Entrevista: Thina Rodrigues foi perseguida na ditadura por
ser travesti; hoje capacita policiais.
Por Neto Lucon
Thina Rodrigues sabe na pele o que é viver num país marcado
pela transfobia. São 56 anos de muita luta, resistência e militância. Chegou a
vivenciar a travestilidade na ditadura militar, ser presa e brigar para que a
cidadania plena fosse assegurada em Fortaleza, Ceará.
É testemunha viva das mudanças políticas, organização da
militância e as nuances da transfobia. Para ela, depois de o grupo começar a
conquistar respeito em 2000, o preconceito veio forte por meio dos
conservadores e fundamentalistas nos últimos dois anos.
Presidenta da Associação de Travestis do Ceará - ATRAC - que
foi fundada pela advogada travesti Janaina Dutra (1961-2004) - Thina também
observa algumas transformações que motivam a seguir na militância. Se nos anos
80 foi perseguida por policiais por transfobia, hoje ela é convidada para um
curso sobre direitos humanos LGBT no Ceará.
"Os novos policiais não sabem o que passamos, então
temos que dizer que direitos humanos não é só para marginal, como dizem, mas
para toda pessoa humana", afirma ela, acreditando nas novas gerações. Em
conversa com o NLUCON, ela falou sobre a violência transfóbica, os casos
envolvendo Dandara dos Santos e Erika Isodoro neste ano, histórias e
perspectivas. Confira:
- Ontem ocorreu um curso para capacitação de policiais
militares do Ceará sobre os direitos humanos da população LGBT. Como foi sua participação?
É a segunda vez que participo da capacitação ao lado de uma
equipe, pois aqui em Fortaleza há uma lei que aprimora a academia de polícia
com curso sobre direitos humanos. Falei sobre a abordagem policial, a
importância do respeito à identidade de gênero. Como aqueles policiais são
novos, eles não sabem o que passamos. Falei um pouco sobre minha vida como
sobrevivente da ditadura. Falei que muitas de nós éramos presas só por sermos
travestis, que precisávamos nos cortar para sermos ouvidas e que muitas eram
assassinadas e os casos subnotificados como "homem vestido de
mulher". Expliquei que o motivo da travesti e da transexual não estar na
família, não estar escola e não procurar a saúde é porque as pessoas não nos
respeitam. Expliquei que direitos humanos não é só para marginal, como dizem,
mas para toda a pessoa humana.
- Houve alguma pergunta por parte dos policiais?
Perguntaram se o movimento LGBT estava desrespeitando
símbolos religiosos e enfiando crucifixo no ânus, mencionando um caso. A
Dediane (Souza Coordenadora Executiva da Coordenadoria Especial da Diversidade
Sexual da Prefeitura de Fortaleza) respondeu que nada disso ocorreu na Parada
do Orgulho LGBT de São Paulo. Mas que foi na Marcha da Vadias, que é outro
protesto e que não tem relação com a Parada. Os conservadores inventam essas
histórias, bem como essa questão de 'ideologia de gênero', para que as pessoas
não nos respeitem. Nós amamos a Deus e respeitamos a religião das pessoas. É
importante dizer que esse curso não quer fazer nenhum hétero cis ser amigo de
LGBT ou que sejam LGBT. O que a gente quer é respeito. É dizer que a travesti
não pode ser presa ou sofrer violência por ser travesti, negra... Que não batam
na abordagem. Que quando um homem trans for abordado que ele seja respeitado em
sua identidade de gênero masculina. E que uma travesti ou mulher transexual
sejam respeitadas na feminina.
- Ainda hoje ocorre a violência policial contra a população
trans e travesti?
O maior relato de hoje em dia é das travestis que trabalham
com programa. Elas dizem que ainda há muito abuso de poder e extorsão. Os policiais
se aproximam do carro do cliente, abordam o cliente e, sabendo que eles tem
receio de serem vistos com uma travesti, obrigam eles a pagarem alguma coisa.
Às vezes tomam celular das meninas e dizem que elas roubaram. Às vezes combinam
com ela sobre essa abordagem ao cliente e dá algum dinheirinho para ela. Por eu
ser negra, por exemplo, eles jogam todas as minhas coisas no chão na abordagem.
Já quando a menina é branca o contato é diferente: ele pede até o whatsapp
dela, entende? Mas não tem como a gente gravar, pegar em flagrante, pois elas
não vão fazer o B.O. A gente tem medo do dia seguinte, né?
- Você tem medo, Thina?
Desde a morte da Dandara, da Érika, da Natalia, eu vou aos
programas de rádio, por exemplo, e fico com medo. Porque alguém pode me ver e
me ferir. A violência tá tão grande em Fortaleza que a gente teme qualquer
coisa. Quase todo dia morre uma. Mataram uma de 15 anos faz duas semanas e a
família não quis que ninguém soubesse. Foi um ato transfóbico. Ela tinha só
tinha 15 anos e a gente fica, assim, sem saber como mover, de ser vítima de
alguma facção.
- No Ceará, houve algum tipo de mudança após o assassinato
da Dandara dos Santos e a repercussão internacional?
A gente pensava que ia parar, mas pelo contrário, depois que
do assassinato da Dandara e da Erika, aumentou a transfobia. Não há
investigação completa e não há quem se sensibilize. Quando falam que o caso é
envolvendo uma travesti, eles engavetam. O caso da Dandara, mesmo, teve
repercussão, alguns foram presos, mas três continuam fugitivos. Por que
deixaram pra lá? E se fosse 10 pessoas que tivessem matado um delegado, eles já
estariam presos? O caso da Érika, que foi jogada debaixo de um viaduto, depois
de ser agredida por 10, ninguém sabe quem foi? É incrível, foi um crime
perfeito. Então, falta querer. Fora os casos em que a família do assassino
coloca um advogado particular e passa a alegar que foi legítima defesa? No caso
da Dandara tentaram dizer que foi legítima defesa. Mas 10 contra uma é legítima
defesa? Depois daquele vídeo eles ainda dizem que é legítima defesa? Quando uma
travesti está na porta de um motel e o cara dá três tiros em cima de uma moto é
legítima defesa? Isso é um verdadeiro ato de transfobia.
- Como foi enfrentar o período de Ditadura?
Na época da Ditadura, a gente não tinha direito a nada, era
pior, ia presa de graça. A gente não podia andar em bares, era caçada como
bruxas, muitas delas eram assassinadas. Muitas iam presas e não voltavam. Teve
uma vez que fui presa e tinha 25 no camburão, todas apertadas. Quando chegou na
cadeia, colocava a gente com mais de 50 homens sem sentir pena. A mais feminina
era algemada fora da cela e a menina sumia. Depois, tiravam mais duas ou três e
colocavam para lavar banheiro. E no outro dia ninguém as encontrava mais. Na
Praça do Ferreira, tinha um grupo de travestis que circulava com violência,
virava o carro de polícia, se cortava. Mas eu via que era uma reação, porque
não queriam ser presas, caladas ou assassinadas de graça.
- Thina, como foi para você dizer que é travesti neste
período?
Eu vim do interior quando tinha 17 anos. Assumi travesti aos
22 anos. Minha vó e meus irmãos vieram moram comigo e a aceitação foi a melhor
possível. Nunca tiveram nenhum tipo de discriminação. O problema foi com a
minha mãe, quando veio me ver. Ela não aceitava, não aceitava, não aceita e
terminou me aceitando quase nos últimos dias de vida. Graças a Deus o mundo
está mudando e algumas meninas estão sendo aceitas dentro de casa. O que
acontece muito é que as mães não querem que elas vão para rua, que elas vão
estudar.
Qual é a avaliação que você faz da transfobia ao longo dos
anos?
Quando eu comecei, a gente não percebia que era travesti. A
gente era vista como "homem que vestia roupa de mulher". Mas eu não
tinha medo, eu enfrentava. Eu ia ao centro da cidade, mesmo sofrendo
discriminação. Em 1988, eu fiz uma denúncia contra a polícia militar e ficaram
me caçando. Fiquei três meses escondida. Eles ficavam com minha foto e ficavam
me procurando. Eu senti que seria assassinada. Tanto que quando fui levada para
a delegacia, eu achava que não voltaria. Para a sociedade, a gente era a pederastia
que veio para a acabar com a família. Mas não era a família que era contra a
gente. Era a polícia e o homem casado que ficava com a travesti e depois se
arrependia. Nos anos 2000, começou a militância forte e a sociedade começou a
nos respeitar, a nos ver com outro olhar. De 2015 pra cá piorou a transfobia.
Até então a gente só falava "homofobia", mas quando começamos a
dividir as opressões, a falar de lesbofobia, de transfobia, é que aumentaram os
casos. Não pelo termo, mas porque as igrejas fundamentalistas e os políticos
conservadores começaram a passar mensagem errada sobre kit gay, a se colocar
contra a travesti querer estudar... E esse governo fez aumentar a violência no
Brasil todo, não só no Ceará.
- Quais são as ações da militância diante deste cenário?
Fazemos audiência publica, seminários, visitas às
delegacias, visita aos presídios para ver como está sendo o tratamento com
elas, e abordagem corpo a corpo. Essa abordagem é para evitar que chegue a
violência, estratégias para que elas não acabem nas mãos de bandidos, para
negociar o uso da camisinha, que muitos não querem. Muitas vezes a gente
precisa abaixar a cabeça e não responder a uma provocação na rua, mudar de
calçada, porque muitas vezes ele já está com o objetivo de matá-la. Conseguimos
aqui uma ala para LGBT que são presos e que evita que eles sofram preconceito e
violência na mão de outras pessoas. A gente ainda tem que lutar, apesar de a
Constituição dizer que temos direito de ir e vir, ter direito a moradia,
educação. É por isso que nossa Associação quer a cidadania plena, que ela
consiga emprego, colégio, que faça faculdade... Porque a prostituição não é
crime, mas ela vai passar. A travesti vai ficando velha, os cliente vão
procurar as outras mais novas e ela vai ficar à deriva. E a perspectiva de vida
é de 35 anos. Feliz daquela que passou.
- Ainda que a expectativa seja baixa, a gente começa a ter
uma geração de travestis na terceira idade. Há alguma ação voltada para essa
população?
É muito preocupante para mim. Seria muito útil para gente
ter alguma política pública para a terceira idade das travestis, mas a gente
não tem para nova, como vão pensar para a de (da terceira) idade? É como se a
gente não existisse e não pensasse no amanhã. É preocupante. A gente está vendo
algum curso de empreendedorismo para algumas, mas quando a gente vai ver é
tanta burocracia, tem que ter o nome limpo, tem que pagar IPTU, imposto, que
elas terminam assustadas e não vão mais. Não são cursos que acolhem. Você tem
que acolher primeiro, empoderar, dar um olhar que ela pode seguir esse rumo.
Você ainda vê poucos casos de travestis na rua com mais idade. Algumas se
tornam cabeleireiras, peruqueiras, empregadas domésticas, que cuida da avó, mas
não tem, por exemplo, uma aposentadoria. Só o fato de existirem e sobreviverem
é uma glória.
- Aos 56 anos, como lida com a vaidade?
Não sou vaidosa. Tive um trauma. Arranjei uma namorado há
uns 10 anos e passei os cinco piores anos da minha vida. Ele me batia, pegava
minha cara e esfregava no chão, tenho várias cicatrizes dessa violência. Quando
eu fazia maquiagem, fazia cabelo, ele me descabelava. Quando eu fazia amizade
com alguém ele fazia acabar com essa amizade. É um trauma, mas estou levantando
a minha autoestima de novo agora. Mas isso não quer dizer que não me arrumo
quando vou a algum evento. Eu dou um caldo (risos).
- Com certeza! Tem algo que você gostaria de acrescentar?
Queria que você você falasse da ATRAC, que está com 16 anos
e continua na luta. Ela ocorre desde a nossa finada Janaina Dutra, a Dama de
Ferro, nossa advogada travesti. Não abaixamos a cabeça. Queria falar também que
aqui no Ceará há uma demora muito grande para retificar o nome civil. É a
defensoria pública que faz, e demora até dois anos e muitas vezes não autorizam
mudar o gênero. No interior tinha um juiz que permitia, mas ele foi transferido
e agora as meninas estão suando. Eu pedi há cinco anos e não consegui. Mas no
meu caso, ao contrário das outras travestis, eu não ligo. Quando chego em algum
lugar e me chamam pelo nome masculino é a própria pessoa que fica constrangida.
Texto e imagens reproduzidos do site: nlucon.com
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