Publicado originalmente no site Huffpost Brasil, em 14 de janeiro de 2019
Mayume 'Maldita', a dona do poder de escolha no sexo e na pornografia
Mayume 'Maldita', a dona do poder de escolha no sexo e na pornografia
"Sexualidade feminina nunca cai no prazer. Fala-se
disso, mas sempre de saúde, maternidade."
RYOT Studio & CUBOCC
“O primeiro conselho que ouvi foi ‘nunca coloque isso no seu
currículo’”. Acatou. Hoje, possui duas versões, cada uma para um tipo de setor.
Diz que os dois não conversam, apesar de não ocultar sua dupla atuação. “Minha
cara estar aí e eu não escondo de ninguém o que eu faço”. Thais Mayume – ou
Mayume Maldita, dependendo do currículo recebido –, 32 anos, trabalha como
coordenadora de edição de vídeo na área de transmídia para internet de uma
emissora, além ser editora – e já ter sido diretora também – em uma produtora
de pornô alternativo e atuar na PopPorn, um festival de filmes e arte ligado à
pornografia. Há quase dez anos, essas são suas atividades.
E nesse período, acostumou-se com alguns olhares. E alguns
comentários. “A primeira coisa que falam é ‘mas você é tão inteligente’ ...
como se trabalhar em uma área ligada a sexo fosse menor, como se não fosse uma
escolha. Se um cara conta isso ele é um gênio que conseguiu unir duas coisas
que pensam que só homens gostam: dinheiro e sexo”. Nessa quase uma década na
área, nunca chegou a sofrer preconceito, mas sabe que escolher trabalhar com
sexo sendo uma mulher pode gerar um certo estranhamento. Para ela, isso tem
relação com questões culturais ligadas ao tema e alguns tabus. “Quando a gente
fala de pornografia e sexo as pessoas acham que é só meteção, mas existe um ato
político de ser dona do seu corpo e poder transar... estamos em 2018 e ainda é
um ato político gozar e não aceitar gente meia bomba”.
Mayume enxerga dessa forma e defende essa postura em relação
ao poder de escolha relacionado ao sexo. “Sei que sou muito privilegiada porque
sou uma mina gorda, totalmente fora do padrão e consigo falar não para qualquer
cara que eu estiver saindo e não gostar do que está acontecendo, mas sei que muita
mina não consegue fazer isso por causa de criação, autoestima destruída pelos
meios e mídias”.
Quando a gente fala de pornografia e sexo as pessoas acham
que é só 'meteção'.
Sua aproximação com o tema ocorreu de forma natural. Mayume
conta que sempre teve interesse por fotos de nudez e pornografia, mas que não
se identificava muito com a produção mainstream e, nessa época, o acesso à
internet não era como hoje. O consumo desse tipo de produção era quase
clandestina, digamos assim. “Se você queria ver pornografia tinha que ir a
locadora, entrar naquela salinha, levar a fita até o cara e um monte de coisa
que você não quer fazer, ainda mais quando você é mulher”. Assim, começou a ter
contato com produções alternativas, como espectadora, até que participou de um
workshop da produtora e não deixou mais de trabalhar com isso, sempre com esse
olhar um pouco mais abrangente sobre o produto audiovisual. “O alternativo é
esse lugar de outros corpos. Óbvio que caímos em coisas semelhantes ao
mainstream, nem sempre você foge porque ainda falamos de um sistema capitalista
e a demanda é o que faz o produto final. Mas basicamente é tentar fugir daquele
lance tão hétero, para homens, fazer hiper close. Óbvio que tem, mas não é a
prioridade, inverte um pouco a ótica. Tem a ver com quem está na frente da
câmera e com quem conduz, quem conta a história”.
Com o tempo, esse tipo de produção e olhar começou a ganhar
mais espaço. Tanto que neste ano o festival PorPorn, do qual Mayume fez a
curadoria, foi só com filmes dirigidos por mulheres. Além disso, o festival
busca trazer trabalhos que ajudem a debater sexualidade na terceira idade,
falar de sexualidade de pessoas deficientes, entre outras questões e cada passo
dado nessa área é algo a ser reconhecido. “Há bastante mudança e temos que ter
esse olhar. Sexualidade feminina nunca cai no prazer. Fala-se disso, mas sempre
de saúde, espiritualidade, maternidade e pode ter o seu papel educativo, sem
tirar o peso do estado e da família da dar educação sexual, mas pornografia é
entretenimento”.
Sexualidade feminina nunca cai no prazer.
Mayume vê também um desenvolvimento no setor como um todo, o
que ajuda a incentivar outros artistas e profissionais da área. “Não estamos no
lugar ideal, mas tivemos mudanças significativas, mais mulheres fazendo, mais
gente discutindo. Temos filmes sobre assédio e para falar de sexualidade temos
que falar de assédio, são mudanças importantes”. Fora isso, ela destaca que a
produção de pornografia sempre foi um ambiente natural para experimentações.
“Pornografia no mundo todo é onde as pessoas testam coisas. Primeiro teste com
drone foi num filme pornô. Realidade virtual também ouvi falar pela primeira
vez para gravar pornô”.
Isso tudo apenas para mostrar que o setor tem os seus
diferenciais e inovações, como qualquer outro. Pode parecer óbvio, mas nem
sempre é simples sair dos estereótipos que são criados. ”É fora dos lugares
engraçados. As pessoas acham que pornografia é engraçado de trabalhar e é
cansativo como em qualquer outro lugar, com a diferença de que as pessoas estão
nuas e você depende da ereção de alguém”.
E sobre romper com essas ideias padronizadas Mayume já está
muito acostumada. Lida com isso há muito tempo. Acostumou-se com os olhares.
Não se prende a isso, é verdade, mas percebe que acontece. Quando chegou na
natação para aprender a nadar com mais de 25 anos, por exemplo, foi assim; nos
dias que faz aula de pole dance com algum turma nova também; na experiência de
imersão de surf sem nunca ter ficado em pé em uma prancha antes ou quando tira
fotos pelada em qualquer lugar que tiver vontade – e posta na internet – também
repara nisso. “Não acho ruim, acho que tem um pouco a ideia de que se ‘essa
mina está fazendo eu posso fazer também’”. E ela gosta de fazer o que tem
vontade, sem essa coisa de achar que não é para ela. Como o que aconteceu com a
algo que virou um ritual para ela: expor seu corpo.
Me incomodava muito esse lugar de não poder olhar para uma
foto e ver uma mina gorda e falar que ela é bonita.
Para Mayume, tirar fotos nua e ficar pelada nunca foi um
problema. Mas passou pelo seu processo de autoestima e aceitação também. Ela
lembra que levou um tempo para se sentir completamente bem e bonita. “Cresci no
Brasil sendo japonesa, mas não sendo amarela como as japonesas, não tendo
cabelo liso, não tendo cinturinha. Eu não parecia com ninguém da minha sala de
aula, nem com o japonês da sala de aula. É aquele lugar de minha beleza não
existe, então ela não é beleza.
“Depois de engordar piorou, minha beleza já não existia e
todo mundo fala que ser gordo é errado. Tive muitas sorte ao longo da vida”.
Essa sorte se deve aos relacionamentos amorosos que teve – nenhum com pessoas
que destruíram sua autoestima – e a sua família. Criada pelos avós japoneses, pode
desenvolver seus gostos e sua identidade desde pequena. “Meu avô é o cara que
me mimou. A minha família, apesar de ser japonesa, é pouco machista no sentido
de construção social no geral, que foi uma sorte. Então cresci com meu avô
cortando minha unha, meu cabelo, me ensinando português e matemática, brincando
de boneca, me ajudando a fazer roupa de boneca”.
É aquele lugar de minha beleza não existe, então ela não é
beleza.
E todo esse carinho que recebeu de seu avô a ajudou a moldar
sua personalidade e teve espaço para experimentar o que queria. “Sempre fomos
muito próximos, ele é a pessoa que mais apostou em mim. Não é normal ser filha de
pobre e querer fazer fotografia e ele me deu a câmera dele que ele trouxe do
Japão. Fui fazer faculdade de Rádio e TV quando todos achavam que eu ia fazer
direito e ele falou que ia dar tudo certo, ele sempre foi essa pessoa”. Aliado
a isso, na adolescência já começou a se aproximar de debates feministas e logo
estava envolvida com militância. “O que eu acho incrível da militância é que
nunca me faz deixar de aprender coisas, eu nunca mais estagnei e nos últimos
anos tenho visto que mais mulheres têm saído desse lugar de dormência para
questionar. O que acho muito importante. O melhor lugar do ativismo que estou é
o agora, mas estou ansiosa pelo futuro”.
Hoje, entre as questões principais que abraça, está o Sex
Positive e o Fat Pride. Trabalha com isso, escreve sobre isso, vive isso. E foi
assim que criou uma de suas tradições. “Me incomodava muito esse lugar de não
poder olhar para uma foto e ver uma mina gorda e falar que ela é bonita. E está
pelada e não está tentando se esconder ou parecer ser outra coisa. Sempre tirei
foto pelada, mas não publicava. Aí um fotógrafo me chamou para fazer um ensaio,
fiz e entrou em uma crescente. Coloquei como regra que sempre ia tirar uma foto
pelada nos lugares que eu fosse. Mesmo porque é muito bom ficar pelado, as pessoas
deviam experimentar mais, tomar sol no corpo todo. Estamos numa fase de falta
de vitamina D, gente. Tomem sol”.
Não há motivo para ter vergonha. Aqui, é só orgulho.
Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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