Publicado originalmente no site Resenhando, em 16/11/2017.
"Foi assim": Wanderléa lança autobiografia
Entre dramas pessoais e sucesso na carreira artística,
Wanderléa revela detalhes de sua vida em autobiografia. “Foi assim” chega às
livrarias em novembro e mostra versatilidade da artista que gravou boleros,
choros, músicas de carnaval e os ‘malditos’ da MPB, além de ter sido estrela de
um dos movimentos culturais mais importantes do Brasil, a Jovem Guarda, ao lado
de Roberto e Erasmo Carlos. Original e pioneira, Wandeca, a eterna Ternurinha,
também influenciou a moda e o comportamento da época
Foi em Lavras, no interior de Minas, que a menina Leinha
começou a fazer seus primeiros shows caseiros, para a família, aos 3 anos de
idade. Ela cantava na varanda de casa e chegou a sair pelas ruas vendendo as
frutas plantadas no quintal para comprar papel crepom e compor o cenário para o
seu “palco”. Não demorou muito para que a vizinhança descobrisse os dotes da
menina e ela foi chamada para cantar num show de caridade da cidade. Logo
depois, foi também convidada a se apresentar num programa infantil da Rádio Difusora
de Lavras. A canção escolhida foi “Caminhemos”, de Herivelto Martins. Aprendeu
essa e outras músicas ouvindo rádio em casa, com a mãe, que também tinha dotes
artísticos, o pai e os seis irmãos. A versatilidade, o talento vocal e o
domínio total do palco seriam as principais marcas da menina de Lavras que
nunca deixou trocarem seu nome de batismo e seguiu como Wanderléa, numa das
carreiras mais bem-sucedidas da MPB. A história toda ela conta agora em sua
autobiografia, “Foi assim”, que chega às livrarias de todo o Brasil em
novembro, pela editora Record.
O livro, cujos rascunhos ela escreveu durante anos e teve
edição e pesquisa do jornalista Renato Vieira, foi uma espécie de terapia para
Wanderléa. Ao mesmo tempo em que conquistou sucesso, independência econômica e
liberdade na carreira, a cantora enfrentou uma série de dramas pessoais. A
perda de uma de suas irmãs, no Rio de Janeiro, por uma bala perdida; o acidente
do então namorado José Renato, filho do apresentador Chacrinha, que o deixou
tetraplégico; a perda do irmão, que era seu estilista e uma espécie de assessor
especial, para a AIDS, nos anos em que também viu vários de seus amigos serem
derrotados pela doença; a morte da mãe, na véspera da morte de Maria Rita,
mulher de Roberto Carlos, seu melhor amigo. Por fim, uma das maiores dores, a
perda de seu filho Leonardo, afogado na piscina de casa, recém-comprada com o
marido Lalo. “Adversidades grandes demais para enfrentar me fizeram viver um
dia de cada vez. Existir, e por tantas vezes resistir, era mais importante do
que guardar coisas na cabeça naturalmente desligada. Acho que agora os cantos
escuros da minha vida, as lembranças perdidas, estão iluminadas de uma forma
que não sei se é a melhor, mas penso ser a mais humana e verdadeira”, escreveu
Wanderléa no prólogo do livro.
As páginas da autobiografia revelam também histórias
saborosas vividas pela cantora, como a amizade com Roberto Carlos, de quem
recebeu o primeiro beijo na boca, e Erasmo Carlos, que tentou diversas vezes
namorá-la, durante o auge da Jovem Guarda, movimento que se desdobrou em
programa de TV, discos, shows e filmes. Mostram ainda as dificuldades que
enfrentou nas gravadoras, sempre avessas a investir em projetos originais e
autorais. Tanto que nos cinco primeiros discos, na CBS, ela gravou basicamente
canções de Roberto e Erasmo e, em sua maioria, versões de músicas estrangeiras,
muitas vezes contra a sua vontade. Foi só em 1972, quando foi para a Polydor e
fez o LP “Maravilhosa”, que tinha Nelson Motta como assistente de direção, que
ela conseguiu gravar nomes como Gilberto Gil, Assis Valente, Jorge Mautner,
Hyldon, Paulinho Tapajós e Roberto Menescal, entre outros. No segundo disco
pela empresa, “Feito gente” (1975), ela gravou Gonzaguinha, João Donato, Joyce
Moreno, Sueli Costa, Luiz Melodia e Hermínio Bello de Carvalho.
Em meio à rotina frenética de shows e gravações, Wanderléa
enfrentava o drama do acidente de José Renato, seu namorado, então com 22 anos.
Numa viagem a uma fazenda em Petrópolis, o filho de Chacrinha resolveu
mergulhar na piscina e se machucou seriamente, ficando tetraplégico. Wanderléa
ficou noiva e casou com ele, com quem manteve uma relação que durou sete anos,
alguns dos quais vivendo nos Estados Unidos, para onde se mudaram em busca de
tratamento. No quesito grandes amores, depois de um namorado que chegou a
brigar com Roberto Carlos, por ciúme do amigo e companheiro de shows de
Wanderléa, ela encontrou Egberto Gismonti, com quem namorou e mantém até hoje
laços de amizade. Com o músico, que escreveu a orelha deste livro, Wanderléa
migrou para a EMI-Odeon e gravou “Vamos que eu já vou” (1977), disco com
arranjos e produção executiva de Gismonti. Na companhia, ela fez ainda “Mais
que a paixão” (1978), com produção de Renato Corrêa e composições de Djavan,
Altay Veloso, Capinan, Moraes Moreira e o próprio Gismonti. Nessa fase da
carreira, Wanderléa disse não ter tido muito apoio da gravadora na divulgação,
mas mostrou que era mais que uma musa da jovem Guarda. Era uma grande cantora,
versátil, inteligente e com total domínio de sua arte.
“Cantei boleros, choros, músicas de carnaval, gravei os tais
‘malditos’ da MPB (benditos sejam!), experimentei sonoridades eletrônicas,
rasguei o verbo na hora da raiva e, em uma nova estação, me reencontrei com
minhas origens. Ao longo de todos esses anos, transgredi, segui as regras da
sociedade, me recolhi e logo em seguida fui em frente”, relembra, em outro
trecho do prólogo. As primeiras transgressões da Ternurinha começaram em casa.
Seu pai, descendente de árabe e com uma educação rígida, a acompanhava no rádio
e na gravadora, mas, em determinado momento, achou que a “brincadeira” estava
indo longe demais. Ele não queria que ela seguisse a carreira artística, mas
Wanderléa logo conseguiu independência financeira e, com ela, a independência
da família. Quando comprou um carro, o pai também não gostou. Dirigir, na
década de 60, não era coisa de mulher. Suas roupas eram um capítulo à parte.
Com o irmão estilista, ela inventava os próprios figurinos, ousadíssimos para a
época. A moda da minissaia ganhou força com ela, para horror da sociedade da
época e delírio das fãs mulheres. Na época do programa Jovem Guarda, foi criada
a grife Ternurinha, com pagamento de royalties e tudo, no que ela considera o
“marco zero do mercado consumidor jovem no Brasil”. “Enquanto a minissaia
criada por Mary Quant ficava a um palmo do joelho, a minha era quatro dedos
abaixo da pélvis”, relembra ela, num dos capítulos do livro.
Wanderléa, assim como Roberto e Erasmo, não gostava de falar
de política. Mas, em termos de comportamento, a sua geração foi uma das mais
transgressoras. Além das roupas e da atitude no palco, na vida pessoal ela
namorava sem culpa, viajava sozinha e chegou a fazer dois abortos, dos quais
fala abertamente. “Apesar das minhas convicções, passar por dois abortos, aos
20 e poucos anos, foi difícil. Não fiquei imune aos conflitos pessoais e
psicológicos, que, admito, se tornaram mais presentes na maturidade. (...) Não
cabe a ninguém discriminar essa atitude. Devemos apoiar e respeitar essa
escolha, pois a própria mulher é a que mais sofre. A legislação deve ampará-las
sem que elas sejam julgadas por esse ato”, escreve.
A maternidade traria
alegrias e tristezas para a vida de Wanderléa. O primeiro filho, com o marido
Lalo, nasceu em 1981. Ela vivia um momento incerto na carreira. Os álbuns mais
autorais não tiveram boas vendas. “Alguns homens de gravadora têm
responsabilidade nisso. Eles ainda queriam a Ternurinha, argumentando que em
time que está ganhando não se mexe, e não bancaram o mínimo necessário de
divulgação pelo simples propósito de boicotar meus novos voos.” Sem o público
da Jovem Guarda e sem o reconhecimento da crítica, ela também teve seu estúdio
roubado, com todos os equipamentos comprados nos Estados Unidos sendo levados
por ladrões. Foi nessa época difícil que conheceu Lalo, músico chileno que
faria um show com ela numa boate em São Paulo. Os dois logo passaram a viver
juntos e veio a gravidez. Ela tinha 35 anos quando Leonardo nasceu.
Quando o menino estava prestes a completar 2 anos, ela e
Lalo decidiram comprar uma casa na Zona Oeste de São Paulo, para dar a Leo uma
infância mais próxima à natureza. No dia 1º de fevereiro de 1984, Wanderléa
tinha uma gravação no programa de Flávio Cavalcanti, no SBT, para divulgar seu
mais recente compacto. Antes de sair, tirou algumas fotos com o menino. As
últimas imagens que guardaria do filho, que, sem ninguém ver, saiu da casa e
caiu na piscina. Não houve tempo para o socorro. Ao contrário do marido, que se
recolheu, a cantora decidiu nunca deixar de falar no menino. “Percebi que as
alegrias que tive com meu filho durante seus 2 anos e 3 meses de vida foram um
presente que Deus me enviou. (...) Passei a agradecer a dádiva do nosso
convívio, em vez de viver para sempre lamentando sua partida.”
Wanderléa engravidaria outras duas vezes de Lalo. Na
primeira, aos 40 anos, quando esperava a filha Yasmim, ela inovou: aceitou
posar nua, com o barrigão à mostra, para a revista masculina Status. Na edição
histórica, Erasmo escreveu pequenos versos para acompanhar as imagens. No
livro, ela lembra que a atriz americana Demi Moore escandalizou o mundo, seis
anos depois, com a mesma atitude, posando para a Vanity Fair. “Alguns
jornalistas saudaram sua atitude, dizendo que ela havia sido inovadora nesse
sentido. Modéstia à parte, a pioneira a fazer isso foi uma cantora brasileira
nascida em Governador Valadares, a filha do severo seu Salim.” Yasmim nasceu em
1985 e Jadde, dois anos depois.
Ela e o marido continuam juntos, mas vivendo em casas
separadas. Em seu apartamento, Lalo montou um estúdio, onde ele e Wanderléa
passam horas cantando e tocando bossa nova, samba-canção e rock contemporâneo.
Com ele, ela gravou CDs marcantes, como o “Nova estação” (2008), com composições
de Chico Buarque, Arnaldo Antunes, Johnny Alf, Roberto e Erasmo, entre outros,
que ganhou o prêmio de melhor disco daquele ano pela Associação Paulista de
Críticos de Arte (APCA). O disco a levou em excursão com a família: a banda era
montada por Lalo, o cenário de Yasmim e percussão de Jadde. Em novembro de
2016, Wandeca inovou mais uma vez: convidada pelo produtor cultural Frederico
Reder, ela estreou como protagonista no espetáculo musical “60! Década de
arromba”, grande sucesso de público e crítica em suas temporadas carioca e
paulista. O espetáculo volta em novembro para o Rio, no mês em que o livro
também será lançado.
Aos 71, Wanderléa está no auge e planeja lançar um disco de
inéditas e outros mais autorais com o marido Lalo. A filha Yasmim está grávida
de uma menina e ela se tornará avó ainda em 2017. Como escreveu no prólogo,
Wanderléa acha que continua a ser a “mistura de eterna teenager com cigana
centenária”, como a definiu uma vez o seu mestre de cabala...
ORELHA:
Escrever sobre Wanderléa é quase um exercício de sustos
intercalados com ousadias. Ela é boa demais, amiga, mulher, mãe, filha,
solidária, com um grau de benevolência a todos que dá gosto de conviver! Parece
dominar uma energia desconhecida por nós, mortais ou súditos da sua história
surpreendente, rica em solidariedade, beleza e independência. Léa tem alma do
interior, gosto de mato molhado pela chuva e de terra rica que dá frutos
cheirosos de cores brilhantes e vivas. É um tipo singular de pessoa, que faz
com que os adjetivos percam a função de indicar-lhe um atributo…
Em 1977, fiz com meu amigo e parceiro Geraldo Carneiro uma
música que representasse nossa admiração por ela, “Educação sentimental” (“Se
você diz: eu te amo/ Meu coração se mira no espelho/ E faz piruetas de circo”).
Ela deu vida à composição, cantou com o humor necessário, e nós ganhamos uma
canção bem-humorada, bem cantada e com a cara dela. Nós nos aproximamos ainda
mais: a alegria da sua companhia sempre foi bem-vinda e desejada. No mesmo ano,
fizemos juntos o seu LP Vamos que eu já vou, e eu pude conhecer melhor sua
musicalidade, seus amigos, suas ideias, sua liderança e sua capacidade de se
reinventar todos os dias.
Para minha alegria, o destino nos permitiu uma aproximação
capaz de misturar os melhores sentimentos, renovando dia a dia a esperança de
que poderíamos viver mais felizes juntos. E nunca mais nos separamos. Selamos
uma admiração e um respeito tão grandes quanto sua competência de viver
privilegiando a beleza com esperança e fé.
Léa hoje se confunde com as filhas Yasmim e Jadde, lindas,
donas do legado composto por curiosidade, paciência e experimentação. Elas são
a representação da mãe, e uma prova de que sua sabedoria se refletiu, além da
arte, também na vida cotidiana.
Esta autobiografia é linda, escrita com delicadeza, verdade
e entrega a cada passo do processo — como fez nos anos 1970 com o disco que
produzimos e com todos os outros. Bom saber que sua história poderá ser
acompanhada e compreendida também pelos jovens, que seguem aplaudindo Léa, suas
canções e sua trajetória, certos de que ela segue nos ensinando os bons
caminhos para uma vida feliz.
Com
amor, amizade e saudade, Egberto Gismonti
Livro: Foi assim
Autora: Wanderléa
Pesquisa e edição de Renato Vieira
Páginas: 392
Editora: Record / Grupo Editorial Record
Texto e imagem reproduzidos do site: resenhando.com
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