Texto publicado originalmente no site Ihuonline Unisinos, em 18 de dezembro de 2017.
A fome de literatura de Carolina Maria de Jesus
Ricardo Machado
Jeferson Tenório analisa a trajetória da escritora e
intelectual negra que ultrapassou os limites da literatura
Mais do que uma escritora, Carolina Maria de Jesus foi uma
das mais importantes intelectuais negras da história recente do Brasil. Seu
livro Quarto de despejo (São Paulo: Editora Veneta, 2016) vendeu mais de 100
mil cópias ainda na década de 1960, ultrapassando escritores mais conhecidos
midiaticamente, como Clarice Lispector e Jorge Amado. Foi o jornalista Audálio
Dantas que “descobriu” Carolina de Jesus e foi o responsável pela publicação de
seu célebre livro, mas nem por isso está imune a contradições. “O marketing
utilizado pelo jornalista pode ter ajudado Carolina a ser celebrada do modo
como foi. Por outro lado, a imagem da intelectual negra foi solapada. As
interferências, os cortes e a seleção de trechos feitos em Quarto de despejo
contribuíram fortemente para que Carolina fosse tratada como um ser exótico”,
pondera Jeferson Tenório em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
“A fome é certamente uma personagem na obra de Carolina, uma
fome amarela, como ela mesma definiu. Mas é uma leitura superficial acharmos
que Carolina tinha fome apenas de comida. Carolina tinha uma fome existencial,
refletia sobre a vida, sobre o suicídio, sobre comportamentos mediados por uma
linguagem lírica e seca”, destaca Jeferson. “Não se sai impune da obra de
Carolina. Somos sempre afetados pela crueza e lirismo de suas palavras. As
mazelas de Carolina passam a nos habitar. Quarto de despejo somos nós quando a
lemos”, complementa.
Jeferson Tenório nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. Radicado
em Porto Alegre, é mestre em literaturas luso-africanas pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Leciona em escolas de Porto Alegre.
Premiado no concurso Paulo Leminski em 2009, com o conto Cavalos não choram e
no concurso Palco Habitasul, com o conto A beleza e a tristeza, adaptado para o
teatro em 2007 e 2008. É autor do romance O beijo na parede (Porto Alegre:
Sulina, 2013). Vencedor do Prêmio AGES (Associação Gaúcha de Escritores),
eleito o livro do ano de 2014. Tem textos traduzidos para o inglês e o
espanhol. Atualmente trabalha na finalização do romance “Estela sem Deus”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quem foi Carolina Maria de Jesus?
Jeferson Tenório – Difícil responder essa pergunta. Carolina
é inclassificável. Quanto mais leio a seu respeito, menos certezas tenho de sua
personalidade. É o que consigo dizer sobre quem foi ela. Carolina carregou um
universo dentro si, portanto é difícil resumi-la numa catadora de papel que
decidiu gastar a vida escrevendo. Ela não é só uma semianalfabeta esfomeada.
Carolina tinha fome de literatura.
IHU On-Line – Como o texto de uma mulher, negra e pobre
conseguiu ter o alcance que teve e ser traduzido para tantos idiomas? Como isso
se tornou possível em um país com tantas marcas escravocratas?
Jeferson Tenório – Carolina Maria de Jesus é sem dúvida um
marco na história da literatura contemporânea brasileira. Para tanto, não se
pode desvincular o contexto social, econômico e político da época de sua
produção. Estamos no período de JK , o presidente “Bossa nova” e desenvolvimentista.
São Paulo inicia seu processo de “higienização” em busca do progresso, ou seja,
começa a remoção dos pobres das áreas centrais. Um desses espaços foi o que é
hoje o parque do Ibirapuera. Para ter uma ideia, foram desalojadas cerca de 200
famílias em questão de meses. Muitas dessas pessoas foram “despejadas” na
recém-formada favela do Canindé, local onde Carolina Maria de Jesus já residia
com seus filhos. O livro mais conhecido dela, Quarto de despejo, foi tido, na
época, como um retrato fiel da favela, isto é, não foi considerado literatura
propriamente dita.
O jornalista Audálio Dantas foi crucial para que Carolina
fosse vista não como uma escritora literária, mas como uma escritora que
denunciou a miséria da favela. O marketing utilizado pelo Jornalista pode ter
ajudado Carolina a ser celebrada do modo como foi. Por outro lado, a imagem da
intelectual negra foi solapada. As interferências, os cortes e a seleção de
trechos feitos em Quarto de despejo contribuíram fortemente para que Carolina
fosse tratada como um ser exótico. Todo o material que Carolina produziu em
seus cadernos está dividido entre o Museu Afro Brasil - MAB, em São Paulo, a
Biblioteca Nacional - FBN e o Instituto Moreira Salles - IMS, no Rio de
Janeiro; o Arquivo Público Municipal Cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo
Brunswick - APMS, em Sacramento; e o Acervo de Escritores Mineiros - AEM, em
Belo Horizonte, em Minas Gerais. Nesses materiais que não estão em Quarto de
despejo é possível notar uma outra Carolina: leitora de Sócrates, leitora de
poetas do modernismo, irônica, sarcástica, lírica e mais filosófica, além de
preciosismos quanto ao uso sofisticado do vocabulário.
Agora, é curioso como as pessoas aqui no Brasil se
surpreendem com o fato de uma escritora como Carolina ter surgido. Ora, num
país em que mais da metade da população é composta por negros, é de se esperar
que em algum momento surjam literaturas como a de Carolina, pelo menos essa é a
lógica de quem olha de fora e talvez por isso a obra de Carolina seja tão
estudada no exterior. No entanto, o Brasil sempre foi um país racista e que
procurou de todas as formas embranquecer-se, e isso, de certo modo, produz esse
espanto todo diante de uma figura como Carolina.
IHU On-Line –Como ela foi capaz de traduzir a própria vida em
literatura?
Jeferson Tenório – Carolina tem uma veia machadiana no
sentido de ser uma grande observadora da sociedade. A perspicácia dela se
traduz numa narrativa atípica dentro da nossa literatura. Pois veja bem, não é
fácil lidar como uma obra em que a autora é também a narradora e a personagem.
Carolina é uma pedra no meio do caminho da crítica, ela está dentro da tradição
literária porque foi leitora dessa mesma tradição (Castro Alves , Casimiro de
Abreu , Olavo Bilac ), mas parece estar fora do cânone quando pensamos em
reconhecimento estético. Além disso, às vezes, a academia não sabe lidar muito
bem com uma escritora que se utiliza de material histórico, autobiográfico e
ficcional ao mesmo tempo.
IHU On-Line – Que Brasil é revelado e construído pelo olhar
de Carolina de Jesus?
Jeferson Tenório – Olha, eu acho que não há uma revelação da
realidade na obra de Carolina, porque seu livro não é um relato etnográfico.
Não é um relato fiel da favela. Carolina inventa um lugar porque a realidade é
dura demais, entende? O que Carolina faz é literatura e a literatura não tem
compromisso com a realidade em si. Agora, é óbvio que a perspectiva de uma
mulher negra e pobre recriando um espaço como o da favela é muito mais
poderoso. A ótica de Carolina é peculiar e isso a torna uma narrativa singular.
Não estou dizendo com isso que as coisas que estão no diário de Carolina são
mera invenção, é claro que ela passava fome, é claro que passava dificuldades,
mas não foi relato meramente realístico que torna seu texto consistente e belo,
mas a sua elaboração estética e ficcional da realidade.
IHU On-Line – Como a fome urbana e negra está manifesta nos
escritos de Carolina de Jesus?
Jeferson Tenório – Essa é uma questão que sempre aparece
quando lemos Quarto de despejo. Volto a lembrar que a seleção do texto foi
organizada pelo jornalista Audálio, e como se pode perceber, houve uma
intencionalidade em selecionar muitos trechos em que Carolina falava da fome. A
fome é certamente uma personagem na obra de Carolina, uma fome amarela, como
ela mesma definiu. Mas é uma leitura superficial acharmos que Carolina tinha
fome apenas de comida. Carolina tinha uma fome existencial, refletia sobre a
vida, sobre o suicídio, sobre comportamentos mediados por uma linguagem lírica
e seca.
IHU On-Line – O que caracteriza a indisciplina de Carolina
de Jesus? Como essa indisciplina permitiu que ela se libertasse dos grilhões de
seu próprio tempo?
Jeferson Tenório – Eu acho que foi justamente esse ímpeto de
Carolina em acreditar que a escrita iria salvá-la da miséria, o que de fato
aconteceu, pois em questão de meses Carolina vendeu mais livros que Clarice
Lispector e Jorge Amado . Carolina não se sentia intimidada com o sucesso, nem
em frequentar as altas rodas da sociedade. Não era uma negra acanhada e
deslocada como sugeriu o escritor Benjamin Moser recentemente ao se referir a
uma foto de Carolina com a Clarice Lispector. Por outro lado, Carolina era indisciplinada
porque se recusava a fazer parte de um quarto de despejo. Ela queria construir
um lugar ficcional para suportar a vida. E construiu.
IHU On-Line – Qual a qualidade literária do texto de
Carolina de Jesus? O que a tornou uma das protagonistas da literatura nacional?
Jeferson Tenório – Olha, esse critério de qualidade é o que
tem causado mais discussão em torno do livro de Carolina. Muitos não reconhecem
valor estético em sua obra. Essa postura me parece um misto de preconceito e
preguiça intelectual. Veja bem, acho muito complicado você utilizar as mesmas
teorias eurocêntricas para avaliar o texto de Carolina. Um exemplo: acho
improdutivo avaliarmos o narrador de Quarto de Despejo na perspectiva de
teóricos como Walter Benjamin , pois a ideia de experiência e pobreza dos
soldados da Primeira Guerra, em Benjamim, é diferente em Quarto de despejo. As
coisas não fecham, entende?
Poderia apontar inúmeros aspectos para comprovar sua
qualidade, mas o que me parece mais evidente é a sua capacidade de transfigurar
a realidade em lirismo, de transformar a fome física em fome metafísica. Além é
claro, de toda a preocupação com a construção frasal e com o preciosismo
vocabular.
IHU On-Line – Apesar da pouca instrução formal de Carolina
de Jesus, ela demonstrava uma boa perspicácia ao perceber os mecanismos do
preconceito. Como ela construiu sua própria noção de negritude e como era o seu
entendimento sobre o racismo no Brasil?
Jeferson Tenório – Quando Carolina começou a escrever na
década de 1950 sabia-se pouco do movimento da negritude, iniciado em 1935 pelo
poeta martinicano Aimé Césaire . Essa falta de organização política em torno da
consciência de raça não impediu que Carolina conseguisse perceber o racismo a
sua volta. Talvez porque na condição de mulher negra, o racismo se mostrasse
mais evidente e violento. E o fato de ela ser sensível à subjetividade fez com
que ela ganhasse essa noção com mais rapidez. Em pouco tempo, Carolina
compreendeu que a sua cor e o seu gênero chegavam primeiro nas pessoas que a
sua imaginação literária. Foi uma consciência permanentemente acossada pela
fome e pela violência cotidiana.
IHU On-Line – Qual o significado de obras de Carolina de
Jesus tornarem-se leitura obrigatória de vestibulares de universidades
federais?
Jeferson Tenório – Em primeiro lugar creio que a escolha de
Carolina para fazer parte da lista de leituras obrigatórias de universidades
federais não tenha sido fácil. O jogo de poder nas academias dificulta a
entrada de obras como as de Carolina, justamente porque as universidades ainda
possuem uma visão conservadora e elitista da literatura. No entanto, creio que
as universidades, o contexto e todas as instâncias que movem os vestibulares
saem ganhando com isso. Quarto de despejo não é só uma leitura obrigatória, é
uma experiência estética, filosófica e social. Não se sai impune da obra de
Carolina. Somos sempre afetados pela crueza e lirismo de suas palavras. As
mazelas de Carolina passam a nos habitar. Quarto de despejo somos nós quando a
lemos.
IHU On-Line – Como o protagonismo de Carolina de Jesus e sua
produção contribuem para entendermos as contradições do Brasil atual?
Jeferson Tenório – Num primeiro momento, Carolina foi vista
como uma autora que representava uma coletividade, uma espécie de porta-voz dos
pobres e excluídos da favela do Canindé, mas quando nos aprofundamos na
leitura, nos damos conta de que Carolina não produziu uma obra para revelar as
contradições sociais. No fundo, Carolina não escreve para denunciar a miséria e
a fome. Carolina escreve um livro para se salvar. Se há alguma intenção em
representar algo, me parece que é a representação de si mesma. Agora, podemos,
a partir desse ponto de vista muito particular, vislumbrar alguns aspectos
sociais engendrados aí. É possível compreender melhor os caminhos do
preconceito e da desigualdade no Brasil, pois a visão mediada pela literatura
produz pontos de vista que não poderiam ser alcançados por outra área do
conhecimento humano. E essa me parece ser a grande contribuição de Carolina
para entender o Brasil e suas contradições. ■
Texto reproduzido do site: ihuonline.unisinos.br
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