terça-feira, 15 de janeiro de 2019

“O primeiro conselho que ouvi foi ‘nunca coloque isso no seu currículo"


Publicado originalmente no site Huffpost Brasil, em 14 de janeiro de 2019

Mayume 'Maldita', a dona do poder de escolha no sexo e na pornografia

"Sexualidade feminina nunca cai no prazer. Fala-se disso, mas sempre de saúde, maternidade."

RYOT Studio & CUBOCC

“O primeiro conselho que ouvi foi ‘nunca coloque isso no seu currículo’”. Acatou. Hoje, possui duas versões, cada uma para um tipo de setor. Diz que os dois não conversam, apesar de não ocultar sua dupla atuação. “Minha cara estar aí e eu não escondo de ninguém o que eu faço”. Thais Mayume – ou Mayume Maldita, dependendo do currículo recebido –, 32 anos, trabalha como coordenadora de edição de vídeo na área de transmídia para internet de uma emissora, além ser editora – e já ter sido diretora também – em uma produtora de pornô alternativo e atuar na PopPorn, um festival de filmes e arte ligado à pornografia. Há quase dez anos, essas são suas atividades.

E nesse período, acostumou-se com alguns olhares. E alguns comentários. “A primeira coisa que falam é ‘mas você é tão inteligente’ ... como se trabalhar em uma área ligada a sexo fosse menor, como se não fosse uma escolha. Se um cara conta isso ele é um gênio que conseguiu unir duas coisas que pensam que só homens gostam: dinheiro e sexo”. Nessa quase uma década na área, nunca chegou a sofrer preconceito, mas sabe que escolher trabalhar com sexo sendo uma mulher pode gerar um certo estranhamento. Para ela, isso tem relação com questões culturais ligadas ao tema e alguns tabus. “Quando a gente fala de pornografia e sexo as pessoas acham que é só meteção, mas existe um ato político de ser dona do seu corpo e poder transar... estamos em 2018 e ainda é um ato político gozar e não aceitar gente meia bomba”.

Mayume enxerga dessa forma e defende essa postura em relação ao poder de escolha relacionado ao sexo. “Sei que sou muito privilegiada porque sou uma mina gorda, totalmente fora do padrão e consigo falar não para qualquer cara que eu estiver saindo e não gostar do que está acontecendo, mas sei que muita mina não consegue fazer isso por causa de criação, autoestima destruída pelos meios e mídias”.

Quando a gente fala de pornografia e sexo as pessoas acham que é só 'meteção'.

Sua aproximação com o tema ocorreu de forma natural. Mayume conta que sempre teve interesse por fotos de nudez e pornografia, mas que não se identificava muito com a produção mainstream e, nessa época, o acesso à internet não era como hoje. O consumo desse tipo de produção era quase clandestina, digamos assim. “Se você queria ver pornografia tinha que ir a locadora, entrar naquela salinha, levar a fita até o cara e um monte de coisa que você não quer fazer, ainda mais quando você é mulher”. Assim, começou a ter contato com produções alternativas, como espectadora, até que participou de um workshop da produtora e não deixou mais de trabalhar com isso, sempre com esse olhar um pouco mais abrangente sobre o produto audiovisual. “O alternativo é esse lugar de outros corpos. Óbvio que caímos em coisas semelhantes ao mainstream, nem sempre você foge porque ainda falamos de um sistema capitalista e a demanda é o que faz o produto final. Mas basicamente é tentar fugir daquele lance tão hétero, para homens, fazer hiper close. Óbvio que tem, mas não é a prioridade, inverte um pouco a ótica. Tem a ver com quem está na frente da câmera e com quem conduz, quem conta a história”.

Com o tempo, esse tipo de produção e olhar começou a ganhar mais espaço. Tanto que neste ano o festival PorPorn, do qual Mayume fez a curadoria, foi só com filmes dirigidos por mulheres. Além disso, o festival busca trazer trabalhos que ajudem a debater sexualidade na terceira idade, falar de sexualidade de pessoas deficientes, entre outras questões e cada passo dado nessa área é algo a ser reconhecido. “Há bastante mudança e temos que ter esse olhar. Sexualidade feminina nunca cai no prazer. Fala-se disso, mas sempre de saúde, espiritualidade, maternidade e pode ter o seu papel educativo, sem tirar o peso do estado e da família da dar educação sexual, mas pornografia é entretenimento”.

Sexualidade feminina nunca cai no prazer.

Mayume vê também um desenvolvimento no setor como um todo, o que ajuda a incentivar outros artistas e profissionais da área. “Não estamos no lugar ideal, mas tivemos mudanças significativas, mais mulheres fazendo, mais gente discutindo. Temos filmes sobre assédio e para falar de sexualidade temos que falar de assédio, são mudanças importantes”. Fora isso, ela destaca que a produção de pornografia sempre foi um ambiente natural para experimentações. “Pornografia no mundo todo é onde as pessoas testam coisas. Primeiro teste com drone foi num filme pornô. Realidade virtual também ouvi falar pela primeira vez para gravar pornô”.

Isso tudo apenas para mostrar que o setor tem os seus diferenciais e inovações, como qualquer outro. Pode parecer óbvio, mas nem sempre é simples sair dos estereótipos que são criados. ”É fora dos lugares engraçados. As pessoas acham que pornografia é engraçado de trabalhar e é cansativo como em qualquer outro lugar, com a diferença de que as pessoas estão nuas e você depende da ereção de alguém”.

E sobre romper com essas ideias padronizadas Mayume já está muito acostumada. Lida com isso há muito tempo. Acostumou-se com os olhares. Não se prende a isso, é verdade, mas percebe que acontece. Quando chegou na natação para aprender a nadar com mais de 25 anos, por exemplo, foi assim; nos dias que faz aula de pole dance com algum turma nova também; na experiência de imersão de surf sem nunca ter ficado em pé em uma prancha antes ou quando tira fotos pelada em qualquer lugar que tiver vontade – e posta na internet – também repara nisso. “Não acho ruim, acho que tem um pouco a ideia de que se ‘essa mina está fazendo eu posso fazer também’”. E ela gosta de fazer o que tem vontade, sem essa coisa de achar que não é para ela. Como o que aconteceu com a algo que virou um ritual para ela: expor seu corpo.

Me incomodava muito esse lugar de não poder olhar para uma foto e ver uma mina gorda e falar que ela é bonita.

Para Mayume, tirar fotos nua e ficar pelada nunca foi um problema. Mas passou pelo seu processo de autoestima e aceitação também. Ela lembra que levou um tempo para se sentir completamente bem e bonita. “Cresci no Brasil sendo japonesa, mas não sendo amarela como as japonesas, não tendo cabelo liso, não tendo cinturinha. Eu não parecia com ninguém da minha sala de aula, nem com o japonês da sala de aula. É aquele lugar de minha beleza não existe, então ela não é beleza.

“Depois de engordar piorou, minha beleza já não existia e todo mundo fala que ser gordo é errado. Tive muitas sorte ao longo da vida”. Essa sorte se deve aos relacionamentos amorosos que teve – nenhum com pessoas que destruíram sua autoestima – e a sua família. Criada pelos avós japoneses, pode desenvolver seus gostos e sua identidade desde pequena. “Meu avô é o cara que me mimou. A minha família, apesar de ser japonesa, é pouco machista no sentido de construção social no geral, que foi uma sorte. Então cresci com meu avô cortando minha unha, meu cabelo, me ensinando português e matemática, brincando de boneca, me ajudando a fazer roupa de boneca”.

É aquele lugar de minha beleza não existe, então ela não é beleza.

E todo esse carinho que recebeu de seu avô a ajudou a moldar sua personalidade e teve espaço para experimentar o que queria. “Sempre fomos muito próximos, ele é a pessoa que mais apostou em mim. Não é normal ser filha de pobre e querer fazer fotografia e ele me deu a câmera dele que ele trouxe do Japão. Fui fazer faculdade de Rádio e TV quando todos achavam que eu ia fazer direito e ele falou que ia dar tudo certo, ele sempre foi essa pessoa”. Aliado a isso, na adolescência já começou a se aproximar de debates feministas e logo estava envolvida com militância. “O que eu acho incrível da militância é que nunca me faz deixar de aprender coisas, eu nunca mais estagnei e nos últimos anos tenho visto que mais mulheres têm saído desse lugar de dormência para questionar. O que acho muito importante. O melhor lugar do ativismo que estou é o agora, mas estou ansiosa pelo futuro”.

Hoje, entre as questões principais que abraça, está o Sex Positive e o Fat Pride. Trabalha com isso, escreve sobre isso, vive isso. E foi assim que criou uma de suas tradições. “Me incomodava muito esse lugar de não poder olhar para uma foto e ver uma mina gorda e falar que ela é bonita. E está pelada e não está tentando se esconder ou parecer ser outra coisa. Sempre tirei foto pelada, mas não publicava. Aí um fotógrafo me chamou para fazer um ensaio, fiz e entrou em uma crescente. Coloquei como regra que sempre ia tirar uma foto pelada nos lugares que eu fosse. Mesmo porque é muito bom ficar pelado, as pessoas deviam experimentar mais, tomar sol no corpo todo. Estamos numa fase de falta de vitamina D, gente. Tomem sol”.

Não há motivo para ter vergonha. Aqui, é só orgulho.

Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com

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