Itália, vários
livros analisam suas semelhanças e diferenças com a extrema-direita em ascensão
no mundo todo
Por Daniel Verdú
Você é um fascista. E o seu vizinho. E também muitos dos
manifestantes do último Dia do Orgulho Gay em Madri, segundo a deputada catalã
Inés Arrimadas. E as pessoas do município espanhol de Alsasua que gritavam
contra políticos do partido Cidadãos. Mas também os militantes do Vox e seus
dirigentes, e Matteo Salvini e suas hordas da Liga Norte. Isso sem contar os
que declararam a independência no Parlamento da Catalunha em outubro de 2017,
os novos partidos que reivindicam Mussolini na Itália e os que dirigem seus
veículos pelas cidades sem respeitar as ciclovias. Nenhuma palavra foi tão
utilizada nos últimos tempos para desqualificar rivais de todo tipo, para
refletir um autoritarismo crescente ou para definir, recorrendo ao passado de
forma cansativa, um aroma político que emana do presente e cujas
características se repetem no mundo todo sem uma resposta adequada.
O irresistível magnetismo de um período histórico em que
alguns, como Umberto Eco, decifraram um estado de ânimo político e moral em
permanente retorno tomou conta também do setor editorial. Quase uma dezena de
novidades que abordam a questão acabam de chegar às livrarias e indagam sobre
suas raízes, personagens e paralelismos com o momento atual. A Itália lidera a
tendência com o maior catálogo de propostas, em meio aos rumos autoritários e
xenofóbicos do Governo formado pela Liga e o Movimento 5 Estrelas. A obra mais
festejada é M. Il figlio del secolo (M., o filho do século), com a qual Antonio
Scurati venceu recentemente o Prêmio Strega. Uma extraordinária biografia
romanceada sobre a ascensão ao poder de Benito Mussolini – pensada como a
primeira parte de uma trilogia que também dará origem a uma série da TV – que
triturou definitivamente o tabu de narrar os acontecimentos mais obscuros da
primeira metade do século XX do ponto de vista dos carrascos. Certo, mas
existem realmente semelhanças entre aquele período e o atual para justificar
tanto furor?
Manifestação de ultradireitistas em Roma. Fabio Frustaci Camara Press
Scurati, em plena ressaca pelo prêmio mais importante da
Itália (a Alfaguara publicará o livro em janeiro na Espanha), encontra alguns
paralelismos em aspectos muito concretos localizados no clima em que o monstro
foi forjado. “A analogia mais forte está no sentimento de derrota, mal-estar,
abandono, desilusão, rechaço e repulsa à velha classe dirigente e às
instituições parlamentares. Também o fracasso da social-democracia de 1919 até
1921, um cenário em que o fascismo encontrou terreno fértil. Esse tipo de
sentimento antipolítico, que nada tem a ver com a análise racional de nossa
vida, é análogo. Volta a ser detectado, como na época, em elevadas porcentagens
do eleitorado. Afeta pais de família, trabalhadores, gente de bem atraída por
líderes e movimentos que manifestam abertamente o desprezo pela velha política,
mas também pelas instituições parlamentares. A diferença é a violência, nisso
não tem nada a ver”, afirma o autor.
Uma pequena burguesia não integrada a nenhuma classe ou
grupo social, assustada pela percepção de uma invasão estrangeira; partidos que
invocam atalhos extraparlamentares e dão as costas às Câmaras num clima de
decomposição; e uma crise econômica incrustrada, que solapou a base da
população. Esse clima é sentido há anos no Ocidente e chega até o Brasil, onde
Jair Bolsonaro, um capitão reformado do Exército, ressuscita o autoritarismo e
defende a tortura e a ditadura militar. Também alcança os Estados Unidos da era
Trump: personagens como Steve Bannon declaram seu amor a intelectuais que deram
cobertura ao fascismo, como Julius Evola. Por isso, a secretária de Estado do
Governo de Bill Clinton, Madeleine Albright, portadora de extensa quilometragem
diplomática, alerta com seu Fascismo: Um Alerta (Crítica) que o monstro “não é
uma etapa excepcional na humanidade; faz parte dela” e se apresenta atualmente
com rostos diferentes. Putin, Erdogan, Kim Jong-un...
“A maior analogia está no rechaço às instituições
parlamentares. A diferença é a violência”
Todos fascistas, então? Scurati, como a maioria dos
intelectuais consultados, denuncia um abuso que gerou o efeito contrário.
“Muitos eleitores desses movimentos antissistema, gente integrada na sociedade,
reagem também contra o antifascismo porque durante muito tempo ele foi usado de
forma irresponsável. Quem quer que fosse de direita era chamado de autoritário,
rotulado de fascista. Isso é inexato e já fez com que o antifascismo, abusado e
defendido por gente que não conhecia seu verdadeiro significado, acabasse sendo
uma arma equivocada para a democracia.”
A questão incendeia qualquer debate entre historiadores, com
frequência divididos como a própria sociedade. A maioria concorda, porém, que o
mundo não tomou a real consciência do fascismo e não fechou esse capítulo como
aconteceu com o nazismo. Emilio Gentile, o maior especialista italiano nesse
período, acaba de publicar Quien Es Fascista (quem é fascista). Um título
provocador que aborda com todas as letras a superexposição do conceito e a
languidez semântica que seu repetitivo eco traz aos relatos e à vida diária.
“Esse abuso denota um não entendimento do que foi o fascismo realmente.
Aplica-se a personagens com os quais não estamos de acordo, que não nos
agradam. Mas não é novo: aconteceu nos últimos setenta anos. Foi aplicado a
Eisenhower, Mao, Stálin... Palmiro Togliatti [secretário-geral e fundador do
Partido Comunista Italiano] chegou a definir como fascista Carlo Rosselli, que
criou o movimento antifascista Justiça e Liberdade. Mas os fenômenos de hoje
não têm nada a ver com o fascismo.”
Gentile, extraordinário historiador e um tanto radical nesse
campo, acredita que não há nada de novo a contribuir com o estudo do fascismo e
que a banalização do termo, transformado em objeto de consumo, já é
insuperável. O fascismo pode voltar? “Sim, claro. Como também podem voltar o
bonapartismo, o jacobinismo… Estamos usando um termo de maneira inadequada para
explicar fenômenos novos. E o erro responde principalmente à incapacidade de
enfrentar, com olhar crítico atual, assuntos contemporâneos”, afirma. “A raiz
se encontra na falta de uma etimologia precisa, como têm o comunismo e o
liberalismo: fascismo só significa agrupar. E hoje se transformou num insulto
para prepotentes, antissemitas, autoritários... Mas nenhum populismo atual que
invoque o princípio de soberania popular pode ser fascista. O fascismo negava
tudo o que derivava da Revolução Francesa. E se o que estamos falando é de nos
identificarmos com a figura de um homem forte, de alguém que se dirija
diretamente ao povo, então também poderíamos dizer que [o político italiano]
Matteo Renzi é um fascista, não acha?”
Uma seguidora de Matteo Salvini durante um comício. Alessio Paduano/Redux
A origem do termo encontra-se no símbolo romano do fascio
(feixe de varas), por sua vez herdado dos etruscos. Os fasci simbolizavam a
unidade da soberania, da ordem e do poder supremo capaz de conceder justiça. O
mesmo símbolo foi depois usado na Revolução Francesa, na estátua de Abraham
Lincoln em Washington e na marca da própria Guarda Civil Espanhola. Um dos
primeiros movimentos sociais modernos que o empregaram foram os Fasci Siciliani
entre 1891 e 1894: um grupo de inspiração libertária, democrática e socialista
de agricultores que defendia seus direitos trabalhistas. Mas a apropriação
definitiva chegou em 1919 com os Fasci Italiani Combattimento, fundado por
Benito Mussolini em 23 de março de 1919, verdadeira gênese da mudança. Em parte
por essa dispersão, por sua difusão pela esquerda e a direita do espectro
ideológico, muitos encontram legitimidade para usá-lo nos dias de hoje.
Um grupo de escritores, como Sandro Veronesi e Roberto
Saviano, transformou a militância contra Matteo Salvini em parte de seu corpus
literário e ensaístico na Itália. No extremo oposto à restrição do termo de
Gentile, encontra-se também Michaela Murgia, autora de Instrucciones para
Convertirse em Fascista (instruções para se transformar em fascista), um dos
sucessos do ano na Espanha. É uma sorte de falso manual construído com ironia e
provocação para denunciar a infiltração total do fascismo na sociedade. Sem
nuances. Banalização? “Não acho. É uma maneira de recordá-lo. Não é um fenómeno
histórico, mas diacrônico. Apresenta-se com formas diferentes, mas métodos
iguais. Chame-o do nome que quiser, mas ele tem o mesmo impacto. Ninguém pensa
que os Camisas Negras [milícia paramilitar italiana] voltarão, mas me preocupa
que Salvini, por exemplo, dê entrevistas vestido de militar sem estar numa base
militar.”
Murgia considera que há três elementos fundamentais que
permitem pensar num terreno propício, político e moral, similar ao que levou
àquele período. "Em primeiro lugar, a relação que o Ministério do Interior
italiano e seus potentes apoiadores mantêm com a dissidência (lembremos do
dramaturgo italiano Gabriele D’Annunzio, considerado por muitos como um dos
precursores do fascismo, gritando contra o Parlamento). “Quem manifestar uma
opinião contrária é atacado nas redes sociais do ministro e recebe uma
avalanche de ameaças e insultos”, diz ela. “Os intelectuais estão na mira, mas
também os cozinheiros do Master Chef e os DJs que o criticam. Se você expressa
sua opinião contra ele, passa a ser seu adversário. Em segundo lugar, o
questionamento sobre os outros poderes do Estado: ele se recusa a ser julgado e
diz que os juízes estão politizados. Mas quando o Poder Executivo deslegitima o
Judiciário, estamos ante um ato contra a Constituição. E, terceiro, o machismo
de Estado. Salvini tende a recuperar modelos sociais superados: Deus, pátria e
família. Ataca as mulheres publicamente. Contra elas dirige a violência mais
forte.”
Murgia é autora também de um polêmico fascistômetro
publicado no semanário L’Espresso. Um experimento que poderia remontar à Escala
F, um teste de personalidade desenvolvido por Theodor Adorno para detectar
traços autoritários (o F é de fascismo) e que funciona como uma espécie de
j’accuse psicológico ao fascista que luta para sair de dentro de cada um de
nós: todos sob suspeita. Uma ideia também transmitida pelo livro Como Funciona
o Fascismo (L&PM Editores), de Jason Stanley. A ideia de que novas formas
de autoritarismo espreitam nas sombras de nossas estruturas políticas, no
entanto, não se sustentaria se não estivesse arraigada nessa fronteira
configurada pela perda de sentido da palavra e por um cuidadoso processo de
aceitação da sua acepção.
“Estamos usando um termo de maneira inadequada para explicar
fenômenos novos”
Na Itália, uma ladainha tenta periodicamente convencer sobre
as bondades do ditador. Estradas, trens que chegavam na hora, tratamento das
zonas pantanosas, erradicação de doenças. “Mussolini também fez coisas boas”,
escandalizou o ex-presidente do Parlamento Europeu Antonio Tajani em março
passado. Com esse título irônico e editado pela Bollati Boringhieri, Francesco
Filippi se propôs este ano a desmontar todas as fake news construídas ao redor
da obra do tirano nascido em Predappio, propagadas principalmente na Internet
com impacto sobretudo entre os mais jovens. “O fascismo conseguiu uma presença
crossmedia e saltou dos livros de história à web. Este livro [na lista dos 10
mais vendidos há 16 semanas] pretende ser uma espécie de kit de primeiros
socorros para curar algumas de suas mentiras, na maioria das vezes não
contestadas. Muitos italianos, por exemplo, pensam que Mussolini criou o
sistema previdenciário, quando este foi instalado em 1895, ano em que ele tinha
12 anos.”
A revisão sem preconceito daqueles anos, como propõe
Scurati, gera tensões. No último Salão do Livro de Turim, vários títulos
disputavam a atenção do público. Altaforte, uma editora próxima do partido
declaradamente fascista CasaPound, aterrissou com uma obra biográfica sobre
Matteo Salvini e foi expulsa do evento. Não fosse assim, a polêmica teria sido
ainda maior: convidados como a sobrevivente de Auschwitz Halina Birenbaum
ameaçaram abandonar o evento. Uma decisão razoável. Ideal também para atacar
inocentes e jogar na cara de seu diretor, Nicola Lagioia, a frase atribuída a
Winston Churchill: “Os fascistas do futuro chamarão as si mesmos
antifascistas.” “Foi algo interessante. O Salão do Livro não praticou a censura
excluindo a Altaforte. Sempre houve editoras de extrema esquerda ou direita. O
fato não era a livre circulação de ideias; o problema era que [a editora] é muito
próxima de um movimento político que não entendemos realmente até que ponto é
legal. Depois começaram a dizer que o antifascismo era o câncer da cultura
italiana”, diz ele.
A digestão literária do fascismo, consideram Lagioia e
muitos outros intelectuais, não foi concluída. “Houve uma literatura
antifascista importante nos anos cinquenta, mas seus autores foram
marginalizados. Após a queda do fascismo, de repente ninguém na Itália tinha
sido fascista. Por esse motivo, existe agora uma geração que questiona essa
história. Na Espanha, Javier Cercas, Javier Marías e Fernando Aramburu têm se
debruçado sobre o passado. Existe uma fornada de escritores após o franquismo
que o reflete. Tolstói falou em Guerra e Paz sobre as campanhas napoleônicas
muitos anos depois de ocorrerem. Agora é a vez das novas gerações se voltarem a
esse passado. Fora essa questão... sim, pode ser que haja também uma moda
editorial.” Enquanto isso, e até a poeira baixar, você poderia continuar sendo
um fascista.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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