terça-feira, 26 de setembro de 2017

Jean-Claude Bernardet: a desconstrução de um mito

Jean-Claude Bernardet em seu apartamento no Edifício Copan.
Foto: Diego Rousseaux.

Publicado originalmente no site Página B, em 20/04/2017

Jean-Claude Bernardet: a desconstrução de um mito

Por Mariana Tessitore.

Aos 80 anos, o crítico de cinema fala com franqueza sobre a morte, os dilemas do cinema contemporâneo, seus novos projetos e ”A Destruição de Bernardet”, filme em que ele é retratado de maneira livre, alternando momentos quase oníricos a uma visão...

Com seus fortes olhos azuis, o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet abre a porta de seu apartamento no 30º andar do Edifício Copan, projetado por Oscar Niemeyer, no centro de São Paulo. Livros e revistas se espalham pelas estantes, mesas e o chão do recinto. Numa mesinha lateral, ao lado de uma confortável poltrona vermelha, o roteiro de um filme divide o espaço com uma lupa.

Nos últimos anos, o hábito de ler, tão essencial para Bernardet, tornou-se um pouco mais difícil. Ele sofre de degeneração da retina, doença crônica que ataca as máculas, região central dos olhos, provocando uma perda progressiva da visão. “Eu não ficarei totalmente cego, mas chegará um momento que só verei borrões e vultos”, explica.

Com 80 anos, Bernardet fala da velhice e da sua perda de visão de forma natural, sem papas na língua. Um dos principais críticos de cinema do País, continua produzindo muito, envolvendo-se nos mais diferentes projetos, sempre em busca de “expandir seus limites”, como gosta de dizer. É preciso insistir bastante com sua secretária para conseguir marcar um horário na sua agenda lotada.

De uns tempos para cá, sua vida tomou um rumo diferente: o crítico começou a atuar, participando de longas como Periscópio (2013), de Kiko Goifman, e Fome (2015), de Cristiano Burlan. Seu último trabalho é A Destruição de Bernardet, filme exibido nos festivais de Brasília e Tiradentes, que deve estrear em breve no circuito nacional. Dirigido por Claudia Priscilla e Pedro Marques, o longa-metragem é centrado na própria figura do crítico.

A trajetória de Bernardet é de inspirar qualquer roteirista. Ele passou a infância na França ocupada pelos nazistas, migrou para o Brasil, foi exonerado da Universidade de São Paulo (USP) durante a ditadura militar e, entre tantas coisas, escreveu textos polêmicos sobre o Cinema Novo. Costuma-se dizer que uma crítica positiva de Bernardet confere um atestado de qualidade ao filme avaliado.

Porém, ele não está interessado nos mitos ao seu redor e sim em experimentar, “tomando a si próprio como um laboratório”. O filme mostra esse processo de reinvenção permanente do intelectual, distanciando-se do formato convencional de documentário. Este caráter alternativo foi, por sinal, a condição do crítico para que a obra fosse feita: “Há muitos anos a Claudia me pedia para fazer um trabalho sobre a minha trajetória. E eu sempre fui muito reticente porque não queria um filme de entrevista, com pessoas falando bem de mim, esse tipo de coisa”.

Ele acabou aceitando, mas com a garantia de que não fosse uma obra elogiosa. Ao longo do documentário, a câmera o acompanha no hospital, na aula de canto ou numa caminhada pela mata. “É um trabalho de autoficção, recurso que cria ambiguidades entre o papel do autor e do personagem”, afirma. Bernardet se coloca como ator do longa, em um jogo no qual ficção e realidade se misturam.

Em uma das cenas mais fortes, o crítico aparece deitado num leito de hospital, enquanto uma voz em off lê uma carta na qual ele declara que a sua vida não deve ser prolongada por meios artificiais como sondas de alimentação e diálise, entre outros. Enquanto o texto é lido, Bernardet olha fixamente para a câmera; sua postura é quase de confronto.

Indagado se a carta de fato existe, o crítico responde que sim. “O documento foi escrito pelo meu geriatra e está em posse de seis pessoas da minha confiança, inclusive a minha filha. Mas é terrível como esse tema ainda gera uma repulsa por parte da sociedade. As pessoas realmente acreditam que a vida dos idosos deve ser prolongada ao máximo, mesmo que contra a sua vontade. É de um egoísmo enorme”.

Recentemente, Bernardet foi a uma consulta de rotina. Após olhar o seu exame de sangue, o médico disse que ele estava ótimo. “Desse jeito, você viverá mais dez anos”, afirmou o profissional. Mordaz, o crítico respondeu: “E eu fui consultado sobre isso?”. Ele relembra esse episódio para ilustrar o “discurso de violência” que prevalece na medicina hoje. “Para a indústria farmacêutica, se eu viver mais 30 anos é ótimo. Vou continuar comprando remédios, antidepressivos e soníferos. Eles vão adorar. Mas e eu com isso?”, indaga.

Apesar de tratar de temas densos como este, o filme tem um tom de leveza e ironia. Bernardet conta que, após a exibição do longa-metragem, muitas pessoas idosas elogiaram o trabalho. “Eu me lembro de uma senhora muito velha que me disse que havia compreendido totalmente o filme. Não sei, sinceramente, o que ela compreendeu – diz brincando –, mas a fala dela me emocionou.

 Em 2000, Bernardet passou por uma grande depressão. Ele havia se aposentado na USP e começara a ter dificuldade para enxergar. Foi nesse período que o diretor Kiko Goifman o convidou para atuar no longa-metragem FilmeFobia. Apesar de ainda se sentir muito deprimido, Bernardet aceitou a proposta. A participação no filme representou um ponto de virada para o intelectual. Divertindo-se ao lembrar, ele conta que algumas cenas em especial foram decisivas.

“Havia uma sequência que nós filmávamos à noite. Lá pelas 18 horas, aparecia uma garrafa de uísque no set. Eles só filmavam quando estávamos ligeiramente bêbados. Era uma cena de discussão entre os personagens. Eu, em específico, interpretava um intelectual, e precisava dizer todo um vocabulário lacaniano. Mas, sem eu saber, o Kiko tinha orientado os outros atores a não me deixarem falar. Então, tive que lutar contra todos esses obstáculos, os atores e os efeitos do álcool, para conseguir dizer as minhas falas”, relembra.

Esse esforço de autocontrole exerceu um fascínio em Bernardet. “Depois de participar do FilmeFobia, tive a ideia de atuar no cinema como um desafio, tentando ultrapassar os meus limites. Isso considerando que eu sou tímido. Não sei cantar, mas canto, não sei dançar, mas danço. Queria começar a atuar dentro desse espírito”, pontua.

Um homem afeito às palavras, Bernardet fez assim uma opção radical, na qual o corpo surge como forma vital de expressão. Sua resistência física, diga-se, é invejável. Esbelto, o crítico anda rapidamente de um lado para o outro do apartamento. Em uma de suas atuações mais impressionantes, no filme Pingo D´Água, de Taciano Valerio, Bernardet se contorce e entra inteiro dentro de uma mala. Logo após assistir ao longa-metragem, em declaração ao jornal O Estado de S.Paulo, o produtor Cavi Borges comentou: “Pensei que o Jean-Claude fosse apenas um cérebro; descobri que ele é um corpo”.

Trajetória

Nascido na Bélgica em 1936, o crítico se mudou ainda pequeno para a França. No seu livro autobiográfico Aquele Rapaz, ele relembra os detalhes de sua infância passada em Paris, durante a ocupação nazista. “Meu pai foi à guerra. Soube mais tarde que lutara na Resistência e, vez ou outra, voltava para nos visitar. Cada visita era um drama. Durante o dia, minha mãe avisava que nos acordaria de madrugada para ver meu pai. E insistia para que não disséssemos a ninguém que o tínhamos visto”, conta no livro.

Findado o conflito, seu pai separou-se da esposa e se casou de novo. Com a nova mulher e os dois filhos, partiu para o Brasil em busca de oportunidades financeiras. Em 1949, a família chegava a São Paulo e se instalava no bairro do Socorro. Aos 13 anos, Bernardet começou a estudar no Liceu Pasteur. Por muito tempo, conviveu apenas com a comunidade francesa, sentindo-se um estrangeiro no País. O crítico, de certa forma, ainda mantém esse olhar de quem está de fora.

“Quando eu tinha 18 anos, descobri o conceito de bastardo do Sartre. E eu me identifiquei absolutamente, foi quase uma bússola para mim. Nunca pertencer completamente a nada, nunca estar completamente integrado. Claro que faço parte da sociedade brasileira, não há dúvida quanto a isso. Porém, eu não fui formado por essa sociedade, fui formado pela sociedade francesa, mas a ela não pertenço. Então, eu estou constantemente inserido e desinserido”, afirma Bernardet em uma das cenas do longa-metragem.

Já interessado pela sétima arte, o futuro crítico frequentava a Cinemateca Brasileira. Foi ali que conheceu o historiador Paulo Emílio Sales Gomes, um encontro que diz ter “mudado a sua vida”. “As pessoas sempre falam da influência dele sobre mim. Mas, de certa forma, é muito mais do que isso. Quando nós nos conhecemos, eu já havia escrito algumas coisas, mas ele abriu totalmente a minha cabeça. O Paulo foi o primeiro que de fato acreditou em mim”, afirma.

Paulo Emílio, que já era uma grande referência no cinema brasileiro, tinha uma coluna no suplemento de cultura do Estadão. A convite dele, Bernardet começou a assinar alguns textos. Na época, ele ainda não sabia escrever bem em português. Redigia os artigos em francês e um amigo depois traduzia. “Assim eu fui aprendendo o português”, conta.

Em 1965, Bernardet se tornou assistente de Paulo Emílio no curso de Cinema da Universidade de Brasília. A partir daí, começou sua carreira dentro do meio universitário, tornando-se também professor da Escola de Comunicação e Artes da USP. Isso tudo sem possuir graduação ou mestrado. Era um momento de modernização da universidade. Novos cursos eram criados e, por falta de professores concursados, a USP contratava profissionais reconhecidos do meio.

Com a decretação do Ato Institucional n° 5, em 1968, Bernardet foi um dos 25 professores expulsos da USP. Ele costuma dizer que a sua inclusão na lista foi uma “burrice” por parte do governo militar, que o transformou, do dia para a noite, em uma celebridade. Com apenas um livro publicado até então, o crítico teve seu nome ao lado de intelectuais como Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes.

Indagado se, durante a ditadura, teve medo da repressão, ele responde rapidamente que não. Mas, ao se lembrar daquele período, ele menciona a censura: “Em 1964, todos fomos demitidos do ÚltimaHora. A Gazeta do Povo também acabou com a minha coluna. Mas no Opinião meus textos foram censurados mesmo. O censor ia até a redação e cortava vários dos meus artigos. Então, o editor de cultura me pediu para escrever um texto mais ameno, que, mesmo assim, foi censurado. Chegamos à conclusão de que o meu nome havia sido cortado. A partir daí, comecei a assinar com pseudônimos. Poucos sabiam disso na época”, conta.

Bernardet é conhecido por falar de assuntos dolorosos com facilidade. A morte, por exemplo, é um tema recorrente em sua produção e, em especial, no livro A Doença, Uma Experiência. Na obra, o crítico conta que é portador do vírus HIV. Ele soube do diagnóstico em 1992, quando ainda não havia os coquetéis e a Aids era tida como uma sentença de morte.

“Eu passei a viver com essa ideia de morte a curto prazo. E evidentemente que, se você sabe que morrerá em breve, isso te desobriga de uma série de coisas chatas: reuniões das quais você não quer mais participar, rituais familiares que enchem a paciência, ser gentil com pessoas de quem você não gosta, enfim, coisas desse tipo. E viver nesse espírito foi um trabalho psicológico bastante importante. Fui muito produtivo: escrevi livros, fiz um filme sobre São Paulo, liderei um projeto de reciclagem de professores na ECA. Para mim, foi um período bastante estimulante”, conta.

No livro, publicado pela Companhia das Letras, Bernardet faz um relato cortante, em que nega a qualquer custo o papel de vítima. Em determinado momento da narrativa, ele afirma: “Com Aids, melhor andar na chuva e se molhar do que ser superprotegido. Preferível os preconceituosos. Bem feito, você é viado, a situação fica delimitada, o chão está firme. O chão dos falsos anjos da guarda é pantanoso. Que recolham sua boa vontade e seu humanismo”.

Ao contrário do que possa parecer, Bernardet conta que o mote para a escrita do livro foi literário. “Eu nunca tinha pensado em escrever sobre a minha experiência com a doença”, ele enfatiza. O impulso surgiu após o crítico ler Assim Vivemos Agora, de Susan Sontag. Na obra, a autora narra o cotidiano de um grupo de amigos que se mobiliza para ajudar um colega doente. Bernardet, que não gosta de dirigir, lia o livro no ônibus, enquanto voltava de uma aula na USP.

 “Eu cheguei em casa e comecei a escrever rapidamente. Depois de um tempo, percebi que o meu livro, na primeira pessoa do singular, dava voz ao personagem ausente na obra da Sontag. Ela trabalhou a periferia do sujeito doente, o centro da estrutura é um oco, então eu preenchi esse oco”. Quando o livro foi publicado, a Companhia das Letras enviou um exemplar para Sontag. Porém, até hoje não se sabe se a famosa en­saísta norte-americana recebeu a publicação ou se a leu.

Querelas cinematográficas

Polêmico nato, Bernardet iniciou inúmeras discussões com seus colegas. Uma das mais famosas girou em torno do papel do Cinema Novo. No livro Brasil em Tempos de Cinema, publicado em 1967, ele questiona a pretensão de que os filmes do movimento eram feitos do povo para o povo. Para ele, o Cinema Novo era um produto da classe média urbana progressista voltado para ela mesma.

O livro gerou inúmeras críticas, prin­cipalmente quanto ao conceito de classe média, defendido pelo intelectual. Em uma entrevista dada para o jornal Folha de S.Paulo em 1979, Glauber Rocha chegou a chamar Bernardet de “canalha”. Ainda assim, o crítico ressalta que nunca houve uma disputa entre os dois.

Ele defende que tanto o Cinema Novo quanto o Cinema Marginal tiveram uma grande importância na cultura brasileira, sendo referências incontornáveis. Alerta, no entanto, para os perigos da mitificação: “É uma tradição muito opressiva. Nas faculdades, os alunos têm o Glauber e o Sganzerla como modelo, sabendo que nunca chegarão aos pés deles, ou pelo menos da fantasia que se faz, do fetiche. Os tempos agora são outros, então é realmente problemático”, pontua.

Diante disso, como um cineasta pode produzir filmes inovadores sem negar a tradição cinematográfica do País? Empolgado, Bernardet cita o filme Cinema Novo, de Eryk Rocha. Ele conta que gostou muito do documentário por ser uma obra de “personalidade”. “Mesmo tratando do tema do Cinema Novo, o filme tem uma montagem extremamente complexa, que faz uma série de ironias e, principalmente, fala dos tempos de hoje a partir das imagens de arquivo”, comenta.

Outro dilema do cinema contemporâneo, apontado por Bernardet, é a superação do que ele chama de estética da miséria. “Durante a ditadura civil-militar, apresentar a miséria popular era realmente um ato de resistência porque os militares não queriam que se divulgasse essa imagem do País. Portanto, muitos filmes feitos na década de 60 e 70 têm esse caráter. Depois da chamada redemocratização, não havia mais problema em apresentar moradores de rua, ou outras coisas. Aquilo que poucos anos antes era uma forma de resistência, deixou de ser.”

Para ele, que não se exime de suas posições fortes, o tema da pobreza se tornou um álibi da classe média: “A miséria é tratada de forma horizontal. Filmam-se pessoas desempregadas, moradores de favelas, esse tipo de coisa. Isso cria um discurso de consenso, todo mundo está de acordo que a pobreza deve acabar, o papa, o presidente dos EUA, todos concordam. E o ato político de verdade dificilmente gera consenso. Eu acho que a saída do cinema brasileiro seria abandonar o tratamento horizontal para um vertical, ou seja, mostrar qual é a estrutura que leva à pobreza. Dessa forma, do cara que dorme na rua você pode ir para o Banco Itaú”, afirma.

Além do filme de Eryk Rocha, Bernardet destaca outras duas produções mais recentes: Praia do Futuro, de Karim Aïnouz, e Boi Neon, de Gabriel Mascaro. Este último, em especial, é muito elogiado pelo crítico: “O filme do Mascaro é muito renovador em diversos níveis, na complexidade narrativa, na construção dos persona­gens, no figurino. É uma narrativa instigante e leve. Os cineastas deveriam prestar mais atenção nele”.

Ele cita Boi Neon como um contraponto a um tipo de filme, cada vez mais frequente, que dá todas as respostas ao público. “Hoje há muitos roteiristas que querem explicar tudo, porque o personagem fez isso ou aquilo, porque ele virou a esquina. Não se trabalha suficientemente a elipse e a justaposição, criando rela­ções explí­citas entre as cenas”, pontua.

Quando o assunto é política nacional, seu rosto amigável adquire uma expressão de tristeza, de quem não se conforma com os rumos do País. “Estamos assistindo ao desmonte do Brasil. É evidente que, daqui a alguns anos, toda a degradação humana e social que o governo está nos impondo terá consequências catastróficas que eu, por ter a idade já avançada, não acompanharei. Não é nada animador, mas ainda tenho esperança de que as pautas da Previdência e da terceirização mobilizem as pessoas, que os trabalhadores se sintam atingidos e ocupem as ruas.”

Ainda que desanimado com o futuro do País, o crítico fica contente ao falar dos projetos que realizará em breve, como a atuação no novo filme do cineasta paraibano Dellani Lima, com quem já trabalhou no longa-metragem Agreste. Também será assistente do diretor Cristiano Burlan no documentário Elegia de Um Crime. Ainda com Burlan, Bernardet planeja ultrapassar um novo limite: atacar os palcos. Com 80 anos e uma resistência inacreditável, o mestre do cinema não cansa de se reinventar.

Texto e imagem reproduzidos do site: paginab.com.br

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