Publicado originalmente no site da revista PLANETA Ed. 538, em 24/05/2018
Masculino, Feminino, mais ou menos
Macho ou fêmea? A pergunta parece banal, mas a resposta é
complexa. O que define o sexo de um indivíduo? Os cromossomos? Os hormônios? A
aparência dos órgãos genitais? Que fazer quando esses elementos entram em
contradição?
Por Luis Pellegrini
A ideia de só existirem dois sexos é simplista e não
corresponde à realidade da natureza humana. É o que afirma, em síntese, um
longo artigo publicado recentemente na prestigiosa revista científica Nature.
Mesmo não sendo novidade na comunidade de biólogos, a concepção de um
“espectro” ou de uma “sucessão” de sexos está longe de ser conhecida do grande
público. Poucos sabem que a presença ou ausência de um cromossomo Y não é
suficiente para definir um macho ou uma fêmea de forma absoluta.
Na verdade, a pesquisa científica – que aqui também inclui a
psicologia – aproxima-se cada vez mais da convicção de que o sexo masculino ou
o feminino puros, absolutos, simplesmente não existem. Cada um de nós é uma das
infinitas combinações de componentes masculinos e femininos. Nesse sentido, o
conjunto dos seres humanos é tão diversificado que, atualmente, pode-se afirmar
que a equação sexual de um indivíduo faz parte da sua própria identidade
pessoal. Assim sendo, na espécie humana, existiriam tantos sexos quanto o
número de seres humanos que caminham, já caminharam ou caminharão na superfície
deste planeta.
Genética fluida
O sexo cromossômico de uma pessoa pode dizer uma coisa, mas
suas gônadas (ovários ou testículos), ou sua anatomia podem dizer outra
diferente. Para alguns cientistas, uma pessoa em cada grupo de cem apresenta
algum tipo de anomalia do desenvolvimento sexual. Mas essas anomalias não
resultam necessariamente em patologias e não contam nada sobre a sexualidade
dos indivíduos afetados. No que diz respeito à genética, a fronteira entre os
sexos se mostra ainda mais fluida. Ao mesmo tempo, a hipótese comumente aceita
segundo a qual todas as células contêm o mesmo número de genes é errônea. Tais
constatações explicam diversas doenças cromossômicas, como a síndrome de Turner
(quando o indivíduo tem somente um cromossomo X, em vez de um par) ou a
síndrome de Klinefelter (quando o indivíduo possui três cromossomos – XXY –, em
vez de dois).
Cada um de nós combina componentes masculinos e femininos de
forma única
Foto: Luciano Marques
Os cientistas descobriram também que as células XX e XY se
comportam de maneira diferente, mas que isso pode acontecer independentemente
da ação dos hormônios sexuais. Portanto, se você quiser saber se alguém é homem
ou mulher, os especialistas dizem que o melhor é perguntar… e aceitar
tranquilamente a resposta. Essa não é a primeira vez que a revista Nature trata
da questão. Um artigo publicado em fevereiro de 2013 voltava a trazer para o
primeiro plano da ciência o debate a respeito do sexo e de como é impossível
defini-lo em termos binários. Mesmo assim, naquele ano a ideia estava longe de
ser novidade. Em 1968, Keith L. Moore havia definido, em artigo na revista
Journal of the American Medical Association, nove componentes da identidade
sexual. Depois dele, em 1993, Ann Fausto Sterling, num artigo publicado na
revista The Sciences, sugeriu a existência de cinco sexos.
Atribuição forçada
A compreensão do sexo como uma função humana de largo
espectro permite levar em conta a grande quantidade de variações cromossômicas,
hormonais ou outras do ser humano. São essas variações que fazem com que
determinadas pessoas nasçam com órgãos genitais cuja aparência não corresponde
à norma definida em termos médicos, ou com combinações de cromossomos menos
habituais (XXY), ou com insensibilidade a determinados hormônios. Por exemplo,
uma insensibilidade aos hormônios andrógenos (masculinos) pode fazer com que um
indivíduo com cromossomos XY possua testículos internos, ao mesmo tempo que
apresenta órgãos genitais externos e características fisiológicas próprias do
sexo feminino.
A Metamorfose de Hermafrodita e Salmacis:
no mito grego,
masculino e feminino num só ser
Foto: Divulgação
Na maioria dos casos, essas formas de intersexualidade
(palavra que veio substituir o estigmatizado termo “hermafroditismo”) não
causam problemas de saúde. No entanto – por razões predominantemente culturais
–, nossa concepção de sexo se ancora num sistema binário, que leva a que seja
“atribuído” um sexo aos que nascem como intersexuais, por meio de cirurgia dos
órgãos genitais e/ou terapias hormonais. Trata-se de uma mutilação muitas vezes
não consentida, por ocorrer quase sempre em tenra idade e por decisão expressa
dos pais. Essa é a opinião da imensa maioria das associações de defesa dos
direitos dos intersexuais. Em 2015, Malta, arquipélago localizado no Sul da
Europa, tornou-se o primeiro país onde as operações desnecessárias em crianças
intersexuais são proibidas.
Ambiguidade esportiva
Desde meados do século passado, as organizações desportivas
fazem testes para determinar quem está apto para concorrer na categoria
feminina ou na masculina. Mas os resultados foram com certa frequência pouco
conclusivos e, diversas vezes, desastrosos para as atletas. Se o gênero se
constrói socialmente, ancorado no que diz respeito à biologia em um modo
binário masculino/feminino, a natureza simplesmente zomba dessas categorias.
Mamãe natureza parece querer nos dizer que quem estabelece os gêneros somos
nós, mas quem determina o sexo é ela, e ela faz o que bem entende.
A transexual Caitlyn Jenner, que, como Bruce Jenner, venceu
o decatlo na Olimpíada de 1976 Foto: Divulgação
Nossas concepções estereotipadas – e muitas vezes
preconceituosas – a respeito da existência exclusiva de apenas dois sexos entre
os seres humanos são a cada dia mais contrastadas pelas evidências obtidas
pelas ciências médicas e humanas e pela psicologia. Nas modalidades desportivas
de alto nível, por exemplo, as variações e a ambiguidade sexual não são
toleradas. Desde o século passado são efetuados testes de feminilidade, cujo
objetivo é assegurar que cada concorrente está na categoria “certa”.
Inicialmente, tratava-se de um controle ginecológico e morfológico do sexo de
cada concorrente, da força muscular e da capacidade respiratória. Tais
controles consistiam em constrangedores desfiles de atletas femininas nuas que
eram examinadas e medidas em detalhes.
Essa modalidade de controle foi considerada demasiado
humilhante e substituída em 1968 pelo teste do corpúsculo de Barr (também
chamado de cromatina sexual), que permite revelar a presença de um segundo
cromossomo X. Ele foi posteriormente substituído pelo teste PCR/SRY, no qual
se tenta estabelecer se o cromossomo Y está presente ou não.
Impossibilidade
Numa entrevista recente, a francesa Anais Bohuon, estudiosa
da história e da sociologia do corpo e autora do livro Le Test de Féminité dans
les Competitions Sportives (“O teste de feminilidade nas competições
esportivas”, ainda não traduzido para o português), explica: “As alterações nos
critérios do teste de feminilidade mostram as múltiplas dimensões do sexo
biológico e a consequente dificuldade em determinar o ‘verdadeiro’ sexo num
debate que ultrapassa o mundo do esporte, colocando questões a toda a nossa
sociedade. Essa dificuldade se transforma em impossibilidade, porque existem
pessoas que se revelam ‘intersexuais’, ou seja, é impossível classificá-las
como macho ou fêmea. Mais ainda: um grande número de investigações veio
sublinhar a impossibilidade de determinar de maneira exata o sexo biológico de
todos os indivíduos, sejam eles intersexuais ou não”.
A corredora sul-africana Caster Semeneya (Foto: Divulgação)
Essa dificuldade é ilustrada pela corredora sul-africana
Caster Semenya. Como ela havia batido duas vezes o recorde mundial nas provas
de 800 metros rasos em 2009 – a segunda delas no Campeonato Mundial de
Atletismo, em Berlim –, sua “feminilidade” foi posta em causa e ela foi
obrigada a submeter-se a testes. Os resultados foram negativos para doping, mas
mostraram que seu corpo produzia mais hormônios andrógenos do que o da maioria
das mulheres.
Atualmente, para competir, atletas hiperandrogênicas como
Caster têm de manter por pelo menos um ano antes da competição a taxa de
testosterona abaixo de um valor arbitrário – 10 nanomoles/litro de sangue – que
é o novo limiar do sexo feminino. (Na maioria das mulheres, esse índice é de
pouco mais de 3 nanomoles/litro.) Esse limite obriga tais atletas a regular,
utilizando meios artificiais, sua produção hormonal natural. Outras atletas,
que nasceram com testículos internos, tiveram de retirá-los para poder
prosseguir na carreira esportiva. (As novas regras, a propósito, não impediram
Caster de ganhar a medalha de ouro nos 800 metros rasos nos Jogos Olímpicos de
Londres, em 2012, e do Rio de Janeiro, em 2016.)
Hoje a sexualidade é expressada de formas variadas (Foto:
Johnny Greig)
Um estudo com atletas de alto nível competitivo mostrou que
16,5% dos homens possuíam uma taxa de testosterona inferior à média masculina,
enquanto 14% das mulheres apresentavam uma taxa superior à média feminina. Mas,
se os pés gigantescos do nadador Michael Phelps lhe davam vantagem, ninguém
nunca sugeriu que ele os cortasse para continuar a competir…
Era da indefinição
No futuro, o gênero deverá ser tão fluido como o que está
acontecendo neste momento com a orientação sexual. Provavelmente deixará de ser
preciso definir o gênero nos documentos, da mesma forma que, atualmente, está
deixando de ser necessária a definição da orientação sexual. Em todo o mundo,
existe uma nova leva de homens e mulheres jovens que expressam sua sexualidade
de maneiras diversas. Classificam-se, por exemplo, como “de preferência
heterossexual”, mas declaram-se abertos ao amor homossexual. E a comunidade
transgênero dá passos gigantescos em matéria de aceitação e reconhecimento. Há
dez anos, vale lembrar, a maioria das pessoas nem sequer conhecia o termo
correto para designar uma pessoa trans…
Polêmica no vôlei
Uma das atrações da Superliga, a principal competição
feminina do vôlei brasileiro, é a atacante Tifanny, de 1,92 m, do Vôlei Bauru
(SP). Ela, que estreou apenas em dezembro, é a primeira jogadora transexual a
disputar esse campeonato. Na sua sétima partida, Tifanny bateu o recorde de
pontos do torneio – foram 39 na derrota de sua equipe para o Praia Clube.
Tifanny nasceu em Paraíso do Tocantins (GO) há 33 anos, como Rodrigo Pereira de
Abreu, e disputou torneios masculinos no Brasil e na Europa antes de iniciar a
transição de gênero, em 2012. Esse processo foi concluído em 2015, e no início
de 2017 veio a autorização para jogar em campeonatos profissionais.
Pelas regras do Comitê Olímpico Internacional (COI) vigentes
até os Jogos Olímpicos de Inverno deste ano, uma atleta trans não precisa fazer
a cirurgia para mudança de sexo – basta que seu nível de testosterona não
supere 10 nanomoles por litro de sangue. Tifanny mantém a taxa em 0,2 nmol/l.
Nas sete primeiras rodadas da Superliga, ela havia feito 160 pontos, mais do
que suas concorrentes diretas, mas seu índice de eficiência é inferior ao
delas. Na sétima rodada, por exemplo, Tandara (Osasco) atingiu 56% de
eficiência, e Bruna Honório (Pinheiros), 46%, enquanto Tifanny chegou a 44%.
Esses dados não impedem a polêmica. Para alguns
especialistas, o fato de ter moldado seu corpo como atleta masculino, ou seja,
com muita testosterona, é um diferencial importante para Tifanny frente a
outras atletas. Muitas colegas, além de técnicos e dirigentes, evitam se
manifestar sobre o assunto. Mas o técnico da seleção brasileira, José Roberto
Guimarães, já admitiu que poderia convocá-la.
Inadequação na infância
A progressiva abertura para o tema de diversidade de gênero
expôs um dado ignorado por muitos: a existência de um número considerável de
crianças que se dizem inadequadas em seus corpos – meninos em corpo de menina e
vice-versa, por exemplo. Ainda não se conhece exatamente a dimensão dessa faixa
populacional – nos Estados Unidos, alguns estudiosos afirmam que a proporção é
de uma criança transgênero para cada grupo de 500; outros, que a proporção
seria de 1 para 20 mil.
De qualquer modo, já existe uma percepção maior em relação
aos problemas enfrentados por esses menores, como o preconceito de colegas,
professores e familiares, o bullying, a rejeição e o isolamento, que podem mais
tarde levar a pessoa a tentar o suicídio. Segundo um estudo da organização
britânica National Centre for Transgender Equality divulgado em 2016, 40% dos
indivíduos transexuais tentam dar fim à própria vida em algum momento da sua
existência. A maior aceitação de tais casos ajudará a reduzir essa porcentagem
elevada.
Texto e imagens reproduzidos do site: revistaplaneta.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário