Cena da série ‘Jane The Virgin’.
Publicado originalmente no site Brasil El País, em 3 de dezembro de 2018
Coitocentrismo e religião, dois motivos de nossa obsessão
pela virgindade
Os jovens já não sentem tanta pressão para mantê-la, mas
para se livrar dela
Por Arola Poch
Ainda hoje nos chegam, de qualquer lugar do mundo, notícias
surpreendentes sobre a virgindade. Uma das últimas, há poucos dias, tem como
protagonista uma garota australiana de 18 anos que, supostamente, oferece sua
virgindade em troca de 100.000 dólares (cerca de 386.000 reais) para custear
seus estudos universitários e ajudar os pais a pagar a hipoteca da casa.
Dois anos atrás, também se tornou notícia de que o Governo
municipal de uma cidade rural da África do Sul, de acordo com as informações
publicadas, desenvolveu um programa de bolsas universitárias para 16 jovens que
demonstrassem sua virgindade. A velocidade vertiginosa com que essas notícias
pulam de um meio de comunicação para outro indica o fascínio que ainda sentimos
pelo conceito de virgindade.
Uma das razões de nossa obsessão pela virgindade é o modelo
sexual que predomina em nossa sociedade: o coitocentrismo. É uma concepção da
sexualidade voltada para o genital e devedora da importância que historicamente
concedemos à reprodução.
Vemos isso todos os dias quando ouvimos a expressão
“preliminares”, uma ideia que muitos sexólogos gostariam de erradicar. Porque
“preliminar” significa que precede ou se antepõe à ação principal, isto é, o
coito.
Com esse termo retiramos dos jogos eróticos a importância
que merecem (considerando-os trâmites menores) para focar na penetração, como
se uma relação sexual não fosse “completa” sem penetração, ou como se sem coito
não houvesse paraíso.
Intimamente relacionado ao coitocentrismo, o modelo sexual
nos proporciona outro centro (ou deveria dizer cetro?): o pênis. No imaginário
social (que arrasta, lembremos, uma visão reprodutiva) é difícil imaginar
práticas eróticas em que não estejam incluídos os genitais em geral e o
masculino em particular.
Fetichismos, relações de dominação/submissão ou relações
lésbicas, por exemplo, além de serem classificadas como “perversões”, geraram —
em algumas pessoas — dúvidas a respeito da satisfação que pode ser obtida sem
um falo. Da mesma forma que os sexólogos se esforçam para superar o conceito de
“preliminar”, também temos uma árdua tarefa para reivindicar o prazer para além
do falocentrismo.
Com tudo isso, parece que há apenas uma virgindade, quando,
na verdade, no sexo existem muitas primeiras vezes que podem ser muito
simbólicas. Inclusive mais que a própria penetração.
Valéria, a protagonista da saga literária de sucesso que
leva seu nome, de autoria da escritora Elisabet Benavent, diz ao lembrar-se de
sua noite de núpcias: “Naquela noite, ele me despiu lentamente e nós fizemos
pela primeira vez sem preservativo, como se fosse a nossa maneira de perder a
virgindade”.
Um conceito cultural
Além de nosso coitocentrismo, outra razão pela qual somos
obcecados com a virgindade é nossa herança cultural. Nas sociedades católicas,
a ideia de que Maria deu à luz Jesus sendo virgem revestiu essa condição de um
caráter puro e imaculado que as mulheres arrastaram durante séculos. Sylvia
Marcos, especialista em religião e gênero, referiu-se à Bíblia em uma
entrevista como “um manual de conduta”.
Essa concepção da virgindade não é exclusiva da religião
católica. Também a encontramos em várias sociedades e religiões, como explicou
recentemente um artigo sobre os exames de virgindade no Marrocos e sobre as
tentativas da Organização Mundial da Saúde de erradicá-los em vinte países.
Esses exames, além de serem humilhantes para as mulheres,
não possuem nenhuma validade médica, pois o hímen (cuja integridade é
supostamente sinal de virgindade) pode se romper em situações cotidianas ou
permanecer intacto depois de uma penetração.
O fato de a virgindade não ser nada mais do que um conceito
cultural já foi demonstrado há muito tempo, por exemplo, pelo antropólogo
Bronislaw Malinowski, que em 1929 publicou seu livro A Vida Sexual dos
Selvagens da Melanésia. Ao descrever as relações eróticas e a vida familiar dos
povos indígenas das Ilhas Trobriandesas (Papua Nova Guiné), também abordou sua
particular concepção de virgindade que nada tinha a ver com as anteriores.
Os tempos mudam
Embora continue sendo um conceito muito presente, na nossa
sociedade atual já não é tão importante manter a virgindade, mas se livrar
dela. É algo de que falaram os jovens entrevistados em uma recente edição do
programa de televisão Salvados, exibido pela emissora espanhola La Sexta:
Essa mudança na visão da virgindade também foi comprovada em
algumas pesquisas, como a publicada em 2016 por Gesselman, Webster e Garcia com
o título A Virgindade Perdeu Sua Virtude? (em inglês). Neste trabalho, os
pesquisadores chegam à conclusão que sua perda tardia poderia trazer
consequências interpessoais negativas e limitar as oportunidades de manter
relações. É uma nova concepção de virgindade, mas não rompe com o
coitocentrismo mencionado acima.
Os sexólogos também tendem a comprovar que a concepção da
virgindade varia de acordo com o gênero. Rapazes e moças se preocupam com a
virgindade, embora perguntem coisas diferentes. Minha experiência profissional
me mostrou que, enquanto eles querem saber como desfrutar mais, elas perguntam
se na primeira vez dói.
Essa variação não parece desconectada das questões culturais
e históricas que mencionamos e que, em geral, usaram a virgindade como um
mecanismo para controlar os corpos das mulheres.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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