Compartilhamento de publicação originária do site da revista Veja, em 24/11/2017
Jô Soares: “O Brasil não perdeu a graça”
Jô Soares, 79 anos, abriu seu apartamento para seguinte
entrevista
Por Bruno Meier
O Livro do Jô foi feito a partir de 104 encontros com o
jornalista Matinas Suzuki Jr. O que mais o emocionou nessas conversas sobre sua
vida? Falar do Rafa (Rafael Soares, filho de Jô, morto em 2014). Diziam que eu
escondia meu filho. Mentira! As pessoas não entendem que falar de um filho
autista é difícil. Eu saía muito com o Rafinha. Ele amava música, era um
pianista extraordinário. Ele olhava para você e dizia: “Sua música é tal”, de
acordo com seu estado. É uma coisa sobrenatural, meio mágica.
Dos personagens cômicos que o senhor fazia, algum seria
rejeitado hoje? Praticamente todos. A patrulha está um inferno. Qualquer um deles poderia ser patrulhado,
porque a patrulha não vê nada. A patrulha é burra, sempre. Mas talvez os mais
problemáticos fossem o Pai da Bicha e o Capitão Gay. Se bem que eu sempre fui
contra qualquer forma de preconceito. Sou um anarquista.
É mais difícil fazer humor hoje, então? Tenho 58 anos de profissão,
com carteira assinada, e nunca vi uma coisa tão raivosa e medíocre de certas
pessoas. Você viu o o ódio que as pessoas colocam nos comentários sobre o João
Gilberto? E com a Fernanda Montenegro? Ou sobre a Daniela Thomas? Disseram:
“ah, mas ela é ligada a toda-poderosa Globo” ou “Claro, uma pessoa que fez o
show de abertura das Olimpíadas”. Ah, pera lá, ligar a Daniela Thomas ao Nuzman
(Carlos Arthur Nuzman, do Comitê Olímpico Brasileiro)? Mas há de se fazer humor
mesmo assim. A grande arma do humor é a anarquia. Falo para os humoristas:
façam, mesmo sob risco de serem apedrejados.
O Brasil ainda tem graça? Tem. O humor, para mim, é uma
visão de mundo. Perguntei tempos atrás ao cardeal de São Paulo, dom Odilo
Scherer: “Padre, pode doar sangue?”. “Claro”, ele respondeu. “E esperma?”. Ele
caiu na gargalhada. Tem pessoas que devem ter ficado chocadíssimas de eu fazer
uma pergunta dessa para um cardeal. Mas
temos de fazer. Gente, é humor. Não há
limite. O Brasil não perdeu a graça. Eu só tenho medo que se perca a esperança,
porque se você chega num momento em que se discute se vai votar em Lula ou
Bolsonaro, quer dizer que não surgiu ninguém? Que ninguém quer? Que a política
foi apodrecendo? Sem a política, não há como salvar o país. A esperança é a
Lava Jato. Quando se poderia imaginar que um governador como Sérgio Cabral,
esse senhor que quando criança andou muito nos meus ombros, pegaria muitos anos
de cadeia?
O Brasil ficou mais conservador ou os conservadores, a
partir das redes sociais, mostraram suas caras? As duas coisas. O brasileiro é
conservador. Sempre foi, mas disfarçava. “Êêê, tem Carnaval, oba”. Oba? Que
oba? Como assim? Você vê que a grande música do Ary Barroso começa dizendo que
o brasileiro é um “mulato inzoneiro”. As pessoas pensam que é um elogio.
Inzoneiro, quer dizer, vagabundo, preguiçoso. Hoje, talvez ele seria preso por
botar mulato numa música.
Depois de 28 anos à frente de um programa de entrevistas, no
SBT e na Globo, o senhor encerrou essa fase em 2016. Alguma angústia por isso?
Não. Estava na hora. Conversei com o (Carlos Henrique) Schroder (diretor-geral
da Globo) e disse: “Eu não tenho mais o mesmo prazer que eu tinha”. Ele
respondeu: “Quanto tempo você acha que precisa para terminar o programa, para
ele não cair de uma forma melancólica?”. Demos dois anos. Terminei e foi um
alívio.
Como está sua relação hoje com a Globo? Veio até a minha
casa a Vanessa (Pina), que é uma pessoa super encantadora, dos Recursos
Humanos. A única coisa que eu não concordo é trocar “recursos humanos” por
“capital humano”. Até brinquei com ela: “Ainda bem que não estamos nos tempos
dos escravos”, porque “capital humano” nos tempo dos escravos eram os escravos.
Mas minha relação com eles é ótima. Sou amigo do Roberto Irineu, quando ele
ainda era o Robertinho. A gente jantava toda semana juntos. Então não teria
porquê ser diferente. A Vanessa veio aqui, ano passado, e disse: “Vamos fazer o
seguinte: vamos fazer uma coisa assim de dois anos você ganhando…”. Eu falei:
“Não, não quero mais nada. Chegou”. Mas meus amigos sugeriram de propor um ano
de contrato sabático, como as grandes empresas. Claro, ganhando menos, mas
fazendo muito menos.
E 2018? Houve um momento em que quis fazer o Meninas do Jô,
na GloboNews. Aí, me convenceram que o programa seria mais um sobre política
num canal que só fala disso. Fiz televisão por 60 anos. Posso me dar ao luxo de
não fazer mais. Em 2018, farei a peça A noite de 16 de Janeiro, de Ayn Rand. E
sabe o que aconteceu de mais importante na noite de 16 de janeiro? Eu nasci.
Texto e imagens reproduzidos do site: veja.abril.com.br
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