Quem precisa de educação?
Por revista Trip
Pouco sabemos da realidade existente fora das nossas bolhas.
A saída é a educação. Não está na hora da elite liderar essa transformação?
Reunimos um time de brasileiros pensantes, homens e mulheres
de todas as gavetas e escaninhos da estante brasileira, membros de algumas das
mais abastadas famílias do país, gente de origem muito pobre, artistas,
pensadores, alguns muito novos, outros já mais velhos, para refletir sobre a
educação brasileira a partir de suas próprias perspectivas. Em comum a todos, o
fato de que não se deixaram lobotomizar por competição, consumo, necessidade
desesperada de aprovação social e, em última análise, de fama e de dinheiro.
Gente que mantém e exercita (ou está buscando exercitar) o olhar para o outro e
a tal empatia.
As perguntas variaram, mas fundamentalmente queríamos saber:
é possível reeducar nossas elites? Aliás, o que é exatamente elite? É possível
sonhar com gente um pouco mais razoável e humanizada nos postos de liderança de
governos, empresas, partidos, religiões, entidades esportivas, nas artes, na
cultura? Nossa elite, afinal, tem jeito?
Participaram Ana Júlia Ribeiro, ativista que ganhou destaque
no movimento secundarista em 2016; Ana Moser, ex-jogadora de vôlei e presidente
do Instituto Esporte & Educação; Camila Pitanga, atriz; Christian Dunker,
psicanalista; Eduardo Lyra, empreendedor social; Elisa Lucinda, atriz; Flávio
Canto, ex-judoca e fundador do Instituto Reação; Francisco Bosco, filósofo;
Marcello Dantas, curador de arte e documentarista; Marcio Black, cientista
social; Marina Person, apresentadora e cineasta; Marisa Moreira Salles,
fundadora dos projetos Por quê? e Arq.Futuro; Neca Setubal, cientista social e
presidente da fundação Tide Setubal; Sidarta Ribeiro, neurocientista; Tábata
Amaral de Pontes, estudante de escola pública formada em Harvard e criadora do
projeto Mapa Educação; e Teresa Bracher, diretora do instituto Acaia Pantanal.
Tábata Amaral de Pontes, estudante da escola pública
brasileira formada em Harvard e criadora do projeto Mapa Educação. A primeira
coisa que eu penso quando a gente fala de educação voltada para elite é em
educação política e cívica, que te leva a entender em que momento histórico
estamos vivendo, o que está acontecendo com a política, qual é o meu papel como
cidadã e como sou responsável não só pelo que eu fiz, mas também pela posição
em que eu nasci.
Marisa Moreira Salles, sócia-fundadora da BEI Editora, do
Por quê? e do Arq.Futuro. Há o preconceito de uma geração com a educação
cívica, que ficou associada ao período militar. E não é. No fundo, é “como é
que eu vivo numa cidade?”. Se eu não fizer as minhas escolhas, alguém vai fazer
por mim. Então, é muito mais inteligente eu tentar entender a complexidade
daquilo e ir formando opinião. Agora, a minha opinião, vazia, não é nada se ela
não foi educada pelo contato, pela troca. Na hora que eu me fecho em muros e
acho que estou protegida, é uma grande mentira. Porque tem alguém que pegou um
transporte de três horas, saiu de um mundo completamente diferente, entrou
nessa muralha... Ele conhece meu mundo. Mas quantas vezes eu saio do meu mundo
e vou lá? Pouquíssimas. Você tem de fazer um esforço para isso e essa é a maior
riqueza que a gente tem na vida.
Marcio Black, cientista político e produtor cultural. O nosso
papel é tentar criar esses diálogos – quanto mais pra cima, melhor – e garantir
que as portas estejam abertas para quem está vindo atrás da gente. Se eu abrir
uma porta, preciso falar: “Galera, vem por aqui”. Aos poucos, algumas pessoas
vão se desarmando, vão entendendo, se colocando no nosso lugar, a empatia rola.
Mas pesquisas dizem que um homem negro, com a mesma formação de um homem
branco, ainda levará 30 anos para ter a mesma renda. Para quem está lá atrás
então...
Neca Setubal, cientista social, acionista do Itaú e
presidente da fundação Tide Setubal. Temos um desafio cultural a ser cumprido,
que é a igualdade dos direitos. Os países na Europa têm isso muito forte. Mais
do que políticas universais, iguais para todos, nós temos que ter uma universalização
dos direitos. Para isso, é preciso que as escolas que tenham alunos mais
vulneráveis, mais pobres, tenham os melhores professores, os melhores
materiais, inverter, dar mais para quem tem menos.
Elisa Lucinda, atriz. A gente precisa ter um olhar crítico e
ao mesmo tempo conhecedor das nossas raízes; nós não temos. O que está posto
nos cânones da nossa história é uma história mentirosa. A história foi escrita
pelos caçadores, pelos domadores, e não pelo ponto de vista dos leões. Precisa
haver uma educação sincera brasileira.
Ana Júlia Ribeiro, ativista que ganhou destaque no movimento
secundarista em 2016. A educação que a elite precisa é a que toda população
precisa. Tanto a elite quanto a periferia precisam da mesma educação. Essa
educação da qual os dois setores estão com carência (só que um lado é muito
mais afetado) é uma educação emancipadora, de qualidade, que desenvolve o
cidadão em sua integralidade. Não uma educação voltada só para o mercado de
trabalho. A educação hoje, na maior parte, é voltada para o mercado de
trabalho. A diferença é que a elite tem acesso à cultura, ao lazer, a um milhão
de coisas que nós, estudantes da escola pública, não temos. É por isso que ela
consegue se sobressair.
Neca Setubal. Roberto DaMatta, sociólogo, fala que as elites
no Brasil, não só as financeiras, mas as elites intelectuais, artísticas,
esportivas, políticas, não querem se igualar, elas querem ter o seu destaque,
não abrem mão do privilégio. Ele fala: “Você sabe com quem você tá falando?”.
Isso acontece com muitas dessas elites. Ela não quer ficar na fila.
Christian Dunker, psicanalista, professor livre-docente do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). As elites são convidadas
a se perceberem parte de uma paisagem muito maior do que elas estão
acostumadas. Então, isso cria uma espécie de crise narcísica, em que o capital
financeiro não consegue mais transformar o capital cultural em capital social.
Estudar na USP não garante mais que você pertencerá à elite, mas, sim, o
capital social gerado desde a infância, nas escolas ricas, em que se assegura o
networking para manter o status até a vida adulta.
Teresa Bracher, diretora do instituto Acaia Pantanal. A
elite brasileira precisa, em seu processo de educação, ter contato com outras
classes sociais. Esse fosso que a gente tem hoje é criado por essa distância.
As pessoas não se conectam, não se conhecem. É muito importante, desde criança,
você ter contato, conviver com famílias de classes mais baixas, com outro
mundo. Não é só a escola que é responsável por isso, as famílias também. A
gente vive num país onde os mundos estão separados, e isso é ruim para todo
mundo. Eu acho muito importante que as escolas de elite insiram no seu
currículo trabalho voluntário e experiências com outras realidades. Tem que
fazer parte da formação conhecer o Brasil.
Marcello Dantas, curador de arte e documentarista. Tem uma
coisa muito simples da qual as pessoas se esquecem: elite, especificamente, não
é uma coisa ruim. Toda sociedade precisa de alguma espécie de elite, seja
intelectual, política, financeira... Mesmo as sociedades socialistas, quando
tentaram fazer o socialismo se implantar, a primeira coisa que eles criaram foi
uma elite. Mesmo dentro de um sistema operário se criou um líder sindical, um
líder trabalhista, e por aí vai. É difícil olhar isso. O que a gente pode olhar
no Brasil não é a palavra elite, porque quando você pensa em elite, assim, você
não quer uma elite intelectual no país? Você não quer uma elite de liderança no
país? Você não quer uma elite criativa no país? Claro que você quer.
Marina Person, apresentadora e cineasta. A elite não tem
contato com a realidade brasileira. Não estuda com pessoas de classe social
diferente da dela, e quando ela chega no momento da universidade, tem para si
uma universidade pública que tampouco contempla quem não tem acesso à educação
particular.
Marisa Moreira Salles. Não foi dada a base para eles
[camadas mais pobres] competirem de igual para igual nas escolas públicas, que
é onde deveria haver essa igualdade de oportunidade. E é o oposto. Eles pagam
caro. Qualquer educação é melhor do que nenhuma, mas é aquela educação de base,
a saúde de base, que vai te dar oportunidade de competir pela universidade
pública gratuita, que é melhor. Não que não existam universidades privadas
muito boas também, mas houve uma inversão de tudo. Devia ser a primeira
exigência nossa como povo. É educação. É saneamento. É saúde. Para mim, é esse
o ponto que mais incomoda o tempo todo. Quando a gente teve a oportunidade de
vender os valores reais da vida, a gente vendeu consumo.
Sidarta Ribeiro, neurocientista. A única maneira de o Estado
brasileiro dar certo é se as pessoas enriquecerem de baixo pra cima; isso gera
consumo, circulação de mercadorias, cobrança de impostos, o sistema se
realimenta. Mas aqui a elite não tem essa responsabilidade com o futuro, com o
que vai acontecer daqui a dez, 20, 30 anos. Isso começa lá na escola, quando a
gente aprende sobre a história da Europa, e não sobre a história da América
Latina ou da África.
Marina Person. O mundo ideal seria aquele em que a gente
tivesse uma educação pública de qualidade no ensino fundamental, onde ricos e
pobres se misturassem. Isso seria o grande passo para que as elites tomassem
contato com o que é a maior parte da realidade brasileira.
Teresa Bracher. Infelizmente, muitas famílias só viajam pra
fora. É engraçado que quando as escolas propõem isso [conhecer outras
realidades brasileiras] os pais têm medo. Tem escola que leva os alunos para a
Serra da Capivara, no Piauí, mas, quando propôs isso, os pais ficaram
apavorados, ninguém queria, tinham medo. Mas depois passou. As escolas têm que
abrir essa porta e as famílias também. Senão a criança não conhece a realidade
do país, ela acha que a realidade é aquela bolha em que ela vive. Viver nessa
bolha é uma coisa muito desinteressante, é empobrecedor demais, como
experiência de vida, como compromisso para você contribuir com um Brasil
melhor.
Neca Setubal. A elite financeira é uma elite cosmopolita que
conversa com escolas cosmopolitas globais. Eu vejo com muita preocupação, eu
fico triste, para dizer a verdade. O problema não é a escola, é a desconexão
com a realidade brasileira. Talvez a escola reforce essa desconexão, você se
conecta cada vez mais com o mundo.
Marina Person. Em São Paulo tem duas novas escolas que estão
sendo inauguradas com mensalidades de R$ 8 a R$ 10 mil. Escolas bilíngues, que
têm base muito forte de inglês, educando pessoas que não vão fazer universidade
no Brasil e que concorrem nessa fatia da ultraelitização da nossa juventude, de
novos líderes. Tem um individualismo em um sistema como o nosso, capitalista.
As pessoas querem só se salvar. Você tem que cuidar pra que você se salve nesse
meio todo. É falta de noção de pertencimento a essa sociedade
Teresa Bracher. Tem que internacionalizar mesmo, o mundo hoje é conectado. Mas também tem que lidar com a realidade imediata. Porque do lado da sua casa tem uma favela. E aí, esse mundo não existe para você?
Teresa Bracher. Tem que internacionalizar mesmo, o mundo hoje é conectado. Mas também tem que lidar com a realidade imediata. Porque do lado da sua casa tem uma favela. E aí, esse mundo não existe para você?
Flávio Canto, ex-judoca e fundador do Instituto Reação. Tudo
é muito injusto. Nos primeiros dois anos de Reação, na primeira vez que subi
numa favela do Rio de Janeiro, eu tinha 25 anos. Era um mundo novo que me era
apresentado ali e que estava do meu lado o tempo inteiro e no qual eu nunca
tinha entrado. A gente não fala de inclusão social, a gente fala em integração,
porque parece que quem está embaixo precisa conhecer quem está em cima na
pirâmide social, mas quem está em cima não precisa ir para baixo, porque lá não
presta.
Sidarta Ribeiro. Seria muito importante que a gente
federalizasse a educação, subisse o nível, transformasse a educação em uma
atividade de alta prioridade do Estado. E que os ricos pudessem participar da
educação pública. Se o filho do rico estuda na mesma escola do filho do pobre,
começa a existir a possibilidade da empatia.
Eduardo Lyra, empreendedor social e fundador da ONG Gerando
Falcões. A discussão de classes afasta as pessoas, a gente precisa de exemplos
de pessoas que unam as classes. OK, você nasceu rico e não tem culpa, como não
tenho culpa de ser pobre, mas e aí? Como podemos juntos tornar o país menos
desigual e mais justo?
Tábata Amaral de Pontes. Eu não acho que o ponto seja
arrogância, acho que é ignorância e medo. Tenho muitos amigos próximos que,
quando eu chamava para ir para minha casa, os pais deles morriam de medo,
tinham que ir de motorista. As pessoas têm um receio muito grande, que não é
fundamentado. São Paulo, por exemplo, é uma cidade perigosa. Se você não
conhece, não recomendo que vá sozinho para a periferia ou para a favela. Mas
precisamos entender que, se a gente não quebrar as barreiras de alguma maneira,
a sensação de insegurança, o crime e a desigualdade só aumentam. As pessoas têm
receio porque não têm ideia do que vão encontrar lá. Você vê no noticiário
dizendo que o bairro é perigoso, por que você vai se relacionar com essas
pessoas? Isso aumenta o preconceito, a desigualdade e tudo o que a gente tem de
ruim.
Marisa Moreira Salles. O medo ocupou o espaço do convívio. A
gente está vivendo uma crise de confiança absurda. Aí, se a gente olhar
politicamente, o que a gente tem é uma crise de confiança. Como vencer isso? Na
verdade, você tem políticos que uma hora falam uma coisa e outra hora falam
outra. Não são eles. Eles são um retrato da gente. Somos nós, né, que temos
essa atitude em relação a tudo. E temos medo do outro. A gente está com medo de
sair na rua. O espaço que era da educação cívica, do respeito, do espaço de
todos, do espaço público, foi se perdendo. E a gente foi se trancando, se
fechando, e foi criando esse abismo, que eu não acho que é só um abismo de
classes sociais. A educação é grande parte disso.
Elisa Lucinda. Eu creio que a elite brasileira precisa de
uma educação com princípios de cooperação para além da família, algo que você
só conhece entre os povos mais pobres. A vida coletiva, além de ser uma lição
dos povos primitivos, é também uma necessidade da vida em comunidade. Grosso
modo, o que quero dizer é que meninos pobres dividem o brinquedo entre irmãos,
vizinhos, criam juntos estratégias que supram a falta, enquanto meninos ricos
se isolam em seus quartos com o seu brinquedo que vai ter mais valor, de
preferência, se for melhor do que o do irmão. Isso é muito grave. O ensino
brasileiro de elite trata da mesma maneira o seu conteúdo e o objetivo de
estudar: competir, vencer o outro, ser o melhor, derrotar. Quando colégios
caros são especialistas no ranking que eu acabei de listar, temos um
diagnóstico de uma educação egocêntrica, excludente e, por isso mesmo, para
produzir e manter a injustiça e a guerra. O menino branco é criado em seu
condomínio branco, servido por empregados pretos, para que ele e seus
descendentes sejam sempre os patrões dos outros, os melhores.
Christian Dunker. Isso gera demandas como escolas
condominiais, escolas que vão vender a ideia de que, no fundo, essa elite não
pertence ao Brasil, ela já é uma elite que precisa ser reconhecida por outras
linguagens. Tem que falar inglês, morar em Miami, estudar nas escolas das
princesas, que vão internacionalizar nossas elites. Esse sonho é antigo, é
anacrônico e, no fundo, bastante vergonhoso porque é provinciano. A elite
precisa sair do país movida pela vergonha, pela incapacidade de se deixar
reconhecer, por limitar e ampliar o acesso aos bens simbólicos, por lutar por
uma educação qualitativamente mais justa e diversificada.
Flávio Canto. Existe uma apatia que já é histórica do
brasileiro em relação à política. A gente tem uma visão assistencialista,
esperando um Estado-mãe que tem que fazer tudo, mas não vai fazer nunca, a
gente tem uma epidemia de corrupção. Falta para a sociedade, e para a elite
brasileira, matar a bola no peito e falar “pô, tem que ser com a gente”.
Marina Person. Isso melhorou um pouco com as cotas, mas
ainda assim há um abismo muito grande entre a elite financeira e a maioria do
país.
Marcello Dantas: Sabe o que o Brasil perdeu? Meritocracia. É
isso o que a gente perdeu. Ou seja, tá tudo certo em ter elite, se você tiver
meritocracia. Se a pessoa chegou ali por mérito, não porque é filho do César
Maia, ou porque é filho do fulano de tal, ou porque é filha do deputado. Neto
do Antônio Carlos Magalhães. Abençoado pelo Lula. Toda essa putaria, que eu
acho que é a coisa que a política brasileira virou. É hereditária, e não é por
mérito. Se chegasse lá por mérito, estava tudo certo.
Neca Setubal. Dentro das condições que eu estou colocando de
igualdade, as cotas fazem parte disso. Vou falar um pouco de meritocracia, que
é um conceito extremamente liberal, não é do Brasil, vem do século 19, mas, sem
radicalizar a questão, eu vou defender a meritocracia. Num país como o Brasil,
o que não é meritocracia é nepotismo, é interesse político, interesse dos meus
amigos. Obviamente não se trata disso. É importante a meritocracia, mas ela é
importante desde que as pessoas estejam no mesmo ponto de partida. Como isso
não acontece e estamos longe disso, a meritocracia tem que olhar e perceber
onde eu tenho que tratar diferente para que consiga a igualdade. Tratar
diferente os desiguais. Tem uma frase naquele filme Nunca me sonharam, que o
Instituto Unibanco produziu, que o menino fala que acha legal a meritocracia,
mas enquanto uns estão no primeiro andar, ele está no segundo subsolo.
Marcio Black. Se a meritocracia fosse aplicada num sistema
racional e objetivo, e devolvesse para as pessoas conforme o esforço que elas
colocaram, quantas horas você não dormiu, quantas horas você trabalhou, quanto
do seu fim de semana você comprometeu para estudar, uma pessoa como o
[sociólogo negro] Túlio Custódio seria imperador do mundo.
Sidarta Ribeiro. No Brasil, o rico tem o discurso de que é
roubado, injustiçado... um discurso de underdog, que permite que ele venda o
país. Por que não vender o óleo da Petrobras para os outros, já que a gente é
incompetente? Esse discurso de perdedor é o discurso da elite brasileira. Quem
tem discurso de liderança na elite brasileira hoje? O discurso de vencedor, que
diz que o povo é capaz e vamos crescer juntos… A gente não vê isso. A elite
está se escondendo das coisas erradas que eles historicamente fazem. A elite
fica mal-educada quando ela é criada por uma babá que faz tudo por ela e por
quem ela não tem nenhum respeito. Quando você cria pessoas em condomínios
fechados e em escolas cheias de serviçais, elas vivem em uma bolha que acha o
Brasil cafona e que não vai dar certo. E não interessa para a sociedade essa
pessoa rica que não sabe o que fazer com esse dinheiro.
Francisco Bosco, filósofo e poeta. É uma elite
hipocritamente identificada com o que ela considera primeiro mundo. Essa
identificação acaba quando se discute as mesmas medidas políticas que fazem
desses países democracias mais robustas, com mais igualdade. Quando se tenta
abrir qualquer discussão sobre essas medidas no Brasil, as elites são as mesmas
a sabotar essa discussão com argumentos terroristas, do tipo, se você faz uma
reforma tributária profunda, no sentido progressista, assusta o investidor. Se
o governo taxar grandes fortunas, vão tirar o dinheiro do país, vai ter
consequências ruins. Existe um terrorismo.
Christian Dunker. Como membro de uma elite cultural,
acadêmica e intelectual, percebo que passamos muito tempo sem nos
responsabilizarmos pela nossa posição social. O ódio que a gente percebe, o
antiacademicismo, um ressentimento contra as universidades, contra os
professores, têm em grande medida alguma razão de ser. A universidade teve que
se proteger atrás dos muros e dar continuidade para sua função de ser babá de
certa elite, não se responsabilizando muito pela intervenção na sociedade civil
que, no fundo, é quem paga a conta.
Marcio Black. Quantos colunistas negros você tem hoje em
grandes veículos? Quantos diretores de empresas? Quantos professores
universitários? E aí quando você olha para o corpo docente da universidade,
quantos desses professores ocupam cargos de direção ou coordenação de curso? Eu
fiz doutorado na USP e não tem, apenas os quadros históricos, não renova. A
gente não consegue multiplicar essas vozes.
Eduardo Lyra. Quando a gente vai discutir elite, favela, classe média, branco, preto, o que é importante considerar, para início de discussão, é que ninguém tem culpa de onde nasceu, de nascer rico ou pobre. As pessoas simplesmente vêm ao mundo e ganham CEP, RG, sobrenome, cor de pele, conta bancária. A gente precisa ter generosidade quando pensa em relação à favela e também quando pensa em relação à elite. Ninguém escolheu onde nasceu. O que a gente tem que fazer é uma reflexão que é: qual resposta eu vou dar para a minha realidade social, para a cor da minha pele, para o meu sobrenome, para a escola onde estudei, para a minha conta bancária e para as oportunidades que eu tive ou não tive na vida?
Eduardo Lyra. Quando a gente vai discutir elite, favela, classe média, branco, preto, o que é importante considerar, para início de discussão, é que ninguém tem culpa de onde nasceu, de nascer rico ou pobre. As pessoas simplesmente vêm ao mundo e ganham CEP, RG, sobrenome, cor de pele, conta bancária. A gente precisa ter generosidade quando pensa em relação à favela e também quando pensa em relação à elite. Ninguém escolheu onde nasceu. O que a gente tem que fazer é uma reflexão que é: qual resposta eu vou dar para a minha realidade social, para a cor da minha pele, para o meu sobrenome, para a escola onde estudei, para a minha conta bancária e para as oportunidades que eu tive ou não tive na vida?
Tábata Amaral de Pontes. Uma coisa que escutei em uma
conferência da fundação Obama, em Chicago, e que achei muito bacana é que se
algo não é sua culpa, não significa que não é de sua responsabilidade. Quando a
gente olha pros filhos da elite brasileira, não é culpa deles que, por causa da
condição financeira dos pais, tenham saído tantos quilômetros à frente da linha
de partida e estejam em uma condição privilegiada. Mas é responsabilidade
dessas pessoas, já que tiveram tantas oportunidades, e aí eu me incluo porque
tive muitas oportunidades, usar como instrumento tudo que recebeu para lutar
por um país inclusivo, justo, desenvolvido e ético.
Sidarta Ribeiro. As pessoas hoje não têm constrangimento em
ganhar mais dinheiro enquanto tem gente morrendo de fome. Juízes que não têm
constrangimento em ganhar acima do teto constitucional. O mais incrível é que
não tem empatia, não está nem aí se o outro está sofrendo e não percebe que, em
um país que não cuida das suas crianças, vai se agravar o conflito social. Em
vez de darmos alguma chance de equalização de oportunidades, melhorando as
escolas, não, a gente faz muros altos, mais polícia, mais segurança, mais
repressão. É uma corrida armamentista. É triste. A gente precisa sair disso,
precisamos de uma elite que diga: “Depende de nós mudar isso, nós temos os
meios, vamos parar de explorar o povo e investir no povo”.
Eduardo Lyra. A questão pra mim não é se a pessoa é de elite
ou de favela, é o que ela decide fazer com a vida dela. Com as oportunidades
que ela teve ou não teve. Essa é a resposta. Agora, se parte considerável da
elite não está dando a resposta certa, isso é um problema pro país. Os ricos da
nossa geração e os grandes herdeiros precisam dar uma resposta à altura do
desafio do seu tempo. Por que essa resposta às vezes não é dada? O grande
problema é de consciência e de como ela é formada.
A gente vive em uma sociedade dividida por muros que colocam
brancos de um lado e negros de outro, ricos de um lado e pobres de outro,
direita de um lado e esquerda de outro. Eles são divididos e decidem conversar
com quem é igual e tem as mesmas opiniões.
Teresa Bracher. Eu acho que a gente [a elite] tem que ter
esse compromisso, sim, o país é nosso e as oportunidades têm que existir para
todo mundo. A desigualdade social é uma violência tremenda e a gente tem que
trabalhar para mudar isso. Afeta todo mundo. É muito empobrecedor, é violento,
não conectar com as pessoas que não têm o tanto de dinheiro que você tem. As
pessoas que têm outra condição de vida você não conhece, não tem contato, não
sabe de nada. Por quê?
Camila Pitanga, atriz. Estamos falando de uma elite que só
vive o seu feudo, o seu espaço protegido. Carece de conhecer outra realidade
que não a sua, de sensibilizar o seu olhar para o outro, para fora. Melhorar a
educação brasileira necessita de um compromisso de Estado e da elite, sem
dúvida. A questão é como sensibilizar essa elite a pensar no coletivo, a sair do
seu conforto, a sair da esfera individualista e competitiva e abrir mão de
privilégios? Não tenho essa resposta.
Marcio Black. Eu nasci na favela, consegui superar todas as
barreiras que foram colocadas para mim, tanto sociais como raciais. Eu poderia
estar confortável no meu lugar, eu tenho minha renda, moro em Perdizes [bairro
de São Paulo], estou nesse lugar da classe média. O que me bota pra me
movimentar todos os dias pra diminuir a desigualdade é que eu acordo
envergonhado com isso. Eu acordo com vergonha disso. E me assusta ver que a
elite, que nasce em condições muito mais privilegiadas, não sinta essa mesma
vergonha e não tenha como meta diminuir essa desigualdade. E se você se colocar
nesse lugar, você vai construir essas pontes pra conversar e chegar nesses
lugares.
Sidarta Ribeiro. A carência da nossa elite é assumir uma responsabilidade em vez de querer continuar a sugar e extrair. Estou falando isso tanto para os empresários que sonegam impostos e têm trabalho escravo, pagam mal os empregados e foram a favor da reforma trabalhista, quanto para quem está no Estado, como juízes que ganham acima do teto porque é legal, mas é imoral. Um Estado no qual as pessoas tiram R$ 100 mil por mês e não querem pagar a aposentadoria de quem ganha mil?
Sidarta Ribeiro. A carência da nossa elite é assumir uma responsabilidade em vez de querer continuar a sugar e extrair. Estou falando isso tanto para os empresários que sonegam impostos e têm trabalho escravo, pagam mal os empregados e foram a favor da reforma trabalhista, quanto para quem está no Estado, como juízes que ganham acima do teto porque é legal, mas é imoral. Um Estado no qual as pessoas tiram R$ 100 mil por mês e não querem pagar a aposentadoria de quem ganha mil?
Neca Setubal. A equidade tem que estar na ponta, eu tenho
que atuar pela igualdade de oportunidades, que é um discurso liberal, de
direita, de esquerda, de todo mundo. Mas fazer isso acontecer de verdade. As
dicotomias de direita e esquerda podem se encontrar na igualdade de
oportunidades de partida. Eu tenho que criar uma maior igualdade das condições
para que eu possa garantir uma maior qualidade de educação para todos. É nessa
questão da política pública, onde o território importa; temos que pensar em
diferentes estratégias, diferentes formas de atuar com conteúdos básicos e
alguns específicos. Eu tenho que ter clareza de olhar um território, as
condições dos valores, as necessidades, quem são aquelas pessoas, para poder
dar o máximo possível para criar igualdade de condições.
Camila Pitanga. Há uma dívida que nasce na aceitação de
sermos uma sociedade escravocrata. Essa naturalização se dá porque não
enfrentamos de verdade o racismo como uma doença viva em nossa sociedade.
Enquanto o branco de classe abastada não se enxergar como parte do problema,
tudo se mantém como está.
Teresa Bracher. Há duas coisas com as quais a elite precisa
se envolver: com a política e com o terceiro setor, a cultura de compromisso
com o público. Doando seu tempo, seu dinheiro, seja para entidades que fazem
trabalhos em saúde, educação, meio ambiente etc., seja na própria atuação
política. Porque o país vai ser construído pelos brasileiros, tanto da elite
econômica, quanto da intelectual. Pessoas que tenham o desejo de contribuir
para o bem comum. Como essas pessoas se afastaram da política, quem a ocupou
foram pessoas que defendem os próprios interesses. O Estado foi capturado por pessoas
que defendem seus interesses individuais ou de grupos. Tanto que você vê a
quantidade de parente que tem lá, é o filho, o neto. Política virou negócio.
Flávio Canto. A minha maneira de fazer política nos últimos
17 anos tem sido no terceiro setor. É frustrante porque às vezes você se sente
enxugando gelo. Um caso fácil de entender é: tenho 1.500 alunos e só 70 deles
têm bolsa de estudos [em escolas privadas]. Então você tem uma limitação muito
grande. Talvez o lugar onde você consiga promover mudanças mais significativas
não seja no terceiro setor. Quando vejo gente decente, estadistas – porque a
gente não tem né, tem só oportunista –, então, quando vejo gente assim entrando
para a política, me dá um conforto de saber que vai ter gente remando junto.
Neca Setubal. Hoje eu sou presidente do conselho do Gife
[Grupo de Institutos Fundações e Empresas], que tem como associados as
fundações familiares e empresariais. Eu pego o censo que saiu ano passado e 80%
das fundações atuam na área de educação.
Teresa Bracher. No Brasil existe uma cultura muito baixa de
doação, tanto de dinheiro, como de tempo. Uma cultura fraca de compromisso com
o público. Isso precisa melhorar muito.
Ana Moser, ex-jogadora de vôlei e presidente do Instituto
Esporte & Educação. A gente é financiado, na maior parte, pelo setor
privado. Quem toma a decisão nessas empresas são representantes da elite. Está
crescendo cada vez mais a consciência das limitações que a gente tem na nossa
sociedade e da responsabilidade de todos para superar essas limitações. Há
alguns anos, era muito mais comum você lidar com projetos de marketing para dar
visibilidade a marcas, produtos, isso tem evoluído. O próprio envolvimento com
o projeto é o marketing social. As métricas das empresas têm mudado bastante,
com o desenvolvimento da noção de responsabilidade social e do reconhecimento
dessa responsabilidade na prática, não só no discurso. As empresas são feitas
de pessoas e eu tenho encontrado cada vez mais lideranças sensíveis a isso.
Flávio Canto. Vejo um movimento interessante, com essa coisa
do “good is the new cool”. A gente está
em um momento de busca por propósito, das empresas, das pessoas.
Marcio Black. A Angela Davis fala que não adianta mais dizer
que não é racista. A grande questão é qual o seu comprometimento com as pautas
antirracistas? O quanto você trabalha pela inclusão dessas pessoas no mercado
de trabalho, no seu espaço de trabalho? Qual é o esforço que você está fazendo
pra romper sua bolha? O cara cresce na zona oeste, não se enxerga como racista,
o corpo negro não o incomoda, mas estudou no Dante, no São Luís, vai pra PUC,
pra USP… Ele pode passar a vida inteira sem conviver numa situação social de
igual para igual com um negro em São Paulo. A gente está falando de um cenário
em que mesmo a mão de obra negra qualificada não consegue lugar no mercado de
trabalho – não estou falando de negro da periferia, que está sendo
alfabetizado, estou falando de classe média, gente bem preparada. E por que não
consegue? Eles querem preservar o lugar. Aí fala que é meritocracia, mas mesmo
quando as pessoas correm e superam todas as barreiras, ainda não conseguem
chegar.
Neca Setubal. Sempre tem o discurso “vou lá na FGV, no
Insper, na USP buscar os estagiários e os trainees”, só que não há negros. As
empresas dizem “não é minha culpa”. Algumas estão buscando o apoio de ONGs, de
algumas agências que focam nisso para que elas possam selecionar outros grupos
sociais que não estavam entrando em seus cargos. É um começo muito incipiente,
mas eu acho que existe uma movimentação por pressão da sociedade, não por
iniciativa das empresas. É uma resposta porque nas redes sociais se cobra,
então, as empresas tentam ampliar.
Marcello Dantas. A elite cultural estava superafastada e
agora parece que está voltando a se mexer a respeito. Pra mim, o lado positivo
dessa crise política é isso: as classes artísticas e intelectuais passaram a
acreditar que precisam fazer parte desse jogo.
Sidarta Ribeiro. As pessoas das ciências humanas estão há
mais tempo engajadas nesse debate político. Já nas ciências biomédicas e
exatas, agora com essa catástrofe do governo Temer com a ciência, está havendo
uma nova politização. Mas se você perguntar para qualquer cientista ou
acadêmico se ele quer se candidatar a alguma coisa, ele provavelmente vai dizer
que não. Isso gera uma alienação. As pessoas ficam em seus escritórios e
laboratórios alheias ao processo.
Neca Setubal. Existem escolas que estão nos primeiros
lugares e que têm uma visão muito mais aberta, mais progressista. Nesses casos,
são escolas que buscam uma visão mais crítica, ter um olhar mais amplo da
sociedade, tanto do próprio conteúdo, quanto das experiências dos alunos.
Então, você vai ver escolas que fazem intercâmbio com alunos de escolas de
periferias, desenvolvem trabalhos juntos. Isso está longe de ser algo que
possamos dizer “ah, é por aí” ou esses alunos são formados e conhecem uma
realidade outra que não o seu próprio umbigo. Mas, é um começo.
Elisa Lucinda. A gente paga um preço altíssimo por não
fundamentar o nosso ensino, nosso estudo, nossa educação formal, na história
real brasileira. Tem dias que são verdadeiros equívocos e vultos históricos que
são verdadeiros equívocos enquanto heróis, mas eles perduram dentro dos
currículos. Ninguém entende direito a Inconfidência Mineira, a Guerra do
Paraguai, não tem a dimensão da nossa escravidão de 400 anos, não tem os
fundamentos dos povos primitivos, indígenas e negros, a gente não tem esses
fundamentos. A dominação branca extremamente pretensiosa achou que podia
prescindir de tais fundamentos e de tais culturas, e isso reflete na nossa
educação.
Ana Júlia Ribeiro. A preocupação que uma educação
emancipadora deveria ter vai muito além de ensinar só a decorar uma fórmula de
química, matemática e física. É você conseguir ver além daquilo. É quando você
tá andando pela rua e consegue ligar o que vê com o que aprendeu na escola, é
esse tipo de ensino que a gente procura. Mais do que isso. Um ensino em que
nós, estudantes, possamos questionar, discutir, sem sermos desmoralizados
porque temos 17 anos. Um ensino que emancipe a gente e nos torne cidadãos, não
robôs.
Créditos
Ilustrações: Vitória Bas
Texto e imagens reproduzidos do site: revistatrip.uol.com.br
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