Ivone Gebara no jardim suspenso do CCSP, em São Paulo
Foto:
Marcus Steinmeyer
Publicado originalmente no site da revista CULT, em 10 de março de 2017
Uma rebelde no rebanho
Por Amanda Massuela
Ivone Gebara está acostumada a incomodar. Incomodou os pais
quando se juntou a uma Congregação religiosa aos 22 anos. Incomodou o Vaticano
quando se manifestou a favor do aborto em uma revista de circulação nacional e
incomoda a Igreja todos os dias, há cinquenta anos, ao questionar as verdades absolutas
do catolicismo.
Aos 72 anos, a filósofa da religião e teóloga feminista quer
plantar dúvidas na cabeça dos fiéis, especialmente das mulheres. Quer explicar
para confundir, quer tirá-las da espiral de dominação masculina que ainda
impera em muitas igrejas. “Tento ajudá-las a se ligar de maneira horizontal com
a religião. É uma tarefa árdua, mas necessária”, afirma.
Autora de mais de trinta livros publicados – entre eles
Teologia ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a religião (1997)
e Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal (2000) –, Ivone é
doutora em Filosofia pela PUC-SP e em Ciências Religiosas pela Universidade
Católica de Lovaine, na Bélgica.
De volta a São Paulo depois de trinta anos morando no
Recife, ela usa seus dias para escrever, participar de conferências, palestras
e conversas com grupos de periferia. Quando encontrou a reportagem da CULT,
estava prestes a embarcar em uma viagem ao México, onde falou sobre a
genealogia da violência contra a mulher em um simpósio. “Quem me convida é
porque quer me escutar”, diz Ivone, com a consciência de que as tentativas de
silenciá-la são maiores que os espaços concedidos de bom grado.
“Seria muito bom se me oferecessem um púlpito em que eu
pudesse fazer uma pregação feminista todos os domingos, mas nós temos
pouquíssimo espaço público”, afirma. Ivone sabe das ambiguidades de suas
escolhas, e vive em constante conflito por isso, mas está certa de que seguiu o
caminho mais livre e transgressor possível ao se decidir pela vida religiosa.
CULT – Por que a vida dentro de um convento lhe pareceu mais
livre do que fora?
Ivone Gebara – Porque de repente me vi acolhida em minha
busca intelectual. Acho que sou marcada por um desejo de conhecimento, de me
aproximar de mundos e histórias diferentes, e o convento me abriu para essas
possibilidades. Me lembro que queria fazer um curso de especialização em
Filosofia na USP, ainda no tempo da rua Maria Antônia, e não me fizeram objeção
alguma. O curso era à noite, me deram as chaves e eu me senti como nunca havia
me sentido na vida, andando pela rua com um monte de estudantes, conversando
depois das aulas. Jamais teria feito isso se vivesse com meus pais.
Algumas das minhas professoras na faculdade de Filosofia –
que depois seriam as freiras da minha Congregação – manifestavam uma liberdade
de mulher que apareceu antes do feminismo para mim. Eu achava legal como elas
se movimentavam no mundo universitário e também no mundo popular, já que
mantinham muitos trabalhos nas periferias. Essa aliança entre pensamento e ação
me impressionou.
Então entrei na Congregação e de certa forma traí as
expectativas da minha família, que esperava que eu me casasse e tivesse filhos.
Era um mal-estar que eu estava provocando neles, fugindo à regra dessa maneira.
As pessoas se perguntavam como eu podia negar essa razão de ser do feminino,
essa naturalidade da mulher. Pode não parecer, mas o caminho que escolhi foi
transgressor no passado. E ele me marcou de maneira que todo pensamento que
parecia transgredir alguma ordem me atraía. Mas sei que para outras pessoas
essa escolha foi escravizante, foi um delírio. Paradoxalmente, eu tive uma
experiência diferente.
Quando encontrou o feminismo?
Na década de 1980. Muita coisa aconteceu. Eu nunca tinha
prestado atenção na questão de gênero, mas algumas agulhadas me foram dadas. A
primeira foi quando me interessei por literatura teológica feminista. Alguns
textos me ajudaram a perceber como a figura do pai religioso, o “Deus Pai
Todo-Poderoso”, é cúmplice de várias formas de totalitarismo e de opressão
sobretudo de marginalizados e de mulheres. Quando li, me assustei, mas senti
fome daquela literatura. Como se ela me abrisse para coisas absolutamente
impressionantes.
Outra agulhada veio dos movimentos populares. Vivi por mais
de trinta anos no Recife, e mensalmente ia até uma cidadezinha chamada Cabo [de
Santo Agostinho], onde fazia estudo teológico bíblico com alguns operários na
casa de um deles. Sempre me preocupou o fato de nenhuma esposa participar, nem
mesmo a dona da casa que servia o cafezinho. Num dia de domingo resolvi
visitá-la, e muito timidamente ela me disse que não participava porque eu só
falava sobre “assuntos de homem”: sindicato, política, partidos, salário
mínimo. “Você sabe que eu trabalho, mas não tenho carteira assinada?”, ela me
disse. “Sabe que vendo cheiro-verde e coentro na feira? Sabe o que uma operária
sofre com o sexo?”. Eu caí das pernas. Comecei a perceber que eu estava focada
em uma problemática geral, e que a problemática geral é masculina.
Outra veio quando feministas de São Paulo me perguntaram
como eu trabalhava a questão da sexualidade dentro da Teologia – eu não
trabalhava de forma alguma –, e mais tarde, quando decidi fazer psicanálise e,
de repente, ao contar a minha história, me descobri também mulher.
O que mudou a partir daí?
O feminismo mudou a minha relação com o mundo da religião.
Percebi que o monoteísmo, em especial o cristianismo e particularmente o
catolicismo são muito marcados pela figura de Deus Pai, que eles dizem ser
“puro espírito”, mas que na verdade é um espírito controlado pelo masculino.
Afinal as autoridades que se julgam representantes de Deus e que falam em seu
nome são homens. Então esse personagem, Deus, passa a me incomodar, passa a ser
o reflexo, a imagem e semelhança do poder masculino que governa o mundo e as
consciências, sobretudo as consciências femininas.
Por que “sobretudo” as femininas?
Elas pagam, dão esmola, são exploradas e não percebem,
porque é doce essa exploração. Muito me espanta que depois de tantos anos de
militância feminista no mundo da religião eu ainda me depare com tamanha
sujeição das mulheres a todos esses movimentos de padres cantores, essas curas,
religiões de massa. Me entristece porque imaginei que o feminismo religioso, ou
a filosofia e a teologia feministas tivessem surtido um pouco mais de efeito. É
um tanto frustrante ver como elas se dobram, se apaixonam, imploram ajuda e
perdão a essas figuras que também se dizem representantes de Deus.
Basta ligar a TV em qualquer transmissão desses cultos
neopentecostais e mesmo católicos para ver que mulheres de meios populares são
grande maioria. Elas saem do mundo doméstico cansativo, vão à igreja, cantam,
batem palmas, algumas até dançam, e de repente encontram um pastor que diz uma
palavra delicada e depois saem tomar um lanche. As igrejas aparecem como uma
espécie de consolo, e elas pedem tanta coisa: pelos filhos, por elas mesmas,
todas sonham com algum milagre. Há também uma função catártica da religião e
não podemos desprezar o fato de que o capitalismo e a corrupção na forma atual
precisam das religiões de massa em que você é uma anônima, mas ao mesmo tempo é
alguém.
Os movimentos feministas conseguem chegar a essas mulheres
ou ainda falham em compreender o papel que a religião tem na vida delas?
Falham. Algumas vezes, em reuniões com feministas eu disse:
Vocês são críticas da religião, eu também. Mas o mundo das periferias é um
mundo religioso. Se não é o catolicismo é o neopentecostalismo, o
protestantismo, o candomblé, a umbanda, o espiritismo. A cultura nacional é uma
cultura de religiões múltiplas. Mas o feminismo, sobretudo um certo feminismo
crítico que absorveu as ideias de Marx, Feuerbach e Nietzsche, desconhece os
fenômenos das massas e a força da religião. A gente vê na televisão, o pastor
enxuga o rosto com toalhinhas e muitas mulheres correm para pegar uma, guardam
esse pano, se limpam com ele como se fosse uma relíquia. É uma coisa espantosa
de se ver no século 21 e que não pode ser desprezada. Mas também não pode ser
tratada só do ponto de vista sociológico: eu tenho que me aproximar daquela
mulher que pega a toalhinha e enxuga a cara com ela. O que ela está vivendo?
Que emoções essa toalhinha provoca nela? E para isso é preciso que haja
pessoas, homens e mulheres, com uma sensibilidade quase artística, poética, que
percebam como nesse transfundo religioso existe outro tipo de racionalidade.
Você encontra abertura para levar a teologia feminista até
essas mulheres que estão nas igrejas e não atuando nos movimentos?
Nós não temos espaços institucionais. Enquanto fui teóloga
da libertação até havia algum, já que a Teologia da Libertação – embora tenha
sido combatida pelo papa da época, João Paulo II – teve uma aceitação
significativa no seio das autoridades da Igreja por ser bastante clerical. Mas
nessa história eu sempre me senti uma minoria porque os homens ocupavam todos
ou quase todos os espaços, e nós [mulheres] éramos um pouco a plateia que
aplaudia e dava uma opinião de vez em quando. Depois a coisa foi melhorando um
pouco, nos abriram alguns espaços, mas, quando quisemos mais, houve conflito.
Você não encontra, por exemplo, em nenhuma faculdade católica, um curso sobre
teologia feminista. Há alguns anos fui convidada para encerrar um simpósio, e
quatro dias antes, já com passagem comprada e texto publicado, suspenderam a
minha fala por conta de forças conservadoras que atuam sem a gente saber como –
e há muitos grupos de católicos e protestantes ultraconservadores por aí. Seria
muito bom se me oferecessem um púlpito em que eu pudesse fazer uma pregação
feminista todos os domingos, mas nós temos pouquíssimo espaço público. Em
geral, as mulheres do meio popular não sabem o que é teologia feminista e quem
se interessa mais são mesmo os movimentos, são as filósofas.
Quais são as raízes dessas forças conservadoras que
trabalham para silenciá-las? Elas são fruto de uma total ignorância em relação
à produção das teólogas feministas ou são mesmo propositais?
Essa pergunta é muito importante. Não existe uma única
causa, elas são múltiplas e há sempre exceções. Atribuo esse rechaço às formas
históricas do monoteísmo, que têm cara masculina – dizer a palavra “Deus” já te
joga para um universo de poder masculino. É possível que haja mudanças? Na
estrutura atual da Igreja Católica, não. Não vão aceitar representatividade
feminina. E quando digo feminina também coloco entre aspas, com a crítica de
Judith Butler sobre o que é feminino e masculino. O divino que se fez na figura
de Jesus era homem, macho, e qualquer tentativa de fazer outra leitura não terá
efeito nenhum. Talvez em grupos específicos, mas aí não haverá uma incidência
na cultura, que é o que precisa existir.
Mesmo a Igreja tendo, nesse momento, um líder considerado
progressista e até revolucionário por alguns?
Ele pode ser progressista do ponto de vista da justiça
social, da crítica ao capitalismo, mas é conservador no que se refere à
compreensão antropológica do ser humano e à aceitação das reivindicações
feministas na sociedade. É conservador também em assuntos de moral sexual, por
mais que ele diga coisas como: “Quem sou eu para julgar um homossexual?”. Essa
afirmação não prova abertura alguma, porque ele se retira do debate. A pergunta
não é essa, a pergunta é qual tratamento vocês têm dado às mulheres que
abortam, aos homossexuais, aos transexuais? O que vocês estão acolhendo daquilo
que a sociedade humanista, se eu posso assim dizer, tem produzido? Eles não
admitem Foucault, por exemplo, Deleuze, Zizek, Judith Butler. O papa diz que
não existe uma teologia da mulher. Ele desconhece, por uma ignorância
consentida, os estudos e movimentos teológicos feministas da Argentina, de onde
ele mesmo veio. Ignora o feminismo como fenômeno sociocultural político e
religioso, e é uma ignorância voluntária porque os jornais e revistas não
escondem. Por que castigaram a mim e a tantas outras? Porque sabem que nós
existimos.
Então é preciso que haja pessoas que denunciem continuamente
para não deixar esse poder absoluto ser absoluto. Por isso, cada vez que algum
grupo de periferia me convida para falar, eu vou, porque quero ajudar a
levantar alguma dúvida na cabeça das mulheres religiosas, pouco a pouco, a
partir do lugar em que elas estão. Conheço senhoras, por exemplo, que lavam as
roupas dos padres e pastores, a toalha, os paninhos, gastam sabão, energia
elétrica, tempo, e não cobram nada por esse trabalho porque o abraço do padre,
quando elas entregam a roupa passada, já é uma recompensa – possivelmente
porque não recebem nenhum carinho em casa. Temos que continuar desconstruindo,
ajudar as pessoas a pensar, ainda mais agora que tiraram filosofia do currículo
escolar.
Eu tento desconstruir essa imagem de Deus e provocar as
pessoas nesse sentido. É um processo dificílimo porque há séculos se repete a
mesma coisa: se ele quiser, vai dar certo, se ele não quiser, não vai. Todo o
meu trabalho ainda é uma espécie de beabá para ajudá-las a entender que não
podemos tudo, mas que, se nos solidarizarmos uns com os outros, quem sabe não
podemos alguma coisa? Tento ajudá-las a se ligar de maneira horizontal com a
religião. A tarefa é árdua, mas necessária.
Você vive muitos conflitos sendo uma teóloga feminista, algo
que aparentemente é tão paradoxal?
Muitos, mas esses conflitos têm me ajudado a refletir.
Diante do sofrimento humano às vezes eu me calo. As inúmeras devoções das
pessoas, imagens, velas, mesmo a toalhinha do pastor cheia de suor, me movem as
entranhas. Eu gostaria de dizer, espera aí, talvez outras coisas te ajudem mais
do que a toalhinha, ou do que gastar seus dez reais para comprar a imagem de um
santo. Eu sinto esse conflito dentro de mim, mas percebo que o momento da dor
não é concomitante ao momento da racionalidade. E então eu acolho aquilo que as
pessoas dizem que precisam: um gole de água benta, deitar a cabeça sobre uma
bíblia. A solidariedade àquela dor passa na frente da teoria, da análise
crítica e política, mas isso não tira meus conflitos. Quando digo que sou
católica, também estou dizendo que não sou de alguns tipos de catolicismos, mas
sou de outros. Sou católica por uma tradição, mas também não sou, porque muitas
vezes critico essa mesma tradição. Esse ser e não ser se misturam em mim.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistacult.uol.com.br
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