Mulheres protestam contra PEC 181 que pode criminalizar o aborto, na Avenida Paulista,
em novembro de 2017 (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil).
Publicado originalmente no site Brasil Elpais, em 25 de dezembro de 2017
As mulheres que dizem não
Por Eliane Brum
Nem tudo foi retrocesso em 2017: há algo importante que se
move e não é para trás
Ele estava lá, o homem perplexo. Ele tinha dito qualquer
coisa como “gostosa” para uma jovem mulher. E ela tinha mostrado o dedo, bem na
sua cara. Tipo “te liga”. Ele explicava que aquilo não era abuso, era cantada.
E a cada vez que explicava parecia encolher de tamanho. Acostumado ao topo da
cadeia alimentar por quase toda uma vida, porque ele já era um velho, ele não
conseguia compreender porque os lugares haviam mudado. Ele não podia mais fingir
que era desejado, ele não podia mais dizer o que queria, e por fim ele
desabafou que não era capaz de viver num mundo em que uma mulher não gostasse
de ser chamada na rua de gostosa por um homem como ele. De repente, ele tinha
ficado muito mais velho. E perguntava: mas por quê? E tenho certeza de que ele
não estava blefando. Ele não sabia. Porque por tempo demais não precisou saber.
E agora precisa. Naquele exato momento, aquele homem perdeu o último pinto que
ainda ficava duro. E não tinha a menor ideia sobre como alcançar potência sendo
o que não sabia como ser.
De tantas cenas fortes deste ano, a minha foi essa pequena,
quase despercebida. Um desacontecimento que desvela um acontecimento feito
onda.
Há uma brutalidade objetiva no que vivemos, no Brasil e em
boa parte do mundo, que se acentuou ainda mais em 2017, neste período da
história que talvez possa ficar conhecido como a paródia que ele também é, a da
boçalidade do mal. E como já sabemos, em fases assim os anos não terminam nem
começam, apenas se emendam, e a boçalidade do mal acordará em 2018 tão boçal
quando dormiu em 2017. Possivelmente sem sequer saber de si, porque é
constitutivo dos boçais ter certeza sobre tudo, inclusive sobre aquilo que menos
conhecem, que é sobre si mesmos. Quem sabe de si tem dúvidas enormes, acorda
sobressaltado à noite duvidando do seu próprio rosto. Os boçais jamais as têm,
pensam que a máscara que colaram é sua única face e repetem muito a palavra
“verdade”.
Não é preciso fazer aqui a retrospectiva de nossos horrores.
Nós os conhecemos, eles se imiscuíram como parasitas íntimos, aproveitando-se
das fissuras que eles mesmos abriam na nossa pele e foram nos sugando a
alegria. Mas há uma outra tessitura, uma que se costura numa camada abaixo dos
acontecimentos, e que nos aponta onde está a vida e a possibilidade. Há algo
que se move – e não é para trás.
Não é possível ejacular nas mulheres em nenhum meio de
transporte
As mulheres riscaram o chão. Com as unhas. Não é um de
repente, é um processo. Mas algo emergiu com força, também por conta da
facilidade de mobilização das redes sociais que, se destroem – e destroem –,
também rompem. E fazem irromper. E quando escutamos o que nós mesmas dizemos,
quando nos escutamos, é chocante que tenha sido preciso dizer.
Não, não é possível ejacular em nós nos ônibus, nos metrôs e
nos aviões. Está vetado ejacular em nós em qualquer meio de transporte. Não,
não é possível passar a mão na nossa bunda nas ruas ou nos corredores das firmas.
Nem dar tapinhas. Não, não é possível dizer que a mulher é a parte chata da
buceta ou fazer qualquer outra piada machista em festas ou em qualquer lugar.
Não, não é possível mostrar o pinto quando passamos nem nos olhar de cima
abaixo como se quisesse nos lamber. Não, não é possível nos chamar de gostosa
ou emitir qualquer comentário sexual no espaço público. Não, não é possível
dizer que “é das novinhas que eles gostam mais” nem que “panela velha é que faz
comida boa”. Não é possível. Acabou.
Um não é um não. Não é um sim disfarçado, não é não mesmo. E
um homem terá que ser mais sensível, se esforçar mais, para entender quando há
consentimento para olhares e para aproximações e para sexo. Um homem, se ainda
não sabe, porque muitos já sabem, terá que aprender a escutar melhor. Não é tão
difícil assim, desde que se compreenda algo muito simples: um não é um limite
inultrapassável.
E isso vale para os estranhos, isso vale para os amigos,
isso vale para os solteiros, para os casados, para os que escolheram o
poliamor. Isso vale.
Isso vale para a direita e vale para a esquerda. Isso vale.
Com consentimento, pode experimentar todas as fantasias, até
a de não ter consentimento. Sem consentimento, não pode nada. Mas. Há um mas.
Se em qualquer momento a mulher mudar de ideia e quiser parar, o consentimento
vira um não. E um não é um não.
O homem podia ser abusado pelo patrão ou abusado pelo
branco, mas havia uma mulher que ele abusava depois
Não pode bater em mulheres. Não pode assediar e abusar de
mulheres. Não pode violentar mulheres.
Não pode matar mulheres.
Entendo que, para um homem que sempre pôde tudo, porque em
qualquer classe social e em qualquer raça os homens sempre puderam mais, parece
difícil. O homem podia ser abusado pelo patrão ou abusado pelo branco, mas
havia uma mulher que ele abusava depois. Em alguma instância da sua vida ele
tinha esta outra a quem poderia impor sua vontade, subjugar. Assujeitar.
Arrebentar. Um dia matar.
Está terminando o autoconsentimento tácito do homem sobre a
mulher, produzido pelo silêncio, pelo preconceito, pelo domínio ainda masculino
das instituições. Produzido como direito de nascença, que vinha junto com o
pinto. Produzido pelo discurso do “ela provocou”, “ela estava pedindo”, “ela
usava saia curta”, “ela tinha aquele decote”, “ela andava na rua tarde da
noite”, “ela no fundo queria”. De nossos desejos só nós sabemos. Mas
eventualmente podemos contar. E estamos contando. Basta escutar.
Para quem sempre monopolizou o poder, é difícil dividir o
poder: para alguns é o privilégio de falar sozinho que está em risco
Quem pensa que está cada vez mais difícil ser homem, com
mulheres que dizem não, tem razão. Deve ser bem difícil dividir o poder para
quem sempre monopolizou o poder. E para alguns é o poder de falar sozinho que
está em risco. Para alguns dos mais envernizados pela educação formal e pelos
livros, o que dói mais é a perda do privilégio de ser a única voz na sala, na
mesa do bar, nas livrarias. No palco.
E há algo que dói ainda um pouquinho mais, que é a perda do
privilégio de se achar tão bacana, tão moderno, tão cosmopolita, até um pouco
feminino. E então chega uma mulher – uma mulher! – e diz: seu rosto, este que
você vê no espelho, não é o mesmo que eu vejo. E, olha, você não é tão
importante assim, você não está aí rompendo paradigmas com seu discurso, seus
posts name-dropping não nos impressionam. Quem está quebrando paradigmas são
estas mulheres juntas, andando de mãos dadas pelas ruas.
Aí os envernizados, sentindo-se atacados em seus privilégios
de homens e de brancos e de esquerda, adaptam o discurso dos toscos, daqueles
que têm menos repertório para atacar. As mulheres então não são mais “as
loucas”, “as histéricas”, aquelas “em TPM permanente”. Dizer isso seria se
expor em demasia. A ideia de que enxerguem sua brutalidade os horroriza, é
preciso exercê-la com palavras melhores e com referências, muitas referências,
para encobrir a violência do discurso. Os “esquerdomachos”, uma das palavras
mais interessantes que se consolidou em 2017, são sofisticados demais para
dizer isso. O que eles dizem então, empacotando suas teorias em esperma e
citações?
A mulher que conquistou espaços de poder e de fala, apesar
de todo o machismo vigente, quando aponta privilégios de gênero e de raça “não
entende os conceitos”, “nomeia erroneamente os fenômenos”, “é incapaz de
debater”, “estava indo bem, mas perdeu-se”, “em vez de pensamento têm
compaixão”, sua ignorância os constrange.
Uma mulher envelhecer virou não só sinônimo de perda de
beleza e de potência num mundo masculino, mas também “velha” virou palavrão
Os esquerdomachos arrancam frases do contexto, o que é uma
forma de violência no debate público. Deslocam imagens também do contexto. Para
ilustrar seus posts, buscam fotos em que a mulher parece raivosa, talvez porque
estivesse falando sobre genocídios quando a fotografia foi tirada e jogada na
internet. O carimbo machista do momento é justamente mostrar como as mulheres
se tornaram “agressivas”, “raivosas”, “violentas”. E nada mais instantâneo que
a imagem para “provar” esse “fato”. Vale tudo para exercer a misoginia sem
parecer exercer a misoginia. O desonesto fala de honestidade, o sem ética fala
de ética.
E então, sentindo cheiro de sangue, os lambaris acreditam
que são tubarões, autorizam-se e acusam: “Sua velha!”. Porque uma mulher
envelhecer virou não só sinônimo de perda de beleza e de potência num mundo
masculino, mas também “velha”, uma palavra tão rica de sentidos e de
experiências, passou a ser usada como palavrão. Ou outro clássico: “Espero que
você morra de câncer, sem nem mesmo paracetamol para aliviar a dor!”. E, para
não deixar dúvidas, passam a perseguir a mãe, a filha, as mulheres que aquela a
ser destruída ama.
O truque já é um clichê. As mulheres, que passaram a vida de
violência em violência, percebem a obviedade do propósito na primeira linha.
Em 2018 teremos que andar juntas, de mãos dadas, também com
os homens capazes de escutar e de dialogar de igual para igual
Os direitos das mulheres sobre o seu corpo seguirão sendo
atacados em 2018. Os direitos às suas mentes, também, mas de formas mais
capciosas. Em ano eleitoral, e numa eleição nebulosa como a que temos pela
frente, o corpo das mulheres é convertido em moeda. Todas as formas de controle
sobre nossos corpos, das mais evidentes, como a criminalização do aborto até em
casos hoje permitidos pela lei, às mais sutis, como nos converterem em insanas
ou em burras ou em raivosas, estará valendo.
Mais do que nunca teremos que andar juntas, de mãos dadas,
também com os homens capazes de escutar e de dialogar de igual para igual. E
andar juntas é também escutar, porque o “outro” tem o direito de problematizar
tanto quanto “eu”. O direito que não tem é o de desqualificar a pessoa, em vez
de enfrentar o seu argumento com argumentos. A premissa de qualquer diálogo é o
respeito pelo interlocutor, mesmo que se divirja de suas ideias. Que venham
mais livros com cada vez mais vozes e mais diferenças. E que os textos que
buscam silenciar argumentos que perturbam sejam apenas esquecidos.
Nos Estados Unidos o ano começou com a marcha das mulheres
contra Trump e termina com o barulho dos corpos dos abusadores caindo de seus
postos em Hollywood. Mesmo que um homem seja um superpoderoso de uma das
indústrias mais lucrativas, já não pode mais assediar, abusar, estuprar. No
Brasil, alguns passos começam a ser ensaiados nesse sentido. Se as brasileiras
romperem o silêncio sobre o que acontece nos bastidores de grandes empresas e
também de redações da mídia, em universidades e coxias, algo por aqui vai se
mover um pouco mais.
O homem branco e heterossexual que ainda não compreendeu que
terá que dividir poder e perder privilégios já começa a pagar um preço alto
Pelo menos dois fatos possivelmente inéditos marcaram 2017:
a Globo, maior rede de comunicação do país, afastou um de seus principais galãs
de novelas por assédio sexual e rescindiu o contrato com um de seus jornalistas
mais conhecidos por um comentário racista que se tornou público. São dois fatos
de um Brasil que se move – e não é para trás.
Essa é a tessitura, de camada mais profunda, feita pelos
feminismos – e também pelos movimentos negros e pelos movimentos LGBTQ. Essa
segue, persiste, se complexifica, avança. Há muito para conquistar, uma
enormidade. Ainda vivemos a boçalidade do mal da direita à esquerda. Mas o
homem branco e heterossexual que ainda não compreendeu que terá que dividir
poder e perder privilégios já começa a ser enfrentado. E o custo começa a
aumentar.
De certo modo, este ano, que não começou em janeiro de 2017
nem acabará em 31 de dezembro, se iniciou com um retrato. O retrato de grande
poder simbólico do primeiro ministério de Michel Temer: branco e masculino. E
com a mulher relegada ao papel de primeira-dama “bela, recatada e do lar”,
enquanto parlamentares, empresários e jornalistas, especialmente jornalistas,
produziam textos e comentários embasbacados com a beleza e a juventude de “dona
Marcela” e com a potência de Temer, construindo a paródia de um folhetim de
Nelson Rodrigues com efeitos na narrativa política. Há todo um imaginário dos
sentidos deste casal presidencial e de seus papéis, que produziu impactos na
crônica de Brasília, e que ainda precisa ser desvelado para a melhor compreensão
desse momento histórico.
Talvez, no campo das simbologias, seja interessante observar
que 2017 termina com o marido de dona Marcela governando o país com uma sonda
na uretra.
* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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