Publicado originalmente no site Resenhando, em janeiro de 2015
Análise da letra musical de "Alegria, Alegria", de
Caetano Veloso
Por: Mary Ellen Farias dos Santos*
Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro,
Eu vou.
O sol se reparte em crimes
Espaço naves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas,
Eu vou.
Em caras de presidente,
Em grandes beijos de amor,
Em dentes, pernas, bandeiras,
Bomba e Brigitte Bardot.
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça.
Quem lê tanta notícia?
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos.
Eu vou
Por que não? E por que não?
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento
Eu vou.
Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
Uma canção me consola
Eu vou.
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone,
No coração do Brasil.
Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo amor.
Eu vou
Por que não? E por que não?
Memória discursiva: A música Alegria, Alegria, de autoria de
Caetano Veloso, sobre liberdade, é um dos marcos iniciais do movimento
tropicalista da década de 1960. Datada de 1967, Alegria, Alegria, a canção
modernista foi apresentada no Festival da Record em disputa pelo “Berimbau de
Ouro”.
Embora seja intitulada de Alegria, Alegria, sua letra nada
tem de alegria, apenas reflete a repressão do período militar no Brasil, ou
melhor, os “anos de chumbo”. De tão potente, a música de Caetano Veloso está
incorporada na mente e na história do povo brasileiro, pois a marcha leve e
alegre, com letra caleidoscópica e libertária, tem força nas palavras que a
compõem.
Entretanto, ao apresentá-la ao público, Caetano Veloso
recebeu vaias (até porque fez a apresentação com os argentinos, Beat Boys). A
gritaria foi tão infernal que nacionalistas o chamaram de traidor e
oportunista. O talento e a performao nce de Caetano Veloso, aos poucos, ganhou
o público e transformou as vaias em aplausos, mas ficou somente com o quarto
lugar do festival.
Alegria, alegria é uma obra famosa e muito lembrada, é, pelo
menos a mais emblemática do período militar do Brasil. Por esta e outras
canções revolucionárias que usaram da metáfora para burlar o regime militar,
Caetano Veloso foi o grande divulgador deste período de grande revolução
popular e de tanta inquietação cultural.
Estrutura do texto: Em sua estrutura textual, Alegria,
Alegria é simples, principalmente se comparada a outras de Caetano Veloso,
utiliza basicamente elementos do Modernismo Brasileiro, da contra-cultura, da
ironia, rebeldia, anarquismo e humor ou terror anárquico. Para salientar que a
cultura importada era alienante, Caetano usa palavras como Brigitte Bardot,
Cardinales (Claudia Cardinale) e
Coca-Cola (maior símbolo do império norte-americano que financiava os exércitos
em toda a América Latina).
Pelo fato de ser uma canção escrita no período tropicalista,
Alegria, Alegria tem nas entrelinhas uma crítica à esquerda intelectualizada, a
negação a qualquer forma de censura, uma denúncia da sedução dos meios de
comunicação de massa e um retrato direto da realidade urbana e industrial.
De acordo com o poeta, ensaísta, professor e tradutor
brasileiro Décio Pignatari, a letra possui uma estrutura cinematográfica,
trata-se de uma "letra-câmera-na-mão", citando o mote do Cinema Novo.
Nesta canção há intertextualidade com a canção Para não dizer que não falei das
flores e com uma pequena citação (modificada) do livro As Palavras, de
Jean-Paul Sartre: "nada nos bolsos e nada nas mãos", que ficou,
"nada no bolso ou nas mãos".
Marcadores da narrativa e da oralidade: A presença de muitas
vírgulas na canção segue o ritmo da marcha, ou seja, há uma ebulição de ideias
e ações acontecendo concomitantemente, por tanto não há abertura para pontos
finais (que fecham estas ideias), mas apenas para as vírgulas. As vírgulas
passam a ideia de aglutinação, como se representassem a pólvora, tão presente
nas ruas neste período.
Inicialmente, o verbo caminhar está no gerúndio, o que
transmite a ideia de que este caminhar é contínuo e que nada será capaz de
interrompê-lo, mesmo que lhe falte uma identidade e as impunidades dos crimes
brasileiros permaneçam. Logo, o verbo está no presente: (eu) vou, (me) enche,
(ela) pensa.
Da instância lexical: Os versos “Caminhando contra o vento”
e “em Cardinales bonitas” têm o valor semântico da expressão popular “nadando
contra a corrente”, com o significado de ser e manter-se contra. Ao considerar
o período, este se refere ao lutar contra a Ditadura Militar.
Eixo paradigmático da canção: A luta pelos ideais ganham
mais força ao colocar cada ação na primeira pessoa do singular: EU, estando
este oculto, como em “Caminhando contra o vento”, ou quando este sujeito é
simples, como nos últimos versos das estrofes: “Eu vou”. No contexto do momento
histórico vivido pelo autor na época do Regime Militar, a expressão “caminhando
contra o vento” vem reforçar a idéia central do texto: ser do contra, lutar
contra as forças armadas pelo regime ditatorial, promover a união da população
contra o governo imposto de forma indireta e arbitrária. Idéia corroborada pelo
descumprimento das regras gramaticais da língua padrão, como no exemplo: “Me
enche de alegria...”, em que a frase é iniciada pelo pronome oblíquo ME.
Métrica: Tomando como exemplo a primeira estrofe, é possível
escandi-los e dar nomes aos metros da seguinte forma:
Ca/mi/nhan/do /con/tra o /ven/to - Verso Heptassílabo ou
Redondilha Maior
Sem /len/ço e /sem /do/cu/men/to - Verso Heptassílabo ou
Redondilha Maior
No /sol /de /qua/se /de/zem/bro, - Verso Heptassílabo ou
Redondilha Maior
Eu /vou. – Verso Dissílabo
Metáforas: Toda a opressão sofrida pelo cidadão comum, nas
ruas, nos meios de comunicação, em sua cultura nativa, no seu próprio país é
relatada na letra desta canção. Desta forma, Alegria, Alegria, denuncia os
exageros dos militares, porém utilizando-se de metáforas. “Caminhando contra o
vento/sem lenço e sem documento” que se refere à violência praticada pelo
regime. Ao dizer “sem livros e sem fuzil,/ sem fome, sem telefone, no coração
do Brasil” revela a precariedade na educação brasileira proporcionada pela
ditadura que queria pessoas alienadas, e complementa: “O sol nas bancas de
revista /me enche de alegria e preguiça/quem lê tanta notícia?”.
Para evidenciar a alienação da massa, na letra há elementos
externos à cultura nacional, como alguns símbolos impostos pelo cinema
norte-americano da época, que são: Cardinales, Brigitte Bardot e a Coca-Cola,
fortes representantes da imposição comercial da mídia na época.
Ao denunciar os desníveis sociais dos “anos de chumbo”,
Caetano Veloso faz comparações metafóricas, com o intuito de destacar os
contrastes regionais, sociais ou econômicos, o que fica evidente nos seguintes
versos: “Eu tomo uma coca-cola,/Ela pensa em casamento”, “Em caras de
presidente/em grandes beijos de amor/em dentes, pernas, bandeiras, bomba e
Brigitte Bardot.”
Jogo das pressuposições: Alegria, Alegria, canção que ajudou
a criar o estilo musical MPB, escrita, musicada e interpretada pelo cantor e
compositor Caetano Veloso (em novembro de 1967) transformou a expressão
artística musical brasileira em crítica social. Por esse motivo, Caetano Veloso
teve grande parte de suas músicas censuradas pelo regime militar, sendo que
algumas foram até banidas. Em 27 de dezembro de 1968, tanto Caetano Veloso
quanto Gilberto Gil foram para a cadeia, acusados de terem desrespeitado o hino
nacional e a bandeira brasileira. Os dois foram levados para o quartel do
Exército de Marechal Deodoro, no Rio, e tiveram suas cabeças raspadas.
Entretanto, ambos ficaram exilados em Londres até 1972.
É possível notar também que Alegria, Alegria faz
intertextualidade com Para não dizer que não falei das flores, do cantor
Geraldo Vandré. Ambas as músicas suscitam em sua letra os sentimentos daqueles
tinham conhecimento (não eram alienados) do que de fato acontecia no Brasil e,
assim convocam os brasileiros engajados a ir às ruas e lutar contra a ditadura
vigente.
Ao convocar a todos para esta luta, fica evidente a crítica
à alienação, pois o verso “Ela pensa em casamento” aparece duas vezes na
canção, ou seja, evidencia que enquanto algumas brasileiros lutavam para dar
fim à repressão militar outros estavam completamente desinformados e sob o
domínio do governo.
Rima: Alegria, alegria é uma canção poética, considerando,
inclusive, o título. A marcha compassada denuncia a presença do som do “O”
precedido da letra “T” e “R”, ao mesmo tempo em que dá o ritmo a cada verso,
também reflete a dureza da época e o disparar das armas, que pode ser notado na
terminação dos três primeiros versos, da primeira estrofe, além da presença do
fonema “K”: “Caminhando contra o vento/ Sem lenço e sem documento / No sol de
quase dezembro”.
As figuras de som predominam, pois o ritmo é constante,
quebrado por palavras e/ou expressões como “eu vou”, no final de cada estrofe.
A aliteração pode ser notada na repetição de sons consonantais (consonância)
quanto de sons vocálicos (assonâncias), como nos versos: “Entre fotos e nomes,
sem livros e sem fuzil, sem fone, sem telefone, no coração do Brasil.”:
repetição do som do fonema “F”. Nos versos “Caminhando contra o vento, sem
lenço sem documento, no sol de quase dezembro”, percebe-se a presença do fonema
/k/. Também nos versos “entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone,
sem telefone, no coração do Brasil”, percebe-se a presença dos sons vocálicos
de /em/. O que se repete também nos versos “sem lenço sem documento, no sol de
quase dezembro”.
Conclusão do ponto de vista estilístico: Alegria, Alegria é
uma canção que pode ser definida como um poema. Sua história acontece no
presente, sendo que o eu – lírico “desenha” a história por meio do pronome EU,
1ª pessoa do singular. No entanto, não tende ao egocentrismo ou narcisismo,
apenas posiciona-se como um lutador contra a repressão militar.
Para provocar a ideia de uma marcha contra a ditadura utiliza-se
de fonemas duros que remetem ao marchar dos militares (e até dos civis unidos
em direção aos repressores) e fonemas frios que remetem ao som dos tiros e
bombas, itens bastante presentes nas ruas, neste período.
Em contrapartida, há também a denúncia da alienação a partir
de ídolos impostos e fabricados pela mídia “exterior” (Brigitte Bardot,
francesa e Claudia Cardinale, atriz italiana), que infundiam um comportamento
novo.
Texto originalmente escrito em 4 de maio de 2010
*Editora do site cultural www.resenhando.com.
É jornalista,
professora e roteirista. Twitter: @maryellenfsm
Texto, vídeo e imagem reproduzidos dos sites: YouTube.com e resenhando.com
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