terça-feira, 3 de abril de 2018

Quarta revolução industrial




Publicado originalmente no site da Livraria Cultura

Quarta revolução industrial: Os robôs cairão no samba com a gente?

Por Viviane Vaz

Se você nasceu no século passado, deve ter assistido ou tomado conhecimento do desenho animado Jetsons, de Hanna-Barbera. A empregada doméstica Rosie era um robô e vários outros modelos falantes e dotados de personalidade faziam parte, em 2062, da vida cotidiana da família que dá nome à animação. Carros-naves voavam, skates superavam a força da gravidade, trens aéreos eram autoconduzidos. Uma cozinha completamente automatizada servia a comida em segundos. Falava-se à distância por meio de telas que permitiam ver o interlocutor. Uma realidade que parecia tão distante dos anos 1970! Mas já estamos lá – ou quase lá! E esse futuro tem nome: quarta revolução industrial, revolução 4.0 ou 4RI. “Estamos a bordo de uma revolução tecnológica que transformará fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos”, diz Klaus Schwab, diretor do Fórum Econômico Mundial (FEM) e autor do livro A quarta revolução industrial (Editora Edipro), lançado no ano passado.

A economia viveu três processos anteriores que mudaram nosso modo de produzir e de viver. Quando a primeira revolução industrial surge na Inglaterra, entre 1780 e 1830, o advento de máquinas movidas a vapor originado da queima do carvão permite que a produção manual passe a ser mecanizada. A segunda revolução aparece na segunda metade do século 19, com a invenção da energia elétrica, do telégrafo, com o uso do petróleo, do motor à explosão, da produção em série e em massa. A terceira ocorre em meados do século 20, com as telecomunicações, os computadores eletrônicos, a internet e a digitalização de dados. O Banco Mundial também chama a terceira revolução industrial de revolução da informação. Na definição da entidade, a 4RI também poderia ser chamada de segunda revolução da informação.

Schwab defende que as transformações atuais não representam uma extensão da terceira revolução industrial por três grandes razões: a velocidade, o alcance e o impacto. “A velocidade dos avanços atuais não tem precedentes na história e está interferindo em quase todas as indústrias de todos os países”, afirma. Não é por acaso que um dos primeiros livros sobre essa nova era tenha sido escrito por um economista alemão. O termo “indústria 4.0” foi utilizado pela primeira vez na Alemanha em outubro de 2012, pelo engenheiro Henning Kagermann e pelo físico Siegfried Dais na feira de tecnologia Hannover Messe. Eles apresentaram um conjunto de recomendações para implementação da indústria 4.0 ao governo federal da chanceler Angela Merkel, que colocou o tema na lista de prioridades do país. Merkel, inclusive, chamou a atenção dos governos presentes no Fórum Econômico realizado em Davos em 2015 a “lidar rapidamente com a fusão do mundo on-line e do mundo da produção industrial”.

O advogado australiano Nicholas Davis é quem lida diariamente com esse tema complexo no FEM, em Genebra, como chefe do setor de sociedade e inovação. Em entrevista por telefone, ele observa que cada “nova” revolução industrial é formada graças aos avanços das anteriores. “Hoje, a quarta revolução significa a convergência das tecnologias físicas, digitais e biológicas, todas construídas nos sistemas digitais”, resume.

IOT – O FUTURO DAS FÁBRICAS

Nesta quarta revolução, a ideia é que as fábricas funcionem em estruturas modulares, com sistemas ciberfísicos que monitoram os processos físicos, criam uma cópia virtual do mundo real e tomam decisões descentralizadas. Com a internet das coisas (“internet of things”, ou IoT, em inglês), os objetos se comunicam e cooperam entre si e com os humanos em tempo real, por meio da computação em nuvem.

Mas o que, afinal, é essa tal de internet das coisas? O programador norte-americano Bob Rankin simplifica em seu bem-humorado blog que são coisas que não deveriam estar conectadas à internet, mas receberam um nome e um endereço IP. “Na pressa para conectar cada partícula de matéria na Terra à internet, nós realmente precisamos parar e considerar todas as coisas que não deveriam ser conectadas,” defende ele, que se mostra cético quanto à aplicação da IoT em objetos de uso pessoal, como uma escova de dentes “inteligente”, a qual foi lançada no ano passado e permite filmar os movimentos da escovação e iluminar a arcada dentária sob até 12 cores. Os dados são enviados a um aplicativo que possibilita analisar se houve uma escovação de dentes correta. “Não, obrigado, internet. Fique fora do meu banheiro”, brinca Rankin.

Na indústria 4.0, porém, é a internet das coisas que permite colocar em prática o conceito de fábrica inteligente, automatizada, que dispensa a mão de obra humana. No Brasil, o italiano Fabio Bottacci trabalha como consultor independente especialista em IoT. Ele confessa que pouca gente entende seu trabalho. “Temos de fazer palestras, reuniões... Tem muito hype, mas na verdade poucos sabem o que é essa inovação”, diz.

Bottacci traduz a IoT na indústria como um “monte de sensores” espalhados em uma linha de produção ou montagem e que, em tempo real, adquirem dados para análise. A informação pode ser enviada via internet para uma “nuvem” de dados e ser avaliada em um computador do escritório ou pode ser analisada imediatamente por um minicomputador instalado na peça em questão. Pode servir, por exemplo, para avisar ao sistema que um determinado objeto da fábrica está a ponto de quebrar e para conduzir medidas preventivas. “Vira praticamente um guardião da produtividade sem precisar de intervenções externas. E os eventos são previstos com semanas de antecedência. Dessa forma, você otimiza a manutenção com a produção.”

O consultor avalia que não necessariamente as economias emergentes deverão ficar de fora da corrida à 4RI e podem até saltar etapas. “Como no caso da telefonia na África. Eles nunca tiveram a fixa e pularam diretamente para a 3G/4G. O custo de aplicar uma IoT está ficando tão acessível que a grande diferença serão os algoritmos e a inteligência artificial aplicados a esse monte de dados”, prevê.

RESPONSABILIDADE

Davis reconhece que o Fórum Econômico Mundial tem grande responsabilidade em moldar “o que queremos parecer no futuro”, assim como o consumidor em casa. “Essas coisas não são determinadas com antecedência e dependem da escolha de famílias, consumidores individuais e líderes governamentais que decidem sobre os regulamentos”, explica.

Segundo o australiano, as pessoas tendem a olhar para a tecnologia de duas maneiras extremas: uma parte pensa que ela está completamente fora do nosso controle e “aparece feito mágica” em algum lugar como o Vale do Silício. Para esse grupo, a única resposta possível seria adaptar-se e aceitar que nosso destino é determinado pela tecnologia. Um segundo grupo pensa que ela é apenas uma ferramenta, sem valor em si, que funciona como um martelo que podemos usar ou não.

“Nenhuma dessas correntes de pensamento é muito útil”, considera Davis. “Por um lado, a tecnologia não é mágica, não vem de todos os lugares e as pessoas têm diferentes quantidades de poder em termos de como ela é criada. Por outro, a tecnologia pode, sim, exercer poder sobre nós. A tecnologia nos afeta e a nossos filhos, as gerações futuras e as pessoas em outros países que não a projetaram. Então, precisamos assumir a responsabilidade, porque o valor dela tem poder e influência ao longo do tempo”, defende.

CLASSE MÉDIA DESEMPREGADA

O que difere essa revolução das outras? Nas três revoluções industriais anteriores, os avanços tecnológicos substituíram o homem principalmente nos trabalhos físicos, que exigiam mecânica e força. Em seu best-seller Homo Deus (Companhia das Letras), o escritor israelense Yuval Harari observa que esta é a primeira vez na história da humanidade em que as máquinas estão adquirindo capacidades cognitivas, tipicamente humanas. E, a partir desse cenário, sua preocupação, como demonstrou em uma entrevista ao escritor norte-americano Sam Harris, é que “não sabemos onde certo grupo de pessoas irá trabalhar. As pessoas costumam dizer que novos empregos vão surgir para substituir os antigos, tal como aconteceu em ondas anteriores de automação. Acho que não podemos ter tanta certeza”, opina.

Para o autor, o perigo é que a automação e a ascensão da inteligência artificial criem “a sociedade mais desigual” que já existiu, porque mais e mais pessoas serão afastadas do mercado de trabalho para se juntarem a uma nova classe: a inútil. “O problema crucial não é criar novos empregos. O problema é a criação de novos empregos em que os humanos apresentem melhor desempenho do que os algoritmos”, afirma em artigo publicado no jornal britânico The Guardian. Harari aceita que novas profissões aparecerão, como a de designers de realidade virtual. “Mas essas profissões provavelmente exigirão mais criatividade e flexibilidade, e não está claro se os motoristas de táxi ou agentes de seguros desempregados poderão se reinventar como designers do mundo virtual”, diz. “Não vejo nenhuma maneira na qual um caixa de supermercado se tornará um engenheiro do Vale do Silício”, alerta.

No Brasil, a antropóloga Elizete Ignácio considera que ainda é cedo para uma interpretação pessimista. “As pessoas estão buscando caminhos. Todos esses processos de transformação de modelos produtivos excluíram pessoas. O exemplo do agricultor que perdia o emprego para a mecanização das lavouras e tinha tempo de chegar à cidade e buscar um novo emprego foi mais uma questão de adaptação individual do que de políticas públicas que deveriam ter sido pensadas para ajudar essas pessoas a se recolocarem”, avalia. “Havia aquelas pessoas que conseguiam se recolocar, mas também havia um índice crescente de violência urbana, aumento de pobreza e degradação social.”

PREVISÕES

Os números não são alentadores. A consultora CB Insights garante que a automação e a robótica colocarão mais de 10 milhões de empregos em risco nos próximos cinco a dez anos. Um relatório do FEM publicado em janeiro de 2016 indica que, em cinco anos, cerca de 7,1 milhões de empregos podem ser perdidos. A consultoria Ernst & Young estima para sete anos o tempo em que um a cada três trabalhadores será substituído pela automação. Um estudo da Universidade de Oxford vai além e prevê que 47% dos empregos que hoje conhecemos estão condenados a desaparecer em 25 anos.

No mundo do marketing, o irlandês Paddy Cosgrave, cofundador da Web Summit (uma conferência de tecnologia), aposta no trabalho das máquinas. No ano passado, meses antes de seu megaevento para cerca de 50 mil pessoas, ele gabara-se pelo Facebook de não usar uma equipe de marketing, mas de engenharia. “Apenas um marqueteiro em todas as plataformas, observando as máquinas que construímos e, às vezes, dando sugestões para campanhas”, disse em post publicado em fevereiro de 2016. “A idade do marketing está chegando ao fim. A mente humana simplesmente não é construída para identificar e otimizar o tipo de escala, velocidade e sofisticação”, declarou. “Na Web Summit, acreditamos firmemente que formas específicas de inteligência artificial são mais capazes do que centenas de seres humanos em descobrir os tipos de anúncios de alta qualidade que as pessoas realmente querem ver”, defendeu.

No Brasil, o publicitário Luiz Buono aposta em um caminho inverso. “Estamos falando de gente. Os profissionais de marketing precisam olhar para as pessoas. Os algoritmos ajudarão em muito nossa tomada de decisões, mas não conseguirão substituir nosso olhar atento e sensível”, afirma, antes de ressaltar que as empresas terão de buscar mais coerência entre “suas crenças e o que vendem”. “Não adianta utilizarmos estratégias invasoras, que acabam por irritar as pessoas. Estamos num novo momento, as pessoas estão olhando quem são as marcas, o que elas estão trazendo de bom ao mundo”, explica.

O advogado belga Etienne Wery, especialista em Direito e internet, observa que a automação e a inteligência artificial também avançam. “Começamos a perceber um mecanismo de substituição do know how: por que pagar 200 euros para um advogado por um contrato de aluguel disponível em um smartphone por 20 euros? E estamos apenas no início”, avisa.

Ele admite que muitos advogados ficarão sem trabalho e se adaptar aos novos tempos não será fácil. Para ser bem-sucedido nessa transformação, é necessário rever sua proposição de valor único. “Cada advogado-empresário deve assumir o controle de seu destino e repensar sua singularidade: por que um cliente viria até mim em vez de outro? Qual é o meu modelo? Como posso testar o meu projeto (pontos fortes, fracos)?”, aconselha.

OS “CS” DO FUTURO

Nos Estados Unidos, o Departamento de Estatísticas do Trabalho preparou um informe com previsões para os próximos dez anos, assumindo que o desemprego deve aumentar na indústria com a crescente automação do trabalho. Segundo o estudo, as oportunidades de emprego devem aumentar nos setores apelidados de “3 Cs”: computadores, cuidados (care) e energia limpa (clean energy). O setor de assistência a idosos e serviços domésticos deve crescer e criar 1,1 milhão de postos de trabalho. Instaladores de painéis solares e técnicos de turbinas eólicas são empregos que deverão duplicar em 2026, assim como os de matemáticos e estatísticos.

No mesmo sentido, um relatório do FEM indica que as maiores perdas serão cargos de escritório e administrativos, que podem ser compensados pela criação de 2,1 milhões de empregos em computação, matemática e engenharia. Nicholas confessa que a preocupação é encontrar respostas para os trabalhadores com “menos habilidades”. Ele espera que essas pessoas consigam migrar para outros setores, como o de assistência aos idosos. No Brasil, ele cita como estudo de caso alguns projetos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, envolvendo parcerias do Estado, centros técnicos e empreendimentos privados, para reorientar e empregar pessoas nos setores de turismo, serviços e agricultura familiar.

O futuro da educação também envolve outros Cs. O português Marco Neves, professor de computação, é um dos embaixadores do Scientix, um projeto da União Europeia para incentivar a ciência e a inovação. “Como o futuro é uma grande incógnita, tentamos passar aos alunos um conjunto de competências que não são simples, pois são abstratas. Aqui na Europa falamos dos chamados 4 Cs das competências do século 21: colaboração, comunicação, critical thinking (pensamento crítico) e criatividade. E normalmente costumo acrescentar um C: o da curiosidade”, explica. “Temos de estar preparados para sermos estudantes por toda a vida.”

O professor também alerta que “a tecnologia em si não é cura nenhuma” para resolver os problemas e desafios da educação. “Apenas investir em tecnologia, dar um smartphone, iPad ou um robô para uma criança não vai mudar nada. Isso seria uma desresponsabilização da escola e dos pais”, avisa.

PREOCUPAÇÃO GLOBAL, RESPOSTA LOCAL

Elizete Ignácio defende que a cultura terá um papel fundamental para definir como cada região e cada país vão se apropriar dessa nova revolução industrial. “A globalização não trouxe a homogeneização total de hábitos culturais”, afirma. Para obter respostas locais, será preciso dar “diversidade cultural” aos processos de automação e criação de inteligência artificial. “Estamos transferindo para essas inteligências artificiais o que somos na vida real. Quanto mais conseguirmos dar diversidade a elas, melhores resultados teremos”, sugere. “Sou otimista. Cada revolução industrial trouxe melhorias de qualidade de vida em relação ao passado e aumentou a expectativa de vida. Agora depende de nós, seres humanos, descobrir onde a gente quer chegar e como a gente quer chegar.”

Texto e imagens do site: livrariacultura.com.br

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