quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

O coração selvagem de Belchior em biografia



Publicado originalmente no blog Estante Virtual, em 06.09.2017 

O coração selvagem de Belchior em biografia

Por Thayane Maria 

O compositor de “Como nossos pais” nos deixou, mas segue vivo como ícone nacional.

“Para todos os Belchiores: pelo direito de desaparecer” é isto que se vê escrito em uma faixa de um bloco de Carnaval em Fortaleza, Ceará, segundo Ednardo, parceiro de composição e amigo pessoal de Belchior. O frenesi em volta da figura do cantor teve seu auge no ano de 2013, no qual as principais emissoras do país começaram a noticiar o desaparecimento do compositor, que viveu afastado da vida pública desde 2008.

O cantor alcançou o sucesso artístico e financeiro nos anos 1970, com o lançamento de seu primeiro LP, Alucinação. Os traços firmes de seu rosto, o jeans desbotado, os versos cortantes e até mesmo seu inconfundível bigode já eram grandes conhecidos do público consumidor de música no país. No entanto, a revolução causada pelo músico nos últimos anos de vida o transformou em um ícone – e para alguns uma lenda.

No lançamento de sua biografia Belchior – Apenas um rapaz latino americano, escrita pelo jornalista Jotabê Medeiros, o amigo e parceiro de composição Ednardo e uma das primeiras intérpretes de suas canções, Lucinha, falaram com um público repleto de fãs e admiradores de Belchior. Com alguns dos seus clássicos mais populares tocando ao fundo, o autor começou a falar um pouco sobre o projeto: ” Eu percebi, após 30 anos trabalhando com jornalismo cultural, ao revirar os arquivos e recortes de jornais antigos, que Belchior não foi contemplado pelo jornalismo da época como merecia”, comentou.

Pelo direito de desaparecer

Apesar da importância da obra musical do cantor para a música popular brasileira, a mídia não tinha prestado, até aquele momento, a devida atenção ao artista: “O disco Alucinação foi eleito um dos 100 melhores discos nacionais de todos os tempos, pela revista Rolling Stone. O que me parece é que os jornalistas naquele tempo não tinham o debruçar crítico para acompanhar a grandiosidade da obra dele, que é tão híbrida”, apontou o biógrafo.  A concretização da obra Apenas um rapaz latino americano, para Medeiros, vai muito além de uma realização pessoal: ” É o pagamento de uma dívida histórica para Belchior”, concluiu.

O amigo e parceiro musical do cantor, Ednardo, entreteve o público contando histórias de quando ele e o músico moraram, com mais outros amigos, ao lado de uma construção na capital Paulista – bastante no estilo dos Novos baianos: “Os estudantes e os pedreiros eram os primeiros a ouvir as nossas músicas”, contou o amigo, em tom nostálgico. A vida em comunidade trouxe algumas dificuldades, como alguns problemas respiratórios causados pela poeira da obra ao lado: ” O que para nós, que somos cantores, foi terrível”, lembrou Ednardo – mas também rendeu frutos ao grupo. Em pouco tempo, o cenário musical nacional foi dominado por diversos artistas jovens e cheios de ideias, como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Ednardo, o cantor e compositor Fagner, e claro, Belchior: “Nós dois e Fagner éramos os únicos cearenses da Tropicália “, ressaltou o cantor.

Lembranças à parte, para Ednardo, Belchior viveu para quebrar paradigmas – entre eles, a ideia de que o cantor era apenas um ótimo letrista, mas com recursos musicais limitados: ” Ele era um grande poeta, fazia letras e músicas a palo seco, literalmente. O que ele gostava mesmo era de cantar”, explicou. Outro paradigma era a imagem construída de que o músico tinha uma personalidade árdua: ” Imaginavam ele como uma pessoa muito dura, por conta dos versos cortantes das músicas dele. Mas ele era uma pessoa muito doce e afável”, lembrou o amigo. A intérprete e amiga de longa estrada, a cantora Lucinha, relevou: ” Todas as suas revoltas e raivas ele colocava nas músicas. Por isso ele era uma pessoa tão doce, toda a parte pesada ia para a música. Ele sempre foi muito educado e doce com todos”, completou a cantora.

Ao final da conversa, o autor Jotabê Medeiros conversou conosco sobre as razões que o levaram a assinar a biografia do artista. Segundo ele, além da nítida importância social e artística do cantor para o Brasil – o compositor foi muito censurado por conta de suas letras políticas – o projeto teve um cunho de realização íntima para o jornalista: “Fui convidado para escrever uma biografia, mas recusei. A partir de 2013, na histeria ao redor do sumiço dele, comecei lembrar a importância que o Belchior teve na minha vida, na minha formação. Era o projeto que estava procurando, algo que me tirasse o fôlego “, ressaltou.

Sobre as polêmicas que envolveram o nome do músico nos anos que antecederam à sua morte, Jotabê revelou: “Não tirei conclusões no livro. Belchior é um mistério. Ele entrou no hall dos grandes artistas, muito sensíveis e que simplesmente não suportam mais as convenções sociais, as máscaras, a cara de pau. Ele está junto de outros, como Kurt Cobain e Syd Barrett, que se declaram incapazes de viver dentro das regras sociais”, confessou.

 Para o jornalista, as letras de Belchior são atemporais – e um tanto proféticas. Nos versos de sua canção Todo sujo de batom, de 1974, o músico dizia: “Nesses dez anos passados (presentes) / vividos entre o sono e som”, Belchior, de alguma forma, cantava exatamente o que iria acontecer nos últimos anos de sua vida – o seu isolamento que durou 10 anos, no qual vivia apenas para realizar os seus desejos e as ilusões, expostos tantas vezes em suas composições, que são tão intensas, cruas, revolucionárias e selvagens quanto o seu intérprete.

Texto e imagem reproduzidos do blog.estantevirtual.com.br

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