Publicado originalmente no site da revista Cláudia, em 20 dez 2017
Amar é deixar partir: eutanásia ainda é tema polêmico
Até onde podemos agir sem atrapalhar uma pessoa querida que
precisa morrer? Como respeitar seu direito de partir sem dor?
Por Patrícia Zaidan
Encontrei Rosana Aparecida Alves, 48 anos, recostada em dois
travesseiros, com os cabelos pretos presos para trás. Seus olhos se fixaram nos
meus na tarde de 9 de março. No Recanto São Camilo, no bairro paulistano do
Jaçanã, o diálogo foi entrecortado pelo barulho do aparelho que levava a dose
máxima de oxigênio aos pulmões dela. E se pautou em um tema que ninguém gosta
de abordar: a morte. Rosana ocupava um dos dez leitos reservados a pacientes do
Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo que chegam ao fim da
linha terapêutica com as chances de cura esgotadas. Na trincheira entre a vida
e o mundo imaterial, só eles podem mensurar o próprio sofrimento e decidir
quando parar de lutar. Por isso, ali, não são submetidos a medidas invasivas ou
reanimação.
Alguns dias antes, ela havia sido levada para se despedir da
família, em casa. Esperava a intimidade para falar do desfecho próximo à caçula,
Natalia, 23 anos, que viera da Alemanha. “Mesmo adultos, os filhos necessitam
da mãe para mostrar certas coisas”, explicou. Perguntei como fora a conversa.
“Difícil, Natalia não consegue acreditar que preciso partir”, disse. Em
seguida, se corrigiu: “Na verdade, não tocamos no assunto, ela se recusa. Sem
que eu dissesse com todas as letras, ela percebeu”. Rosana contou que o marido,
Sérgio, e o filho, Gabriel, 29 anos, parecem mais conformados. “Embora tenham
uma visão florida, de que sou guerreira e vou sair dessa.”
Eu quis saber como ela se sentia. “Exausta. Não aguento
mais. Dependo do aparelho há dez anos, estou doente há 14. Entrar no hospital e
sair sem resposta não faz mais sentido”, resumiu seu calvário. A esclerose
sistêmica progressiva, doença
reumatológica, evoluiu com quadro de fibrose pulmonar e levou Rosana a
infecções de repetição. Com a terminalidade diagnosticada, escolheu interromper
o tratamento e passou a receber morfina para suportar a dificuldade de
respirar, além de massagens, apoio emocional e nutricional. “Queremos que
Rosana esteja confortável e aproveite a família”, explicou seu médico, Pedro
Barreto Coelho. “A morte é inevitável, só esperamos que os pacientes embarquem
na primeira classe.”
A declaração do médico resume uma atividade conhecida como
cuidados paliativos (CP), presente no Brasil há cerca de dez anos. Poucas
instituições a adotam. No HC, ela virou política de saúde só há quatro.
“Atendemos, em média, 850 pessoas por ano”, afirmou o coordenador da unidade de
CP, o cardiologista Ricardo de Carvalho. Se pudessem, muitos pacientes optariam
por algo mais radical, como uma injeção letal que encurtasse o caminho. Mas a
eutanásia (em grego, boa morte) é considerada homicídio no país, embora não seja
citada no Código Penal. Em 2012, uma proposta de reforma do código previu de um
a quatro anos de prisão para quem “eutanasiar” um paciente terminal por
compaixão. O projeto ainda não foi votado.
A advogada Túlasi Krüger defendia a legalização como um direito
à morte responsável muito antes de, aos 28 anos, enfrentar um agressivo câncer
de colo de útero. Sem poder abreviar seu sofrimento como gostaria, ditou todas
as etapas até a morte. Sua mãe, a psicóloga Elisa Krüger Alves da Costa,
professora da Universidade de Brasília (UnB), 49 anos, divorciada, deu um depoimento sobre a
despedida da filha, que publico ao longo desta reportagem, e vai virar um livro
escrito por ela.
A Próxima onda liberalizante.
No mundo, levanta-se uma maré pró-eutanásia, baseada nesta
defesa: assim como o Estado não pode se intrometer no sexo entre duas mulheres
ou dois homens, não cabe a ele impedir um cidadão de escolher como morrer. Nos
Estados Unidos, cinco estados admitem a eutanásia e outros 20 discutem
propostas legislativas, como ocorre no Reino Unido, na Alemanha e na África do
Sul. Em 2001, a Holanda foi a primeira a legalizá-la, seguida pela Bélgica.
Perto de nós, a Colômbia tem decisão favorável na Corte Constitucional e, no
Uruguai, desde 1934, um juiz pode isentar de culpa o cidadão que atende às
súplicas de um doente. Na Suíça, funcionam a Exite e a Dignitas, organizações
de suicídio assistido. Na última, o paciente ingere a dose letal de
pentobarbital de sódio, preparada por uma enfermeira. Em ambos, há rigor na
análise de laudos que atestam morte previsível e casos incuráveis que levam a
danos físicos e psíquicos insuportáveis. Há brasileiros inscritos na Dignitas;
alguns são militantes e ajudam, financeiramente, com o que consideram um ato
humanitário.
Existem duas formas de eutanásia: ativa (alguém oferece
medicamentos letais) e passiva, quando o tratamento é suspenso e o paciente
mantido sob sedação e drogas de alívio de sintomas. Aqui, a passiva é chamada
de ortotanásia. Seus defensores tentam afastar-se do peso da palavra crivada de
preconceito. Os opositores consideram a eutanásia sinal de covardia, fraqueza e
desrespeito às leis divinas.
Durante 25 dias, falei com enfermos. Em geral, eles concluem
que nenhuma divindade deseja a aflição para seus protegidos. O paraense Kleber
de Aquino, 25 anos, se sente refém de sua cama há dois. Um acidente de moto o
deixou tetraplégico e agravou as crises respiratórias enfrentadas desde a
infância. Ele me disse: “O sofrimento não carimba o passaporte para uma
eternidade sem culpas. Minha vida não deveria pertencer ao Estado nem à
religião, que atrapalham a libertação de tudo isso”. Seu pai, João de Aquino,
professor de matemática, sempre tenta demovê-lo: “A família está ao seu redor,
dando apoio e o conforto possível. Mas tirar a vida foge ao nosso alcance. O
peso desse ato inquietará a alma até depois da morte”.
Na comunidade Eutanásia Brasil no Facebook, conheci um
pianista e cantor lírico de 33 anos. Ele vive no interior paulista e se trata
no HC, na capital, de dor crônica, causada por fibromialgia, neuropatia e
radiculopatia. “Sinto meus nervos sendo esmagados, com dores terríveis nas
costas, no corpo. Elas me fazem urrar, perder o sono, a vontade de comer, de me
mexer.” Não revelarei seu nome porque o pianista teme que seus médicos voltem a
discriminá-lo. “Uma vez, pedi para ser tratado com uma bomba de infusão de
morfina ou com canabidiol, e o médico me respondeu: ‘Não era você que ia se
matar?’ ” O pianista está inscrito na Dignitas. Ele rechaça o termo suicídio
assistido. “É chocante para minha mãe”, justificou. “Vejo a prática como uma
saída honrosa para quem não quer uma morte suja”, afirmou. “Não tenho filhos,
estou doente desde os 17 anos e minha mãe entende a intenção de desistir do
mundo. Ela já disse que, se tivesse dinheiro, me levaria para morrer na Suíça.”
O psicólogo Adriano Facioli, que atua na UTI do Hospital
Regional de Samambaia, no Distrito Fe-deral, e dá aula na Escola Superior de
Ciências da Saúde, compreende o suicídio como algo triste, solitário,
traumático para a família. “Mas suicídio assistido é outra coisa”, opinou. “O
paciente tem o direito de discuti-lo com quem ama, despedir-se e receber
amparo.” Para Adriano, o direito de morrer é atropelado no país. “Nas UTIs,
sempre aparece um cara para ressuscitar pessoas sem chance de sobreviver. Age
por obstinação ou medo da Justiça.” Em alguns hospitais, ocorre o contrário. Ao
passar o plantão, a equipe avisa à próxima: “No leito 5, SPP”. O código de três
letras quer dizer “Se Parar, Parou”. Para isso, as diretrizes antecipadas de
vontade – o testamento vital, registrado em cartório – têm que ser afixadas no
prontuário médico. José Fernando Vinagre, corregedor do Conselho Federal de
Medicina (CFM), lembrou que, “no documento, o paciente afirma que rejeita
massagem cardíaca, por exemplo”. É a Resolução 1995, de 2012, do CFM, que
completa a resolução de 2006, prevendo a ortotanásia. Na opinião de Facioli,
trata-se da “eutanásia à brasileira”.
O patologista Marcos de Almeida, professor de bioética da
Universidade Federal de São Paulo, não tem dúvidas: “A eutanásia passiva e
ativa são um fato consumado. A classe médica e a jurídica já discutem o
problema nas suas associações, como ocorreu na Holanda. Lá, foram 18 anos em
uma espécie de acordo de cavalheiros para que não houvesse punição à eutanásia,
até a regulamentação”. Roberto Dias, professor de direito constitucional da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, lembrou que a Constituição fala
em direito de viver, mas não estabelece o de morrer. “Se existe o direito, há a
possibilidade de renunciar a ele. Se não posso decidir como quero morrer,
aquele direito vira uma obrigação.”
No imbróglio, a advogada Rosana Chiavassa, 55 anos, se
preveniu. Como o testamento vital pode ser contestado, ela, mesmo não estando
doente, conseguiu o aval de um juiz na ação que impetrou para recusar
tratamentos fúteis. A advogada Adriana Gragnani, 63 anos, espera decisão
semelhante: “Não deixarei meu corpo, minha saúde e intimidade sob a decisão de
familiares. Será muita responsabilidade para eles”. A economista Elca
Rubinstein, 70 anos, quer com a ação evitar procedimentos que seu convênio não
cubra e padecer com algo sem cura, como o Alzheimer.
A maturidade da família.
Depois das conversas pelo telefone, troquei mensagens com o
pianista. “Hoje ganhei uma passagem só de ida ao inferno”, ditou ele ao
computador, impossibilitado de digitar. “Tive cólicas, náuseas, cãibras. Faltou
o opioide metadona.” O remédio que tira a dor nem sempre é achado na rede
pública. “Queria um tratamento que me desse qualidade de vida. Ele não existe,
e eu me vejo em uma morte arrastada.” Quando ouve relatos como esse, o padre
Anísio Baldessin, que por 23 anos foi capelão do HC, não dá conselhos triviais,
como: “Tenha fé”; “Deus sabe o que faz”; “Ele dá só o que podemos suportar”.
Pelo contrário. “Eu me ponho no lugar do doente. Também não queria sofrer
horrores”, declarou em sua sala de pró-reitor do Centro Universitário São
Camilo, instituição católica que mantém o hospice onde está Rosana Aparecida.
Ele é contra a eutanásia, mas reafirma os CP: “A medicina, que ajuda o homem a
nascer, tem obrigação de ajudá-lo a morrer”. Em seu livro, Entre a Vida e a
Morte, Medicina e Religião, o padre
contou que as pessoas pediam rezas pelo milagre da cura impossível. Ele
respondia: “Deus pode, mas não faz tudo”.
No livro, relatou a angústia de Saulo, 12 anos, em processo
de metástase. Sua mãe e avó tentavam fazê-lo reagir. Num esforço enorme, o
garoto comia e bebia para atender aos apelos delas e tinha surtos de vômito.
“Apesar da gravidade, não conseguia morrer… Ou melhor, seus familiares pareciam
não deixá-lo morrer”, escreveu. Ao vê-lo agonizando, Anísio orou, chamou a avó
e a mãe e questionou: “Vocês já pensaram na possibilidade de deixar o Saulo
morrer? Eu sugiro que, em vez de estimularem, dizendo que ele tem que ficar
bom, vocês falem: ‘Saulo, você foi um guerreiro, lutou até onde suas forças
permitiram. Se quiser descansar, entenderemos a decisão’ ”. Naquela noite,
Saulo faleceu. Para o padre, a família ajuda o paciente a se curar. “Mas chega
a hora em que precisa ter a maturidade de dar a ele o direito de ir embora.”
Útimo desejo.
No Recanto São Camilo, a psicóloga Cláudia Góes e equipe já
fizeram festa de bodas de ouro para um paciente às vésperas de entrar em óbito.
Arrumaram champanhe sem álcool e sorvete de jaca para outros dois; ajudaram em
um acerto de contas familiar. Cláudia estava ao lado de Rosana quando falamos
sobre estar ou não preparada para deixar a vida. “Não sei se preparada é a
palavra”, afirmou Rosana. “Quando saí do coma, me desesperei. Hoje estou mais
leve e já não me sinto só. Se pioro, digo: ‘Vai ser agora’. Fico com medo, mas
também ansiosa para que o fim venha logo.” Terminei a conversa, beijei sua
testa, e ela perguntou: “Você precisa de uma foto minha para a reportagem?”
Dois dias depois, mandou dizer que ficara feliz em colaborar com o meu
trabalho. Uma semana mais tarde, permanecia lúcida, mas falava pouco. Na manhã
de 23 de março, reabri este texto para contar que ela falecera às 3 da
madrugada. A filha, Natalia, revelou que a mãe sorrira até o fim. O encontro
com a guerreira me marcou profundamente.
Texto e imagem reproduzidos do site: claudia.abril.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário