quinta-feira, 11 de outubro de 2018

"A cultura de consumo capturou nossa liberdade"

Roman Krznaric Foto: Chris Boland/www.chrisbolandweddings.com

Publicado originalmente no site da revista ÉPOCA, em 10/10/2018 

"A cultura de consumo capturou nossa liberdade": 13 perguntas para Roman Krznaric

Aproveite o dia. Agarre uma oportunidade. Viva o momento presente. O sentido do termo latino carpe diem varia conforme o país e o momento histórico. Esse é o tema de um livro que resgata a arte de aproveitar a vida, do filósofo britânico Roman Krznaric

Por Danilo Thomaz

1. Afinal, carpe diem — que dá nome a seu livro — não significa “aproveite a vida, o momento”?

Creio que a tradução de carpe diem para o português é, em geral, “aproveite o dia”. A história do conceito de carpe diem , que remonta a 2 mil anos, tem uma série de significados. Um deles é, justamente, o de aproveitar a vida. Outro significado é agarrar as oportunidades que, provavelmente, não vão se repetir. Outro significado é viver o momento presente. Há a visão política, que fala sobre agarrar uma oportunidade coletivamente.

2. Como pensar em um estilo de vida carpe diem — no sentido de aproveitar o dia, a vida — se estamos o tempo todo com a agenda sobrecarregada e com tantos estímulos para a ansiedade?

Hoje em dia há muitos limites à maneira como expressamos nossa liberdade. Uma das limitações em aproveitar o dia hoje é a cultura que temos vivido, na qual as pessoas colocam sua vida nas plataformas digitais, ( estão sempre ) checando mensagens... Por isso o carpe diem é um conceito valioso: ( ele ) nos reconecta com nosso senso de humanidade, com a capacidade de expressar nossa liberdade.

3. O senhor diz que o “faça isso” — uma das premissas do carpe diem — foi substituído por “assista a isso”. No entanto, estamos também a todo instante mostrando nossa vida nas redes sociais. Não seria mais preciso dizer “assista a isso e mostre isso”?

Acredito que sim. “Veja isso e tuíte isso.” O mundo digital não é apenas passivo. Em parte você está apenas assistindo, ( mas ) nós estamos constantemente tentando nos colocar no mundo. ( A questão é que ) nós estamos mostrando uma pequena parte de quem somos.

4. O “mostre isso” é uma consequência do fato de não estarmos vivendo como poderíamos?
Sim, é uma consequência. Boa parte de nossa vida está mediada pela tela. Estamos perdendo contato com as experiências reais. Há uma grande diferença entre assistir a um jogo de futebol e jogar futebol com seus amigos. Quando meus filhos, na Inglaterra, falam com os avós na Austrália, eles podem viver suas emoções. Mas não importa quão bom isso seja, não é o mesmo que estar num mesmo espaço, juntos. Os seres humanos são animais sociáveis. A vida digital é solitária. Você está sozinho, mesmo interagindo com outras pessoas.

5. Ao mesmo tempo, em séries e filmes há sempre a mensagem de “aproveite a vida”, “tome decisões”, “só depende de você”.

( Isso acontece ) por causa da cultura de consumo. Empresas dizem “faça isso” em parte porque querem vender mais sapatos ou roupas. Elas estão tentando vender um estilo de vida. “Faça isso” tornou-se “compre isso”. Aproveitar o dia passou a significar “aproveite seu cartão de crédito”. A cultura de consumo capturou nossa liberdade. Nós estamos decidindo que marca de sapatos comprar, que roupa vestir, e não decidindo o que fazer de nossa vida. Estamos deixando de lado as grandes questões existenciais, as decisões que vão levar a vida a uma nova direção. Acho que todos devemos nos perguntar: mesmo no sentido prático, que decisões eu tomei hoje? Minhas decisões estavam mais ligadas ao que eu compraria ou decidi passar mais tempo com meus filhos?

6. Por que é tão difícil desligar-se da TV e das redes sociais?

A cultura digital e a TV em particular são feitas para nos deixar viciados. Esse tipo de vício é atrativo para o cérebro: é fácil, diminui o estresse. Mas é limitado para o ser humano e para o prazer humano. O que dá sentido a nossa vida? São três coisas: a primeira é a qualidade de nossas relações, com amigos, familiares; a segunda é ter um propósito na vida, algo maior que você, com o que você se importa; a terceira é autonomia e liberdade. A TV não dá nenhuma dessas coisas. Você pode ter uma relação com um bom personagem na TV, mas isso é muito diferente de ter uma relação de verdade.

7. O senhor cita no livro a vida nas favelas cariocas como um exemplo de carpe diem. A pobreza não é uma limitação nesse sentido?

Depende do tipo de carpe diem de que você está falando. Pessoas na pobreza vivem mais o dia a dia, porque não podem planejar. Então elas vivem o carpe diem no sentido “aproveite o dia”. Mas, claro, se você vive na favela, você não pode ir para uma universidade, por exemplo. Essas escolhas não estão em sua mão. A pobreza limita sua capacidade de escolha. As questões são: eu tenho o controle sobre minha vida? Tenho condições de viver minha liberdade? As pessoas ( nas favelas ) não sentem que têm escolhas na vida. Elas estão apenas lutando para sobreviver. O carpe diem no sentido de criar ou escolher o caminho de sua vida é mais difícil para as pessoas vivendo numa favela. É mais fácil se você for um milionário fazer escolhas na vida.

8. Para as pessoas de classe média que vivem nos grandes centros também é difícil, não?

Claro que sim. Essas pessoas se baseiam na ideia de que a boa vida requer bens materiais, então você trabalha duro para ter essas coisas. Quando você adquire um bom carro, seu nível de felicidade imediatamente sobe — e depois desce.

9. E como é possível resolver essa equação?

As pessoas que decidem viver com mais simplicidade vivem mais próximas de um sentido carpe diem , têm mais opções, são mais livres. Talvez seja necessário encontrar sua vida carpe diem em outros lugares. Não se trata de encontrar isso naquilo que você compra, mas nas relações que você tem.

10. O senhor diz no livro que o conceito de carpe diem como “viver o momento presente” remonta aos anos 90. Isso tem a ver com a ascensão neoliberal no mundo?

A ideia de que o carpe diem significa prazer é muito estreita, individualista ou neoliberal. Essa ideia de que carpe diem é sobre mim — meu prazer, minha liberdade — é muito diferente da ideia de carpe diem ao longo da história. Nessa perspectiva ( neoliberal ), eu faço minhas escolhas sem me importar em quanto isso impacta outras pessoas. Isso é muito limitado. O problema da versão neoliberal é não pensar no impacto na vida das outras pessoas, nas consequências, que responsabilidades eu tenho. Por isso acredito que uma versão profunda de carpe diem é quando criamos oportunidades para pessoas que vivem à margem da sociedade. Precisamos democratizar a ideia de carpe diem . Precisamos pensar nas questões éticas e morais: como a maneira de eu aproveitar o dia limita as escolhas de outras pessoas?

11. Qual a relação entre o carpe diem e a ética?

Historicamente, carpe diem não é ético o suficiente. Houve poucas discussões éticas a esse respeito. Pensadores existencialistas como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir tentaram tornar o carpe diem mais ético, mas não foram muito bem-sucedidos. Precisamos criar uma ética para o carpe diem . Essa é uma das intenções de meu livro, de certa maneira. Tornar o carpe diem um conceito menos individual e mais coletivo. Sim, é ótimo ter liberdade, mas precisamos pensar nas consequências para o coletivo.

12. Existe alguma maneira segura de ser hedonista?

Não sei no Brasil, mas na Europa as pessoas têm medo do hedonismo, que é associado a um estilo de vida excessivo. Eu vejo o hedonismo como algo mais belo que isso. O hedonismo é uma maneira de nos conectarmos com nossos sentidos, uma maneira de provar, sentir e explorar o mundo. Se você pensa em compartilhar prazeres, você está pensando em hedonismo. Os maiores prazeres são aqueles que dividimos com outras pessoas: almoçar com sua família, fazer sexo, dançar. Não podemos pensar no hedonismo só pelo lado do prazer excessivo e individual.

13. De que forma o carpe diem se encontra com a política?

Historicamente, carpe diem se expressa de uma maneira coletiva na política. As pessoas se organizam no meio da bagunça e, juntas, agarram uma oportunidade, o momento presente. O exemplo clássico de uma mobilização social carpe diem é 1989, com a queda do muro de Berlim. Esse é um momento histórico carpe diem . As pessoas aproveitaram uma oportunidade, destruíram um regime, derrubaram o muro. E acredito que o momento atual seja como aquele. Nós vemos isso no movimento Ocuppy ( Wall Street ), depois da crise financeira ( de 2008 ); nos movimentos contra o Trump. O mundo está em seu momento mais instável desde o fim da Guerra Fria. Tudo pode mudar muito rápido. Em muitos países há espaço para uma ( ação ) política carpe diem porque as coisas podem mudar muito rápido. Nós estamos aprendendo a usar o mundo digital para mobilizar as pessoas.

Texto e imagem reproduzidos do site: epoca.globo.com

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