Thais se tornou uma liderança comunitária ainda muito a jovem,
graças à sua veia empreendedora. Foto: Valda Nogueira
Jovem carioca planta sementes de ações sociais para que
população mais vulnerável tenha acesso a oportunidades constantemente negados.
"Não dá para desistir da gente fazer política a partir de nós para os
nossos."
By RYOT Studio e CUBOCC
Não é difícil reconhecer uma mente brilhante, quando você a
conhece. São pessoas com histórias que, quando contadas, deixam o interlocutor
boquiaberto. Vitórias, avanços, momentos e conquistas que são raras, ainda mais
em uma sociedade desigual. Thais Ferreira, 30, é uma dessas pessoas. Mulher,
negra, moradora da zona norte carioca na maior parte da vida, ela se tornou uma
liderança comunitária ainda muito a jovem, graças à sua veia empreendedora e,
principalmente, à característica de desenvolver-se cada vez mais para gerar
impacto social. Toda sua trajetória, ela faz questão de reforçar, é uma soma de
acesso e oportunidades, elementos que ela sonha em ver presente na vida de cada
cidadão. Depois de três gestações, Thais comanda o projeto Mãe&Mais, com
atenção à saúde da mãe e à primeira infância, mas antes disso ela fez muita
coisa.
Vinda de uma família de mulheres empreendedoras, Thais conta
que a primeira vez que vendeu algo para complementar a renda foi aos seis anos,
ajudando uma tia que vendia leite fermentado no alto de um morro. Também
vendiam sacolé. O pai, no verão, vendia abacaxi e coco na praia. "Porque o
salário do trabalhador, para a gente, nunca deu. A gente sempre viveu em crise,
crise não é nenhuma novidade", conta a empreendedora.
As mães têm que encontrar o melhor arranjo para que ele
possa ser o filho que pode ser e elas a mãe que possam ser.
Com fala doce, apesar de sempre em ritmo firme, Thais
explica que não havia, em sua família, a ideia de 'vender por vender'. O
empreendedorismo ensinado a ela e ao seu irmão também era de impacto social, um
exercício que ela faz diariamente desde a infância. "A gente era criança
do pé do morro, então quando a gente subia o morro via mais desigualdade, gente
com menos acesso e oportunidade que a gente. Minha mãe, minha tia e meu pai
sempre estimulavam a gente a pensar: A gente tem, mas olha quem não tem. O que
vocês estão fazendo por essas pessoas?", relembra.
E esse ensinamento Thais nunca esqueceu. Junto com o irmão,
receberam tarefas a serem cumpridas para conseguirem levar um amigo mais pobre
a uma viagem para a praia. No colégio, a menina fazia e vendia papéis de carta
perfumados e personalizados. Além de serem feitos por ela, a moeda para comprar
os mimos também era própria e tinha que ser comprada com dinheiro de verdade
por quem quisesse sentir o perfume enquanto escrevia. "Não era sobre
tangibilizar o valor de uma moeda, tanto que eu criei a minha. Não é sobre o
outro dinheiro, é sobre o que movimentar entre a gente", explica.
Além de papel de carta, ela ajudou a tia a dar reforço
escolar para crianças da rua. Aos 12, fazia churrasquinho em casa e ajudava o
pai a vender na rua. Aos 16, conheceu o atual marido, com quem está desde então
— "entre idas e vindas" — e sempre topa as ideias dela. Nessa idade,
colocou o irmão para aprender a tocar baixo e o marido para aprender a tocar
bateria. Como cantora, fundaram uma banda. Também criou uma marca de camisetas.
Não dá para desistir da gente fazer política a partir de nós
para os nossos.
Um pouco depois, foi vanguardista no movimento de blogueiras
com foco em cabelo crespo e beleza negra. Os conteúdos criados por Thais faziam
sucesso naquela época, cerca de dez anos atrás, mas o aumento do sucesso dos
seus conteúdos foi responsável por dar um estalo "necessário" na
empreendedora.
"À medida que as pessoas se alimentavam daquilo que eu
produzia, eu ia me esvaziando, e eu não podia me esvaziar. Eu iria ficar sendo
só uma casca, mas e por dentro, como que eu estava nessa história? Eu, que era
contra essa cultura da imagem, do espetáculo, que só destrói a gente, já que a
gente não se encaixa em lugar nenhum? Eu não tava entendendo muito bem, então o
que eu fiz foi romper", conta.
Rompeu. Formada em moda, ela conta que trabalhos envolvendo
o tema sempre estiveram presentes na sua vida, desde a marca de camisetas até
ser blogueira. Mas antes de decidir a carreira, na época do vestibular, o pai,
bombeiro, queria que ela cursasse o ensino superior no Instituto Tecnológico de
Aeronáutica (ITA) ou no Instituto Militar de Engenharia (IME). "Pensei que
se eu fosse para lá, iria bitolar. Dei a aprovação de presente para ele, porque
era muito importante. Passei, mas não fui", conta ela, sorrindo
tranquilamente, como quem conta um feito simples quando, na verdade, foi
aprovada em um dos concursos mais difíceis do país.
Eu comecei a ficar com essa visão crítica sobre tudo, sobre
esse esvaziamento, até no trabalho.
Thais é artista, não combinaria com a forma quadrada do IME
e do ITA de levar a vida. Seguiu a carreira, trabalhou com quase todas as áreas
de moda, mas aquele esvaziamento que temeu quando publicava conteúdo sobre
cabelos crespos também bateu à porta em relação ao seu trabalho formal.
"Eu comecei a ficar com essa visão crítica sobre tudo,
sobre esse esvaziamento, até no trabalho. Até nessa busca do conhecimento, que
tipo de referência eu era nesse lugar. Não era comum ter uma pessoa que
trabalhava com moda, ocupando os espaços que eu ocupava, sendo mulher, negra.
Já era crítico, mas comecei a pensar que estava errado, porque se meu argumento
é esse, meu discurso é esse, e eu continuo nessas grandes empresas, eu ainda
estou compactuando e corroborando muita coisa que não faz parte do mundo que eu
quero viver", diz.
Saiu de vez do ciclo das grandes corporações quando, ao
voltar da licença-maternidade depois de segunda gravidez, foi comunidade de uma
viagem. Com o filho preso ao sling e poucos meses de vida, Thais se negou a
afastar-se da criança. Queria viver o momento próxima à sua casa. A empresa argumentou
que não a demitiria, então ela mesma o fez.
Depois de um tempo em casa, com o fim do dinheiro recebido
na rescisão, ela teve a ideia de levar food trucks para a zona norte carioca.
Com o primeiro caminhão do Largo do Bicão, Thais e seu marido foram
responsáveis por incentivar outros 12 profissionais da gastronomia de rua, que
permanecem até hoje no local, antes tomado por assaltos e escuridão.
"A gente acabou fomentando o ecossistema empreendedor,
que já era muito forte para essa gastronomia de rua. A gente colaborou nesse
sentido. Quem era carrocinha, hoje virou truck. Quem não tinha nada, conseguiu
entender que não era para acabar, mas sim que era possível uma outra estrutura
sobre rodas e comida de rua", relembra ela, que depois de ver que o local
estava estabilizado, fechou seu food truck e foi tocar a vida.
A gente acabou fomentando o ecossistema empreendedor, que já
era muito forte para essa gastronomia de rua.
Além da graduação em Moda, Thaís também cursou História da
Arte e fez inúmeras especializações, além de pós-graduação. Nenhuma linha de
seu currículo foi responsável por transformá-la em uma pessoa soberba. Pelo
contrário, uma característica forte em sua fala é a humildade e o
reconhecimento de que sua vida é como é por causa de acesso e oportunidades
ainda não permitidos a outras mulheres como ela.
Tanto conhecimento é bem-vindo, mas foi o processo de gestar
que mudou muita coisa na vida Thais. Antes do nascimento do segundo filho, ela
passou por uma gestação em que o bebê morreu na 34ª semana de gravidez. Depois
de um parto cesárea feito às pressas, para tentar salvar a vida da criança, ela
não demorou muito a tentar entender o que aconteceu com o seu corpo ao fim da
gestação que impediu seu filho nos braços. Descobriu, sozinha, trombofilia.
Sozinha mesmo. Quando a morte do seu filho foi tratada como normal pela sua
médica, e que "qualquer pessoa iria querer engravidá-la no futuro",
Thais começou a pesquisar, cruzou sintomas e buscou os exames certos para
confirmar a alteração que resulta na trombofilia genética.
A partir dessa experiência, foi encaminhada para um
tratamento no Hospital do Servidores — tratamento este que possibilitou a sua
segunda gravidez. Pela primeira vez sendo tratada no Sistema Único de Saúde,
até então, havia o plano de saúde da mãe funcionária pública, ela encontrou um
cenário devastador, além de se compadecer da história de outras mulheres em
tratamento, como ela.
"Reconheci a mim mesma em todas as mulheres. Se não a
mim, as mulheres que me cercam, em várias histórias. A situação era muito
precária, então eu me convenci de que não dava para ficar de luto, tinha que
entrar nessa luta, porque filhos como os meus estavam morrendo e mulheres como
eu morreram. Como faz? O sistema não faz nada, porque acha que já fez demais. E
aí eu falei que tinha que mudar a história", relembra.
A troca de experiências com suas companheiras de hospital
deu a ideia dela criar o projeto Mãe&Mais, que começou dentro da unidade de
saúde e depois tomou as casas das mulheres envolvidas, com encontros para
discutir saúde e primeira infância. Ciente do impacto que um projeto
relacionado a saúde pode ter, percebeu que deveria estruturá-lo como negócio
social, "para disputar a narrativa do impacto social que só vem de cima
pra baixo".
A situação era muito precária, então eu me convenci de que
não dava para ficar de luto, tinha que entrar nessa luta.
Sem grana, submeteu o projeto a incubadoras e ele foi aprovado
em todas. Mesmo com a dificuldade de financiar algo que resolve um problema na
raiz porque, segundo Thais, quer "resolver problema que eles não querem
que a gente resolva", ela continuou a engrossá-lo.
"A gente trabalha educação e saúde, onde a gente passa
por essa questão da mentalidade, emocional, fortalecimento do vínculo da
parentalidade, atendimento, onde tratamos do empoderamento do paciente. [A
ideia é]: do meu corpo, eu tenho que saber mais do que o médico; se eu não
souber explicar para ele o que está acontecendo, não vai ser ele com a cartilha
que vai entender", explica.
A empreendedora conta que o trabalho é feito com médicos e
com pacientes, para criar uma linha horizontal. Com as crianças da primeira
infância, o trabalho desenvolve habilidades, regulação emocional,
psicomotricidade e interação com texturas. O incentivo à participação das mães
vem de uma máxima: acesso a uma maternidade possível.
"As mães têm que encontrar o melhor arranjo para que a
criança possa ser o filho que pode ser e elas as mães que possam ser, sem
culpa. Não adianta exigir demais de uma criança que não tem ferramenta e nem
sobrecarregar uma mulher que não tem socorro. Não faz sentido", afirma.
Se eu não souber explicar para o médico o que está
acontecendo, não vai ser ele com a cartilha que vai entender.
O Mãe&Mais foi o impulso de Thais para tentar entrar no
ecossistema da política partidária, "porque ganhar escala para esse tipo
de transformação, só sendo governo". O ponto final de decisão foi um curso
de oportunidade de inovação e estratégia no Massachusetts Institute of
Technology (MIT), no qual ela passou por uma avaliação.
"Disseram que esse tipo de mentalidade [de produzir e
disseminar o próprio saber] é a de inovação social e política do futuro que
eles tanto buscam para países desenvolvidos. Se eu fosse um homem branco,
estaria dando aula em Harvard. Como sou uma mulher preta, volto para o meu
território para testar essa informação", contextualiza.
Candidata a deputada estadual no Rio de Janeiro no último
pleito, em 7 de outubro, Thais recebeu 24.759, em quase todos os municípios do
Estado — somente Trajano de Moraes não conheceu o trabalho dela. "Eu
sempre tive, recebi, muita atenção. Por ter muita atenção, vi gente que não
tinha a mesma, então eu vi que tinha que compartilhar. Tenho que usar
estratégia para saber como eu uso essa atenção que eu atraio para poder chamar
a atenção para o problema grande que a gente tem", analisa. E completa: "Além
de ter acesso e oportunidade, é importante fazer ter uma rede que funcione.
Porque não é sobre a Thais, é sobre todas as pessoas que fazem isso
acontecer", e não só na campanha rumo à política partidária.
Se eu fosse um homem branco, estaria dando aula em Harvard.
Como sou uma mulher preta, volto para o meu território para testar essa
informação.
Com o fim da campanha, que Thais conta que não a cansou,
porque se fosse destrutiva ela não participaria, ela se tornou a 1ª suplente do
PSOL/RJ para a assembleia legislativa, e conta que só volta a se candidatar
caso, numa próxima eleição, seu nome ainda faça sentido para a luta coletiva.
Caso não, irá acompanhar e fortalecer outras pessoas. Com a responsabilidade de
ter quase 25 mil pessoas cientes agora do que seu trabalho representa, ela não
quer parar.
"Agora é continuar essa água mole em pedra dura, para
furar as pedras que a gente tem no caminho. Porque não dá para desistir da
gente fazer política a partir de nós para os nossos. Quando falo nós é porque
saiu de mim e já alcançou outras pessoas", afirma.
Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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