Imagem: Roberta Vázquez
Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 26 MAI 2019
O líder e eu (e ninguém no meio)
O mesmo fenômeno que acaba com as lojas, os cinemas e as
agências de viagem afeta a política – e nos leva ao cesarismo e à frivolidade
Por Ricardo de Querol
Um dos tantos fenômenos imparáveis trazidos pela revolução
digital se chama desintermediação. É o que nos leva a reservar voos e hotéis
sem passar por uma agência de viagens, e a ter conta corrente sem pisar numa
agência bancária. É o que permite que marcas vendam roupas na Internet sem
precisar de loja alguma, e que a Netflix produza cinema sem projetá-lo em salas
de cinema. A desintermediação poupa custos e incomodidades a empresas e
usuários, claro, mas deixa vítimas evidentes: as agências de viagem, as
agências bancárias, as lojas de roupa, as salas de cinema. O cliente sempre tem
razão. Nos Estados Unidos, soam os alarmas pela velocidade com que fecham os
centros comerciais, que em muitos lugares são o verdadeiro centro, a praça das
pequenas cidades que não têm forma de cidade, e sim de urbanizações espalhadas
entre as rodovias.
Temos um consumo sem intermediários. Mas podemos ter uma
democracia sem intermediários? Uma democracia em que o líder diz que só
responde ante o povo, sem estruturas como os aparatos dos partidos? Onde o
líder se comunica com seus seguidores diretamente, evitando o jornalismo
profissional? O mundo digital (embora não só ele) debilitou os establishments
político e midiático. É o que Steven Levitsky chama de “democratização das
democracias”: antes, os partidos controlavam as candidaturas, e a informação
fluía por diversos veículos. Ambas as estruturas tendiam à moderação: competiam
para seduzir o cidadão comum.
Hoje, estamos fragmentados e polarizados. Emerge um novo
cesarismo. Dirigentes estridentes assumem o controle de partidos velhos,
forçados a seguir suas ideias inesperadas, ou criam partidos mais personalistas
que os de antes. Como são eleitos nas primárias (nos países com essa regra
partidária), não acham que devem nada a ninguém em seu partido, nem se sentem
obrigados a integrar suas correntes. Como desprezam os meios de comunicação,
não se submetem a coletivas nem a entrevistas incômodas. Em vez disso,
comunicam-se pelo Twitter ou fazem circular suas mensagens (quando não notícias
falsas) pelo WhatsApp.
Nas redes sociais, manda a mensagem simples (e
unidirecional, claro). A política compete ali com o entretenimento,
mimetizando-se com ele. Numa democracia sem intermediários, numa sociedade
hiperdigitalizada, na política do espetáculo, somos cidadãos ou somos
audiência? Eleitores ou followers? Um voto vale o mesmo que um like? Um meme
vale o mesmo que um programa político? Existem mais vozes, mas há mais diálogo?
A ágora era uma praça de verdade, uma esplanada onde os
antigos gregos se reuniam para debater os assuntos públicos da cidade. Ali
nasceu a democracia. Que não aconteça com a ágora o que aconteceu com os
centros comerciais presos entre as rodovias. Experimentamos coisas, temos que
fazer isso, mas não encontramos nada melhor que a velha invenção dos gregos. E
nem antes nem agora estamos a salvo dos demagogos.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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