Madeleina Albright. GREG KAHN
Publicado originalmente no site El País Brasil, em 22 SET 2018
Madeleine Albright: “O patriotismo é uma coisa, é bom, mas o
nacionalismo radical é muito perigoso”
Por Amanda Mars
Nascida em Praga em 1937 e educada nos Estados Unidos, Marie
Jana Korbelová — Madeleine Albright — foi a primeira mulher secretária de
Estado do país mais poderoso do mundo, sob a presidência de Bill Clinton. Sua
família conheceu de perto a ameaça totalitária do nazismo e do comunismo. Hoje
nos recebe para falar de tudo isso e de sua visão de mundo.
MADELEINE ALBRIGHT sentiu o totalitarismo de perto. Fugiu
dele duas vezes e o viu frente a frente em mais de uma ocasião. Foi embaixadora
nas Nações Unidas, a primeira mulher a dirigir a diplomacia norte-americana
(1997-2001, durante a administração de Bill Clinton) e o primeiro membro do
alto escalão do Governo dos EUA a visitar a Coreia do Norte para tentar abrir
uma negociação. No livro "Fascismo: um alerta"(ed. Planeta) aborda um
conceito fugidio, frequentemente banalizado, do qual hoje vê lampejos
preocupantes.
Albright está nesse período da vida em que a pessoa utiliza
palavras fortes com uma tranquilidade que desarma, como quando diz que Donald
Trump é o presidente mais antidemocrático da história moderna. E quando afirma,
em uma frase já famosa, que há um lugar especial no inferno reservado às
mulheres que não apoiam outras mulheres. Disse isso em um ato da campanha
eleitoral de Hillary Clinton e recebeu uma enxurrada de críticas. “Foi mal
interpretado como se fosse preciso votar em outra mulher porque sim. Mas eu não
teria votado em Sarah Palin nem que fosse a última pessoa sobre a terra”, diz.
Acha que se presta pouca atenção ao sexismo das mulheres? Eu
frequentemente vi como as mulheres não se ajudam entre elas. Fui mãe de gêmeos
e, depois disso, voltei a estudar, e quem mais me dificultava o caminho eram
mulheres, que me perguntavam por que não estava com meus filhos. Uma parte
disso tem a ver com ciúmes, outra é uma projeção da própria fraqueza.
Sua voz soa limpa e forte em seu escritório da Albright
Stonebridge Group, uma empresa de estratégia empresarial com sede em
Washington, a três quarteirões da Casa Branca. No paletó do terno azul exibe um
de seus broches característicos. Em uma das paredes repousa emoldurada uma
cópia do registro de entrada nos Estados Unidos de várias pessoas
correspondente a 11 de novembro de 1948. Entre os nomes está o de Marie Jana
Korbelová, uma garota de 11 anos que nasceu em Praga cuja família pedira asilo
político nos Estados Unidos, fugindo do comunismo. Antes havia escapado do
regime nazista. É Madeleine Albright, uma das mulheres mais poderosas do século
XX.
O que é o fascismo? Um fascista se identifica como membro de
um grupo tribal e diz que esse grupo encarna uma nação. Um líder assim faz tudo
o que for possível para dividir a população em vez de uni-la. E o que separa um
fascista de um ditador é o uso da violência com a finalidade de conseguir e
manter o que quer. O modo mais fácil de defini-lo é com um valentão com
exército.
Madeleine Albright e Bill Clinton, durante a reunião de
Sharm el-Sheikh (Egito)
de 2000 sobre a situação em Israel e na Palestina. (JÉRÔME DELAY/AP)
Alguns desses elementos soam familiares. Lembram certas
políticas na Europa e nos EUA, mas acha que a volta do fascismo é um risco real
em democracias consolidadas? O livro se chama Fascismo: Uma Advertência, e há
quem o veja como alarmista. Mas foi feito sob medida, porque se começamos a
pensar que dividir as sociedades é normal e que é uma forma de solucionar
problemas, corremos um grave perigo. Um líder de tendências fascistas
provavelmente manterá as divisões e encontrará algum grupo como bode
expiatório. Agora, na Europa e nos Estados Unidos esses são os refugiados e os
imigrantes. A melhor citação do livro é de Mussolini, que disse: “Se você
depenar um frango pena por pena, ninguém percebe”. E acho que atualmente muitas
penas estão sendo arrancadas em muitos lugares. Na Hungria, [Viktor] Orbán acha
que está fazendo bem-feito e não quer saber das minorias. Ele define seu país
como democracia iliberal e isso significa, basicamente, que a maioria manda e
não existem direitos às minorias.
Falando de Mussolini, em seu livro conta que Churchill e
Gandhi falaram dele como “o sujeito adequado”. Eu me pergunto por que pensaram
isso. Nos anos 30 as sociedades estavam muito divididas, algumas delas pelo que
ocorreu na Primeira Guerra Mundial e pela situação econômica, de modo que
talvez pensassem que era importante ter um líder forte no lugar de alguém que
não soubesse o que fazer. Mussolini vinha de fora do sistema, em um momento em
que a Itália tinha um Governo atrás do outro e uma crise econômica.
Mas hoje em dia há motivo para tanta irritação? Existem
algumas razões. Na Europa há uma insatisfação pela situação econômica. Muita
gente se beneficiou muito e de muitas formas com a globalização, mas isso tem
um inconveniente. A globalização não tem rosto, as pessoas não sabem que
identidade tem e na Europa se coloca realmente a pergunta sobre o que acontece
em Bruxelas e quais são as regras. Todos queremos saber qual é nossa identidade
étnica, linguística e religiosa, e tudo bem com isso, mas se minha identidade
odeia sua identidade, se transforma em algo muito perigoso.
É aí que está a diferença entre patriotismo e nacionalismo
populista? Sim. O patriotismo é uma coisa, é bom, mas o nacionalismo e o
nacionalismo radical são muito perigosos.
A senhora e sua família escaparam duas vezes de regimes
totalitários. De que maneira isso a marcou? De todas as maneiras. Quando os
nazistas chegaram à Tchecoslováquia em 1939, eu tinha dois anos, meu pai era um
diplomata tcheco e queria ficar com o Governo no exílio, em Londres. Ficamos lá
durante a guerra. Voltamos à Tchecoslováquia e em 1948 ocorreu o golpe
comunista. Minha mãe, meus irmãos e eu fomos por um tempo à Inglaterra e
depois, como a ONU estava em Nova York, nos instalamos lá. Meu pai chegou um
pouco mais tarde, desertou e pediu asilo político. Tudo isso afetou minha vida.
Em primeiro lugar, acredito na bondade dos EUA e nesse país como modelo de bons
valores. A Tchecoslováquia foi traída no acordo de Munique, que os britânicos e
os franceses assinaram com alemães e italianos sobre as cabeças dos
tchecoslovacos. E os EUA não estavam lá. Quando vivíamos como refugiados em
Londres ocorreu o bombardeio e finalmente os norte-americanos chegaram à Europa
para participar da guerra, e tudo mudou. De modo que sendo uma criança notei a
diferença que significou a chegada dos norte-americanos. Meu pai costumava
dizer: “Na Inglaterra as pessoas são muito gentis, nos dizem: ‘Sinto muito que
seu país tenha caído nas mãos de um ditador terrível, você é bem-vindo, mas...
quando volta para sua casa?”. E nos EUA nos diziam: “Sentimos muito, mas...
quando você se transformará em cidadão norte-americano?”. Meu pai me dizia que
isso é o que transformou os EUA em um país diferente. Isso me remete ao que
acontece agora, quando o número de imigrantes que chegam a esse país é o mais
baixo da história e isso, para mim, é antiamericano. É uma das coisas que me
incomodam do que acontece hoje.
O que aprendeu com seus pais? O que mais admiro neles é como
transformaram em normal o anormal. Os dois vinham de famílias abastadas e de
repente estávamos morando na Inglaterra como refugiados. Depois voltamos e meu
pai foi nomeado embaixador em Belgrado e tínhamos cozinheiros e choferes e
todas essas coisas. Depois chegamos aos Estados Unidos e voltamos a não ter
nada, éramos refugiados. Tinham uma grande resistência. Lembro que minha mãe
estava o tempo todo preocupada.
Por quê? É algo que à época não entendia e agora sim.
Morávamos em Denver (Colorado) e não tínhamos parentes. Minha mãe dizia que
todos eram velhos e tinham morrido. Quando me nomearam secretária de Estado, um
jornalista, Michael Dobbs, começou a escrever um perfil sobre mim e descobri
não só minha origem judaica como também que 26 membros de minha família
morreram em campos de concentração. Meus pais se converteram ao catolicismo
depois. Quando fiquei sabendo, já haviam morrido.
“Não acho que Donald Trump seja um fascista, mas é o
presidente norte-americano mais antidemocrático da história moderna”
A partir dessa experiência vital, o que pensa do enfoque não
só de Trump e sim de muitos políticos da esquerda norte-americana, que não
querem que os EUA sejam a “polícia do mundo”? Os norte-americanos não querem
ser a polícia do mundo. Desde o começo de sua história, os EUA não foram
colonialistas em geral. Depois da Segunda Guerra Mundial ocorreu uma verdadeira
sensação de responsabilidade, mas os americanos não querem governar o mundo,
posso garantir. Clinton foi o primeiro a dizer que éramos a nação
indispensável, mas “indispensável” não quer dizer “sozinha”. Significa que
precisamos estar envolvidos, ter alianças com os parceiros adequados e ações
multilaterais. O que acontece, em parte como resultado da guerra no Iraque e no
Afeganistão, é que os norte-americanos agora precisam ser persuadidos a ajudar
internacionalmente. Trump brinca ao dizer que ninguém nos agradece, que não
temos nada a ver com países dos quais não ouvimos falar, e que somos vítimas.
Mas é ridículo, somos o país mais poderoso do mundo.
Que aspectos do Governo de Trump a preocupam mais? Não acho
que Trump seja um fascista, acho que é o presidente norte-americano mais
antidemocrático da história moderna. Ele não criou as condições que o levaram a
ser eleito. Já existiam divisões em nossa sociedade, algumas baseadas nas
crises e em avanços tecnológicos que fizeram com que as pessoas perdessem seus
empregos. Trump não respeita as instituições, acha que está acima da lei, chama
os jornalistas de inimigos do povo e culpa os imigrantes. Existem aspectos
muito preocupantes. O que Trump logicamente não fez foi usar a violência.
O que espera das negociações para a desnuclearização da
Coreia do Norte? A reunião de Singapura em junho foi por enquanto uma vitória
para Kim Jong-un. Trump já deu alguma coisa, deixou de realizar exercícios
militares com nossos aliados. Mas não está claro o que a Coreia do Norte deu em
troca. É difícil de prever. Eu fui o primeiro membro de um Governo
norte-americano a visitar a Coreia do Norte e as negociações de seus dirigentes
são muito duras. Não sabemos qual será o papel da China. Queríamos que nos
ajudassem com tudo isso, mas Trump os está castigando com taxas alfandegárias.
É tudo muito confuso, mas é melhor falar com Kim do que chamá-lo de
“homem-foguete”.
Teme efeitos a longo prazo pelo distanciamento dos Estados
Unidos em relação a seus aliados tradicionais e da ONU? Sim. Vivemos tempos
muito complicados. Sou uma grande defensora da ONU, ainda que alguns aspectos
precisam melhorar. Tem um bom secretário geral, António Guterres, mas é difícil
[que a organização melhore] se os Estados Unidos não fizerem o que se espera
que devam fazer. Estou muito preocupada pelo lugar ao qual se encaminha a União
Europeia, defendo a OTAN e acho que todo mundo deve fazer sua parte, mas o modo
em que Trump falou sobre o assunto me inquieta.
Como vê essa química que Trump parece sentir com Vladimir
Putin? Está além do entendimento. Conheço Putin, é muito inteligente e
sustentou uma aposta fraca e muito bem jogada. É um agente da KGB, sabe como
usar a propaganda, desacreditou não só as eleições norte-americanas como também
a Europa, mas também é muito interessante ver o que ele fez no Oriente Médio,
onde os russos se transformaram em uma espécie de grandes atores. Há muito
debate nos Estados Unidos sobre qual é a base dessa relação e parte dela é que
Trump adula Putin e Putin adula Trump. Isso é o que as pessoas querem que seja
investigado.
Madeleine Albright:
“O patriotismo é uma coisa, é bom, mas o nacionalismo radical é muito perigoso”
Foto: GREG KAHN
Quais foram o maior sucesso e a maior frustração ao longo de
sua carreira? Minha principal frustração foi como embaixadora nas Nações Unidas
em um momento em que havia terminado a Guerra do Golfo e Clinton disse que
éramos indispensáveis. Não estávamos fazendo o suficiente na Bósnia e nem
rápido o suficiente, e também não fizemos nada com Ruanda, e parte disse teve a
ver com o fato de que não tivemos a informação correta. O que considero meu
maior sucesso é Kosovo. Eu era à época a secretária de Estado. Disse: “Tudo
bem, vamos fazer alguma coisa”. Primeiro tive que convencer o Governo
norte-americano, o secretário de Estado pode dizer muitas coisas, mas não tem
exército, de modo que precisa convencer o Pentágono e o presidente. E chegou o
momento em que decidimos usar a força em Kosovo.
“Sou feminista; as sociedades são mais estáveis quando as
mulheres têm poder político e econômico. Mas não é fácil. É preciso que mais
mulheres estejam na sala”
E há 20 anos, como era viver tudo isso sendo mulher?
Voltemos à Bósnia: acompanhei o que acontecia com muita atenção. Pensei que
deveríamos usar a força para deter a limpeza étnica. Colin Powell era o chefe
do Estado Maior Conjunto. Nós dois éramos novos no cargo e Powell era esse
homem grande e bonito que aparecia de uniforme coberto de medalhas, que
explicava muito bem as coisas que podiam ser feitas e que nunca queria usar a
força. E no final eu lhe disse: “General Powell, para que está reservando todo
esse Exército?”. E ele ficou muito irritado comigo. Eu era uma mera mulher
mortal, uma civil discutindo com um herói. Tempos depois escreveu um livro em
que disse que precisou “explicar pacientemente” à embaixadora Albright que
nossos soldados “não eram de brinquedo”. Eu liguei para ele e perguntei porque dizia
“pacientemente”. E me respondeu que era porque eu não entendia nada. Depois me
enviou um exemplar assinado com uma dedicatória: “Com carinho e admiração, etc.
Pacientemente, Colin”. E eu lhe enviei uma nota de agradecimento dizendo “com
admiração, etc. Energicamente, Madeleine”. É um exemplo do que era ser mulher.
Era a única naquela sala. Eu continuava insistindo naquelas conversas que não
podíamos deixar aquelas pessoas morrerem e me diziam: “Não seja tão emotiva”.
Aprendi a discutir de forma diferente.
Diante dessa onda de feminismo, acha que a mudança é real?
Não sei. O importante é não permitir que agora ocorra um repúdio. Fui a
primeira secretária de Estado em colocar os assuntos da mulher no centro da
política exterior, e não só porque sou feminista e sim porque as sociedades são
mais estáveis quando as mulheres têm mais poder político e econômico. Mas não é
fácil, é preciso que mais mulheres estejam na sala. Quando era embaixadora na
ONU, existiam 180 países membros e somente outras seis mulheres. Agora há
muitas outras embaixadoras, ministras das Relações Exteriores, de Defesa... E é
interessante o número de mulheres que estão se candidato nas eleições ao
Congresso norte-americano.
A senhora sempre foi feminista ou foi um processo? As duas
coisas. Quando fui à universidade achava que as mulheres eram capazes de fazer
o que quisessem, mas na geração seguinte o processo foi mais incisivo. Para
mim, que tenho 81 anos, a questão era tentar averiguar como crescer fazendo
coisas interessantes. Sou feminista. Há quem não goste da palavra, mas não é
uma palavra ruim. Não acho que o mundo deva ser comandado somente por mulheres.
Quem acha isso se esqueceu de como era no colégio, com todas aquelas meninas
mandonas dizendo a todo mundo o que deveriam fazer... É importante que exista
uma colaboração entre homens e mulheres.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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