Peter Sloterdijk, fotografado em Barcelona em 2 de maio.
Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 4 de maio de 2019
Peter Sloterdijk: “A vida atual não convida a pensar”
Filósofo alemão há anos agita o mundo da filosofia, e o
mundo como um todo, com sua obra. Nietzsche, diz, sempre o acompanhou
Por Jacinto Antón
Peter Sloterdijk (Karlsruhe, Alemanha, 1947) é um dos
grandes nomes do mundo do pensamento. Professor de Estética e Filosofia na
Escola Superior de Design de sua cidade natal, há anos agita o mundo da
filosofia – e o mundo como um todo – com suas obras, seu novos conceitos e
termos, e suas opiniões. Autor de livros cruciais do pensar de nossa época como
Crítica da Razão Cínica, Ira e Tempo e principalmente sua monumental trilogia
Esferas (Bolhas, Globos e Espuma), em que desenvolve uma assombrosa teoria do
espaço íntimo, Sloterdijk une sua profundidade intelectual a uma face midiática
incomum em seu campo e uma cordialidade, um humor e uma ironia que o afastam do
paradigma do filósofo alemão usual (Karl Popper, para citar um mal-humorado). O
pensador visitou Barcelona onde se reuniu com várias centenas de pessoas em uma
conversa no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB). Apesar de sua
afabilidade e sua aparente tranquilidade, entrevistar Sloterdijk, cujas páginas
um ser humano comum frequentemente precisa ler várias vezes para conseguir
entendê-las, é um desafio. Com as passagens de Esferas ainda flutuando na
cabeça – “a esfera íntima, consubjetiva, não pode possuir em absoluto uma estrutura
eucíclica e parmenídea: o globo psíquico não tem, com o filosófico bem
arredondado, um único centro que irradia e engloba tudo, e sim dois epicentros
que se interpelam mutuamente por ressonância” –, se entrevista Sloterdijk como
se estivesse diante de Plotino. Um Plotino, de fato, um pouco desarrumado e sem
meias.
Pergunta. Não lhe parece que o pensar, o pensar de verdade,
se tornou uma excentricidade? Ao ler seus livros, tão intensos, percebemos que
o pensamento sério, o que exige esforço e concentração, não é numeroso. Nós nos
desacostumamos.
Resposta. Sim. Certamente. Isso me lembra uma cerimônia zen
em que o mestre pega uma chaleira, como eu estou fazendo agora, e despeja chá
até encher a taça, e então continua despejando e o líquido derrama. Você não
pode entender nada se a taça não está cheia.
P. Perdemos a capacidade de pensar?
R. Não é capacidade como tal. Mas não ocorrem as
circunstâncias vitais que nos permitem afastar e ganhar distância. Para Husserl
e sua fenomenologia era preciso sair do tempo impetuoso da vida, o dispositivo
mais elementar era sempre dar um passo atrás. Essa ação permite que você se transforme
em observador. Sem uma certa distância, sem uma certa desconexão a atitude
teórica é impossível. A vida atual não convida a pensar.
P. Hoje a superficialidade se impõe à profundidade.
R. A Filosofia moderna abandonou mais ou menos a metáfora da
profundidade. Preferimos dizer que tudo está na superfície, e se existe
profundidade é preciso fazer com que ela suba à superfície como se fosse
superficial. Caso contrário, você se transforma em um mistagogo, um iniciador
em mistérios sagrados.
“O filósofo é um pobre diabo condenado a citar a si mesmo
continuamente”
P. Também é verdade que pensar de verdade é difícil e tem
algo de doloroso e angustiante quando se chega perto dos limites do eu e da
autoconsciência.
R. Não estou convencido disso. A filosofia original na
antiguidade era algo ambivalente. Temos os dois topos: Heráclito, que chorava,
e Demócrito, que ria constantemente. Esse traço comentado de ambos pelas fontes
aparece até mesmo em suas estátuas. Para Platão, de uma tradição diferente,
pensar é o prazer mais elevado. Isso por uma razão: a essência do pensamento é
lembrar e o que devemos lembrar é o fato de que estivemos muito próximos da
essência divina e a única coisa que deve ser feita para eliminar os obstáculos
que não te permitem alcançá-la é lembrar claramente. Basicamente, deveria se
tratar de felicidade. Mas não funciona assim porque, certamente, na antiguidade
os pensadores eram conhecidos por ter sempre um rosto triste. Eram mais
respeitados por isso, seus compatriotas esperavam que tivessem aspecto
melancólico e o cenho franzido (ri). Era um truque muito bom, porque ninguém
sentia inveja de alguém triste. É melhor esconder sua boa sorte. O que me
lembra uma frase de Walter Serner, o dadaísta, autor de Manual para
Enganadores, que dizia que sempre que você se mudar a uma nova cidade deixe que
o rumor de que você tem câncer o preceda, isso reduz a inveja. Seus
competidores já não te levarão tão a sério.
P. O número de críticos que o senhor teve não é de se
desprezar. Habermas, por exemplo, o tachou de “neopagão”, e de coisas piores
por suas considerações em Regras para o Parque Humano sobre a biotecnologia e
as possibilidades de manipulação genética dos seres humanos.
R. Eu cometi muitos erros. É um erro pressupor que as
pessoas irão gostar de você por suas opiniões.
P. Por defender e reivindicar Heidegger, por exemplo?
R. Sim. Mas meu erro principal foi escrever um livro de filosofia
divertido de mais de 900 páginas, Crítica da Razão Cínica, um livro com senso
de humor e, se me permite, com um bom estilo.
P. Pensar o faz feliz?
R. Às vezes. Tenho a doença crônica da idade avançada, a
limitação do tempo e a sensação de que as mulheres bonitas estão ainda mais
distantes do que no passado. Olhe essas garotas aí fora. É terrível.
P. O senhor tem uma predisposição ao politicamente
incorreto, vejo que não só por Heidegger e Nietzsche.
R. Sim, mas isso passará em algumas décadas e se considerará
que era uma moda, da mesma forma que no século XVII ocorreu o movimento do
Ridículo. Evidentemente, esse é mais global. Mas estou convencido de que a
longo prazo irá parecer absurdo.
P. O senhor reconhece mestres muito diferentes, Bloch, Adorno,
Osho, Nietzsche, Lacan, e Valéry e Pavese. Os mestres são encontrados por acaso
ou são procurados?
R. Quando eu era muito jovem não tínhamos mestres e não
usávamos esse conceito. Depois quando li Adorno, Husserl e Bloch tive a
sensação de conhecer verdadeiros mestres. Nos anos 60, viajei à Índia, que era
uma forma de autoexploração.
P. Lá conheceu Rajneesh Osho, que era chamado de guru do
sexo e dos Rolls Royce e que o senhor reivindica. Sua fama discutível não o
preocupa?
R. Em seu caso os escândalos eram uma forma de relações
públicas. Citar Osho como uma influência torna você suspeito. Mas sempre me
interessaram as possibilidades inaceitáveis. Gosto da capacidade de provocação
espiritual de Rajneesh. Faz parte de uma longa tradição de crítica ao ego
metafísico.
P. O senhor também destaca Nietzsche como uma grande
influência.
R. Sim, desde muito cedo. Sempre me acompanhou em minha
evolução em cada etapa. Voltou agora, inclusive. Em sua linha, estou prestes a
publicar um ensaio sobre a arte de inventar Deus, chamo isso de teopoesia.
“As imagens e as metáforas frequentemente têm um valor
conceitual profundo”
P. Esferas I abre com uma citação de A Poética do Espaço de
Gaston Bachelard. Esse livro o influenciou?
R. Sim, acredito que as imagens e as metáforas
frequentemente têm um valor conceitual profundo, e de que não só o discurso
conceitual pode levar consigo introspecções importantes.
P. O senhor se afasta do modelo de filósofo majestático.
R. O filósofo está condenado a citar a si mesmo
continuamente e é um pobre diabo porque precisa compartilhar suas opiniões o
tempo todo. Na Índia diriam que o filósofo tem um karma horrível e por isso é
filósofo.
P. Seria por isso que Karl Popper era tão antipático? Uma
vez me tratou horrivelmente. Mas certamente eu merecia.
R. Era um austríaco frustrado. Foi à Grã-Bretanha, mas nunca
esteve disposto a aprender bem o inglês. Seu verdadeiro problema era que
Wittgenstein sempre estava ali e Wittgenstein estava cercado por uma aura de gênio.
Precisou fazer um grande esforço para manter o tipo. é necessário perdoá-lo.
P. Como a filosofia lida com a ascensão dos animais no
discurso social?
R. Isso demonstra que o espírito da humanidade se movimenta
em círculos, porque começamos como animistas e agora as teses dos animalistas
voltam a estar regidas por esse princípio. Mas ter uma alma significa ser
portador de exigências legais. De modo que não estamos falando somente de
animismo e de dar um tratamento adequado, e sim do que significa reconhecer os
animais como sujeitos. E não unicamente os animais. Li em algum lugar que na
Nova Zelândia deram a um rio a categoria de sujeito e que pode contratar um
advogado.
P. O feminismo é um retorno do matriarcado?
R. Não, o novo feminismo é um movimento mais ou menos
intelectual. Mas as mulheres que tiveram a experiência de maternidade não se
sentem representadas. Deveria perguntar melhor sobre o feminismo a Judith
Butler e a Beatriz.
P. Beatriz?
R. Minha mulher.
P. O senhor sustenta que a arena romana voltou, assim como
um novo teatro da crueldade.
R. Uma nova arena geral e virtual da sociedade midiática de
entretenimento. Uma metarena totalitária. Algo que vai muito mais além da
sociedade do espetáculo de Guy Debord e que serve para dirigir o ressentimento
das massas. Eu mesmo, ao cair um dia em descrédito, fui um desses cristãos
primitivos com problemas no momento da ressurreição porque havia sido devorado
pelos leões e excretado por seus intestinos. Recuperar a forma original nessas
condições é muito difícil.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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