Biblioterapia, livros como terapia (ilustração de Diego Mir.
Publicado originalmente no site brasil.elpais.com, em 9 de outubro de 2017.
Por que procurar refúgio nos livros quando a realidade parece
insuportável?
A biblioterapia pode ser um porto seguro, um alívio para
nossa alma e um antídoto contra as adversidades
Por Marta Rebón.
Foi abandonado, o mundo já não é maravilhoso. Como em um jet
lag permanente, não consegue se conectar com a realidade que o envolve. Freud
dizia que as palavras e a magia foram no princípio a mesma coisa. É por isso
que continuamos procurando refúgio nos livros quando a vida nos prega uma
brincadeira estúpida? Você, passageiro em momentos ruins, abre um romance e em
suas páginas encontra algo parecido a um bote salva-vidas, um alívio balsâmico
ao desassossego.
Os leitores vorazes sabem bem que as bibliotecas e as
livrarias são uma panaceia eficaz à alma, como já se afirmava na Antiguidade. A
ficção e a poesia, afirma a romancista Jeanette Winterson, são remédios que
curam a ruptura que a realidade provoca em nossa imaginação. Como diz a máxima
horaciana dulce et utile, nos ensinam prazerosamente. O eco das palavras, seu
ritmo, e as imagens com uma grande carga emocional inundam e ativam os
recônditos de nossa consciência. Quando lemos um texto literário inteligente e
sedutor, o mundo se torna mais habitável.
Entre os benefícios de se ler ficção, o primeiro, por mais
óbvio que pareça, é chegar a nos conhecer melhor. Proust, a quem hoje poucos
negarão sua aptidão à ciência cognitiva, afirmava que cada leitor, quando lê, é
o próprio leitor de si mesmo. Acrescentava que a obra do escritor não é mais do
que uma espécie de instrumento ótico que este oferece ao outro para
permitir-lhe discernir o que, sem esse livro, não seria capaz de ver por si
mesmo. Entrar no universo dos romances é viver múltiplas vidas. Com um livro
nas mãos se abre diante de nós um terreno para a experimentação de inúmeras
circunstâncias. A biblioterapia é possível graças ao choque de identificação
que se produz no leitor quando se vê refletido na história. Sentimos empatia
por outras pessoas, outras formas de pensar. A leitura, além disso, é uma
aventura intelectual trepidante. Para o Nobel de Literatura André Gide, ler um
escritor não é só ter uma ideia do que ele diz, mas viajar com ele.
Quando lemos um texto literário inteligente e sedutor, o
mundo se torna mais habitável
Ler nos coloca em um espaço intermediário: ao mesmo tempo em
que deixamos em suspenso nosso eu, nos conecta com nossa essência mais íntima,
um bem valioso para se manter certo equilíbrio nesses tempos de distração. A
leitura, dizia María Zambrano, nos brinda com um silêncio que é um antídoto ao
barulho que nos rodeia. Ela nos procura um estado prazeroso semelhante ao da
meditação e nos traz os mesmos benefícios que o relaxamento profundo. Ao abrir
um livro conquistamos novas perspectivas, pois a ficção divide com a vida sua
essência ambígua e multifacetada. Uma vez que só podemos ler um número limitado
de títulos, o que procuramos? Obras que reafirmem nossas crenças, ou façam com
que essas balancem? Para Kafka era muito claro, só deveríamos nos adentrar nas
obras que incomodam: “Um livro precisa ser um machado que abre um buraco no mar
gelado de nosso interior”.
Resenhas de biblioterapia
— Remédios literários, de Ella Berthoud e Susan Elderkin. Um
original e divertido livro sobre biblioterapia que fala do poder curativo da
palavra escrita.
— A leitura como plegária, de Joan-Carles Mèlich (sem edição
no Brasil). Uma reflexão sobre a leitura e a escrita em 262 fragmentos filosóficos.
— Por que ler os clássicos, de Italo Calvino. O escritor nos
lembra que os clássicos nunca deixam de surpreender e resistir ao tempo.
— Poema, de Rafael Argullol (inédito no Brasil). Um
breviário contemporâneo erudito e sensível de reflexões sobre a condição humana
e o discorrer do mundo.
— Intérprete de males, de Jhumpa Lahiri. A escritora indaga
sobre as barreiras que personagens de diferentes culturas devem saltar em sua
busca da felicidade.
— A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói. Um luminoso
romance que na realidade é um poema capaz de nos reconciliar com nossa condição
mortal.
— Pequeno fracasso, de Gary Shteyngart. Depois de se mudar
com sua família a Nova York, o garoto judeu russo Igor se transforma em Gary,
um personagem que narra a experiência de viver dividido entre dois países que
são inimigos.
— Doce Canção, de Leila Slimani. Disseca as circunstâncias
de um crime e lança luz sobre as contradições da sociedade atual.
Marta Rebón: Tradutora, crítica literária e fotógrafa.
Traduziu ao espanhol e ao catalão obras de Vasily Grossman, Boris Pasternak,
Lev Tolstói e Svetlana Alexijevich, pelo que recebeu os prêmios da Fundação
Yeltsin e do Instituto Pushkin. Expôs na Rússia, Cuba, Espanha e Equador.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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