Madri, 17 de setembro de 2016
Sou intersexual, não hermafrodita
As pessoas que não se encaixam na atribuição tradicional do
sexo pedem maior visibilidade, sem clichês ou desinformação
Por Barbara Ayuso
Até os 18 anos, Claudia não conseguia dar nome ao que lhe
acontecia. Não tinha menstruação e mantinha alguma lembrança borrada de uma
cirurgia quando pequena, mas nada além disso. Até que por uma mudança na
clínica, o médico pediu seu prontuário à enfermeira: “Me traga a ficha da
Síndrome de Morris”, ouviu. Memorizou o nome e depois consultou-o na
enciclopédia médica de sua colega de apartamento. Ali encontrou o pedaço de sua
vida que faltava. “Senti alívio, porque finalmente soube o que tinha, mas o que
realmente pensei foi: ninguém vai saber sobre isso”. Claudia descobriu que
tinha nascido com a síndrome da insensibilidade parcial aos andrógenos, um dos
tipos de intersexualidade mais comuns. Tinha as características físicas de uma
mulher, mas os códigos genéticos de homem.
“Somos intersexuais, não hermafroditas. Se dá como certo que
o homem é XY e a mulher XX, mas não em todos os casos”, destaca. Ela tem
consciência de que a percepção social continua associando o termo grego a todas
as condições de intersexualidade e persiste a ideia de que são pessoas com
genitais masculinos e femininos ao mesmo tempo. Não é assim. O mito, o tabu e a
lenda distorcem uma realidade muito mais complexa. “Há mais de 40 causas
diferentes para sua origem e a cada ano alguma nova é descrita. Há muitas
possibilidades, a intersexualidade acontece quando há uma discrepância entre o
sexo genético, o da gônada e o dos genitais”, explica a médica Laura Audí,
pesquisadora do grupo de Endocrinologia Pediátrica do hospital Vall d’Hebron,
em Barcelona.
A OMS estima em 1% a porcentagem de pessoas intersexuais no
mundo todo, mas os dados sobre a prevalência na Espanha são uma incógnita:
“Podemos estimar criando paralelos com as estatísticas americanas, apesar de
não ser de todo exato. Estaríamos falando que por ano nascem 250 pessoas
intersexuais na Espanha”, explica o jurista Daniel J. Garcia, especialista no
tema e autor do livro Sobre el derecho de los hermafroditas (sem tradução ao
português).
Os bebês como Claudia, com algum tipo de discrepância genital,
trazem consigo uma pergunta espinhosa: menino ou menina? A lei espanhola obriga
a registrar um recém-nascido no Registro Civil sob um dos sexos em um prazo de
72 horas. Um jogo de dados contra o relógio, no qual os pais ouvem a equipe
médica interdisciplinar (endocrinologistas, pediatras, cirurgiões e
geneticistas) que estuda as características preponderantes no bebê para
atribuir-lhe o gênero. A decisão fica na mão dos pais, mas as associações
ativistas denunciam que durante muitos anos a informação que lhes foi
proporcionada era escassa e ambígua, e ainda persiste um grande déficit. “Era
tal a confusão que eu mesma tive de explicar para minha mãe quando soube aos 18
anos o que exatamente tinha me acontecido”, lembra Claudia. Para seus pais, há
36 anos, chegou-se a recomendar que não pesquisassem muito sobre o assunto e
que fossem discretos.
"Os traumas das operações quando você é tão pequeno
ficam no corpo, não passam por sua mente"
A equipe médica estabelece ou não a necessidade de realizar
cirurgias no bebê para redesignar seu sexo, seja com a extirpação das gônadas,
a reconstrução genital ou até um tratamento hormonal posterior. Algo que
suscita debate entre profissionais, ativistas e afetados. É preferível designar
um sexo cirurgicamente para que o bebê cresça com um determinado, ou deve-se
postergar a decisão para que seja a própria criança quem desenvolva um gênero
ou outro?
Mutilação, cirurgia e falta de consenso
Quando começou a reconstruir sua história, Claudia descobriu
que aos dois anos lhe foram extirpadas as gônadas masculinas que tinha alojadas
no abdome. Não se lembra dessa intervenção, mas conserva alguma memória da que
sofreu dois anos depois, uma cirurgia de “normalização” para padronizar sua
vagina.
"Por que com 9% se justifica a mutilação [em pessoas
intersexuais] e com outras de risco mais alto isso não acontece?"
Conforme foi compondo o quebra-cabeças de seu passado, foi
processando também as cicatrizes invisíveis. “Os traumas das operações quando
você é tão pequeno ficam em seu corpo, não passam por sua mente. Não são
processados cognitivamente”, afirma. A terapia a ajudou a encontrar essas
lembranças que estavam alojadas em algum lugar de sua mente, escondidas.
“Descobri, por exemplo, um monte de desenhos de mãos atadas. Na época não soube
do que se tratava, mas depois associei a que no pós-operatório da segunda
intervenção me amarraram para que eu não tocasse os pontos”, explica.
Quem adota a postura mais contrária à cirurgia pediátrica
sustenta que o protocolo atual estimula que os pais tenham acesso à operação,
abordando exclusivamente os riscos de não intervir ou de adiar para a
puberdade. “O manual para médicos usado nos EUA, da John Hopkins University,
recomenda utilizar a palavra câncer para convencer os pais da necessidade de
intervenção. Usa-se uma terminologia médica, como má-formação, câncer ou tumor,
que dá medo. Quando dizem que seu filho terá câncer no futuro, normalmente vão
assinar esse consentimento”, argumenta Daniel.
"O principal problema que enfrentam é a solidão, o
desconhecimento e a sensação de isolamento depois do diagnóstico"
Um alarme superdimensionado porque “as estatísticas do
câncer, na realidade, são mínimas”, afirma, citando uma campanha realizada na
Austrália na qual se comparava a intersexualidade com o câncer de mama. “Cerca
de 12,3% das mulheres correm o risco de sofrer de câncer de mama e mesmo assim
não se extirpam todas as mulheres ao nascer. Porém, o risco de desenvolver um
tumor, que não seja câncer, nas pessoas intersexuais é de 9%. Em muitas
síndromes é até 0, então por que com 9% se justifica a mutilação e quando há
outros riscos mais altos nem nos passa pela cabeça?”, pergunta-se.
A doutora Audí esmiuça esses dados e defende que a
incidência do câncer não se dá em todos os casos, mas em alguns: “Se as gônadas
são muito disgenéticas, ou seja, muito mal desenvolvidas, têm um alto potencial
de malignização. Nesses casos, realmente se sabe que o potencial de
desenvolvimento de tumores é alto, por isso os profissionais continuam
aconselhando sua extirpação”, afirma. Considera que no debate das cirurgias não
se deve adotar uma postura simplista e defende uma solução caso a caso. Apesar
de reconhecer que no passado foram feitas intervenções “criticáveis e
precoces”, atualmente os protocolos são mais cuidadosos e respeitosos com o
bebê e os pais, que recebem melhores informações. “Para evitar uma imposição,
não se pode estabelecer outra imposição como a proibição absoluta. É realmente
voltar a épocas impositivas e não é lógico”, ressalta.
De sua parte, as associações espanholas não têm uma postura
consensual. “Não há uma decisão correta sobre o que fazer, só existe o que é
correto para você e para sua filha”, garante a Associação Espanhola de
Hiperplasia Suprarrenal Congênita (HSC), outra das condições habituais da
intersexualidade.
Na Grapsia, que reúne as pessoas afetadas pela Síndrome da
Insensibilidade aos Andrógenos, também evita-se a opção única. Seus
profissionais acompanham, assessoram e informam os afetados, mas sem
criminalizar as escolhas dos pais. “Defendemos que se informe corretamente
sobre as alternativas, e que se faça o melhor para o benefício psicológico do
paciente e de sua família”, afirma Yolanda Melero, psicóloga e terapeuta da associação.
Suas demandas passam por incluir nos grupos multidisciplinares pessoas
intersexuais com as quais os pais possam se consultar, para ampliar a
informação disponível e para que o sistema de saúde incorpore centros de
referência aos quais encaminhar as famílias com filhos afetados para lhes
garantir uma atenção integral. “O principal problema enfrentado é a solidão, o
desconhecimento e a sensação de isolamento depois do diagnóstico”, destaca
Melero.
Contra o gênero binário
Quando foram comunicados de que seu bebê tinha uma desordem
do desenvolvimento sexual e lhes recomendaram operá-lo, esses pais decidiram
procurar informação por conta própria, sem ouvir os médicos. Encontraram
testemunhos de intersexuais operados na infância que, quando se desenvolveram,
se identificaram com o gênero contrário ao que lhes tinha sido atribuído, e
também com outros que não tinham passado pelo cirurgião e tinham uma vida
normal. Decidiram não operar o bebê, que hoje tem dois anos, porque consideram
as cirurgias pediátricas uma “mutilação”, como também estabelece a Organização
Internacional de Intersexuais (OII). O casal, que quer preservar sua intimidade
e anonimato, decidiu que seria seu filho quem decidiria no futuro o que fazer e
consequentemente o educariam sem nenhum papel de gênero. Não há, até o momento,
um “ele ou ela”. “As criaturas não precisam ser rotuladas, a necessidade é dos
pais diante da sociedade que vive com uma venda nos olhos”, afirmam.
Defendem uma mudança mais radical na legislação, que vá além
da aprovada pela Alemanha, que estabeleceu um “terceiro gênero ou gênero X”e
que obriga a registrar o bebê em nenhuma das duas categorias. De fato,
consideram que isso lhes estigmatiza ainda mais, porque os rotula e obriga que
a intersexualidade seja descrita como uma patologia. Apostam em subverter
completamente o código binário de homem e mulher. “É preciso eliminar a
categoria do sexo do termo jurídico, do DNI [equivalente ao nosso RG] e do
Código Civil”, apoia Daniel J. Garcia. Em sua opinião, isso derrubaria o
argumento de “urgência jurídica” que os médicos alegam para operar as crianças
com genitais ambíguos, porque não existiria a necessidade de determinar em 72
horas se são de sexo feminino ou masculino. “Do ponto de vista jurídico,
pode-se pensar que haveria problemas, mas isso não afetaria nada além da lei de
sucessão à Coroa, que estabelece diferença entre homem e mulher. Para as
certidões de nascimento se informaria simplesmente quem deu à luz, e nos casos
de violência de gênero, como aconteceu com os transexuais, também não haveria
problema”, afirma. Deixa o caminho aberto para que o registro seja voluntário.
Desafios do futuro
Controvérsias a parte, a maioria dos setores reconhece que,
apesar de lentos, os avanços acontecem. A Comunidade de Madri incorporou
recentemente em sua Normativa de Identidade e Expressão de Gênero e Igualdade
Social duas das demandas de muitas organizações: a despatologização e a
proibição da cirurgia externa por motivos que não estejam relacionados a risco
para a saúde. “É a primeira lei dentro das comunidades espanholas, terceira no
mundo depois de Malta e Chile que proíbe isso, apesar de na verdade esta lei
não estabelecer qualquer tipo de sanção e se enquadrar no soft low”, especifica
García. Também os protege de exames e exposições abusivas, que muitos
intersexuais denunciam ter sofrido.
Além disso, nos próximos anos serão implantados protocolos e
iniciativas destinados a paliar as deficiências do sistema de saúde no
atendimento aos intersexuais. Audí, que está à frente da matéria há cerca de 40
anos, destaca o projeto DSD-Life e outro de âmbito europeu chamado COST BM1303.
“As pessoas adultas afetadas por essas condições são reunidas e se analisa o
tratamento que receberam de todos os pontos de vista, e as queixas que têm.
Sabendo como estão, o que foi feito a eles no início e depois poderemos
corrigir muita coisa”, explica.
Graças à terapia, à Grapsia e a seu empenho pessoal, Claudia
vive hoje sua condição com naturalidade. Não sofreu a rejeição que imaginava
quando confessou a seus conhecidos, apesar de dizer que o estigma e certas
lendas persistem. “Pensei que me veriam como um monstro”, lembra. Agora, suas
amigas se esquecem com frequência e às vezes lhe pedem um absorvente. Perdeu a
sensibilidade com a operação, mas não é a perda que mais lamenta. “Se pudesse
voltar atrás, gostaria de ter tido a possibilidade de escolher operar-me ou
não. A oportunidade de terem explicado tudo claramente a meus pais”. Só existe
uma direção: para frente. E espera que no futuro isso não torne a ocorrer.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário