Jaime Lerner, retratado em Pamplona durante o congresso
‘Menos Arquitetura, Mais Cidade’
ALEX ITURRALDE
Publicado originalmente no site Brasil El País, em 22 de setembro de 2018
Jaime Lerner, o arquiteto que transformou o transporte
público de Curitiba
Por Anatxu Zabalbeascoa
Seu “metrô sobre rodas” foi imitado no mundo todo, de Bogotá
a Seul, passando por Los Angeles e Istambul
O “metrô sobre rodas”, a escolarização em troca de uma cesta
básica para a família e a expropriação de parte das zonas verdes foram algumas
das propostas revolucionárias que sanearam Curitiba sem qualquer investimento.
Pioneiro da sustentabilidade e especialista em conseguir grandes mudanças com
poucos recursos, o arquiteto brasileiro Jaime Lerner, de 80 anos, diz que
entrou na política por responsabilidade. “O prefeito estava destruindo a
cidade”, recorda. E deixou escrito seu ideário no livro Acupuntura Urbana
(Record, 2003). Ele chega ao salão do hotel mancando. Há seis meses operou da
coluna. Mas veio até Pamplona para dialogar – no congresso Menos Arquitetura,
Mais Cidade – com outro grande professor favorável a reorientar o espaço urbano
para os pedestres: o dinamarquês Jan Gehl. Pede água, mas às 17h o bar do hotel
Três Reyes está fechado. “Têm que esperar até 19h”, esclarece a recepção. A
assistente do fotógrafo lhe oferece sua garrafa de água. “Eddie Murphy sempre
pergunta: ‘Aonde vão carregando todo dia essas garrafas de água? Ao deserto?”
Dá uma gargalhada e bebe a água.
Lerner entrou na política porque o prefeito de Curitiba
havia estreitado as calçadas para que passassem mais carros. “Quando você
alarga as ruas, estreita a mentalidade. E destrói a história”, diz ele.
“O carro é o cigarro do futuro. Vai praticamente
desaparecer. Será só para viagens e lazer, não para a cidade”
Era 1964 e Lerner, ainda estudante, idealizou com vários
colegas o Plano de Circulação da cidade. Em 1971, foi escolhido prefeito a dedo
pela ditadura militar. Os militares o nomearam e ele se opôs à sua política? “O
regime não queria protestos. Por isso canalizou as queixas nas cidades. Podiam
me mandar embora a qualquer momento, do mesmo jeito que tinham me nomeado.
Minha equipe era formada por jovens comunistas. Sabíamos que tínhamos pouco
tempo. Por isso eu os adverti: “Temos que trabalhar rápido.”
Sua primeira ideia foi convencer as pessoas de que o carro
não era importante. “É o cigarro do futuro. Vai desaparecer em quase todas as
partes. Se é preciso continuar fabricando carros para gerar emprego, serão para
viagens e lazer, não para a cidade. Não há futuro urbano se o transporte
depende de veículos particulares”, sentencia.
O caderno que sempre leva consigo, onde anota o que chama
sua atenção.
ALEX ITURRALDE
Em 1971, Curitiba tinha 700.000 habitantes. Era a típica
cidade estendida, “brasileira”, diz Lerner. A pessoa levava horas para ir do
centro até o subúrbio. Na época, dizia-se que qualquer urbe com um milhão de
habitantes tinha que ter um metrô. Mas eles não tinham dinheiro para
construí-lo. Estudaram fazer um na superfície, “um trólebus, mas barato: um
ônibus com poucas paradas e uma faixa exclusiva”. E criaram tubos nas paradas
para permitir o embarque rápido por várias portas, como no metrô. “Funcionou.
As pessoas não tinham que esperar mais do que um minuto”.
Os ônibus prepararam a expulsão dos carros de Curitiba. E,
solucionada a mobilidade, a consequência imediata foi a melhoria das áreas
verdes. A proporção desses espaços aumentou de meio metro quadrado por
habitante para 50. “Hoje estamos na marca dos 60 metros quadrados, um dos
índices mais altos do mundo”, afirma.
De novo sem dinheiro, em lugar de construir praças o que sua
equipe fez foi cuidar melhor da vegetação existente. “Se uma família tinha uma
área [verde] de 100.000 metros quadrados, expropriávamos 80.000. Os
proprietários ficavam com 20.000 para sempre, livres de impostos, em troca de
uma venda econômica para a Administração. E o sobrenome da família – Barigui,
Tanguá – dava nome ao parque. Foi uma solução ganhadora. Partimos do nada e
multiplicamos o espaço público. A criatividade começa quando você tira um zero
do orçamento. O excesso de recursos leva ao desperdício.” Lerner é contundente ao
não defender a participação cidadã. “É pouco eficaz. Para que as coisas
funcionem, você tem que preparar um cenário que a grande maioria entenda como
desejável: frequência de ônibus, água mais limpa, professores mais motivados,
crianças escolarizadas... Aí você com certeza vai triunfar”, diz ele. Também
afirma que “o smart é bobo. Se quiser resolver a mobilidade, tem que conseguir
que as pessoas vivam e trabalhem em distâncias curtas. A vida de bairro salvará
a cidade. O colégio, o esporte e as compras têm que estar perto. A cultura, o
teatro e os museus podem estar no centro.”
Lerner idealizou o livro ‘Acupuntura Urbana’ fazendo
anotações na rua sobre problemas reais.
Ainda mantém esse costume.
ALEX
ITURRALDE
O modelo de Curitiba levou esse arquiteto a dar aula de
urbanismo na Universidade Berkeley (Califórnia). Ao regressar, voltou a ser
prefeito em 1979. E, uma década depois, venceu de novo nas urnas postulando-se
apenas 12 dias antes das eleições. “Toda a minha família era contra. Mas ser
prefeito foi a melhor época da minha vida. Você vê as coisas mudarem. Isso é
maravilhoso.”
Seu metrô sobre rodas começou transportando 50.000
passageiros por dia. “Hoje transporta 2,6 milhões de pessoas, quase a mesma
marca do metrô de Londres, que leva 3 milhões”, diz. Segundo ele, o sistema é
hoje o mesmo que há meio século, embora esteja melhorando: a frequência é
maior, e o combustível deverá ser substituído por eletricidade.
“A criatividade começa quando você tira um zero do
orçamento. O excesso de recursos leva ao desperdício”
Além do transporte, o Unicef premiou seu projeto Da Rua Para
A Escola. “Um mérito de minha esposa, que era professora.” Em sua etapa de
governador do Paraná, entre 1995 e 2002, ele via que em todas as cidades havia
crianças pela rua, então iniciou um programa com uma medida populista: cada
família que levasse uma criança ao colégio receberia uma cesta básica semanal.
“Foi outra maneira de conseguir muito com pouco.”
Lerner conta que falou uma vez com o ator Jeremy Irons
porque queria fazer um filme sobre a poluição dos plásticos nos oceanos.
“Expliquei a ele nosso acordo com os pescadores. Se pescassem peixes, podiam
ficar com eles. Se pescassem lixo, nós o comprávamos. Quanto mais lixo
conseguiam, mais dinheiro lhes dávamos. Foi outra situação em que você não pode
perder. Por isso foi um sucesso.”
Sistema de transporte e calçadão no centro Curitiba. LINIA FARIA
Algo parecido aconteceu com a reciclagem. “Vimos que eram as
crianças que tinham que educar os pais. Nós as formamos. Elas depois são
duríssimas. Conseguimos ao mesmo tempo professores e policiais nas casas. E as
pessoas se acostumaram a reciclar”, recorda.
Sendo governador, chegou à conclusão de que o problema
essencial da educação era a formação dos professores. E decidiu se reunir com
eles. Chegavam de todos os cantos do Paraná. E falavam. “Buscávamos abertura
mental”, recorda. Sua equipe fazia os professores escutarem pessoas criativas:
músicos, escritores... “Os artistas são pessoas com a pele mais fina, por isso
veem as coisas antes. Se posso trabalhar com pessoas que antecipam o futuro,
por que vou trabalhar com as que só veem o passado?”
Lerner insiste que Curitiba não é um modelo. “É uma
referência de simplicidade, de imperfeição e de trabalho com poucos recursos.
Minha intenção nunca foi salvar o mundo, e sim promover o desejo de mudar as
coisas. Acho que isso é possível.”
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com/brasil
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