Publicado originalmente no site da Revista Status, em 30/10/2015.
Gabeira o repórter.
Além de sua atuação na política, Fernando Gabeira
notabilizou-se como repórter, mergulhando num mundo desafiante e perigoso.
Infiltrou-se em presídios, desmascarou policiais desonestos e ficou cara a cara
com traficantes e assassinos. Conheça os bastidores de suas bombásticas
experiências.
Por Michael Koellreutter | Foto Joaquim Nabuco
A menina começou a morrer assim. Ela viu as notícias na TV e
gritou:
– Apareceu minha casa.
– Não é sua casa. Você se enganou.
– Mas eu vi também meu pai. Aquele era o meu pai.
– Não chore que ele vem. Vai levar você para a sua mãe.
Depois da notícia, a menina ainda assistiu uma novela e um
programa chamado “Leandro & Leonardo na Disneylândia”. Minnie e Mickey
apareciam na tela. Seria a última vez que ela viria a TV.
O relato de Fernando Gabeira aconteceu após encontrar, face
to face, o chamado “Monstro de Minas”. William Ferreira, o criador de galos de
briga que sequestrou, matou e queimou a menina Miriam Brandão, de 5 anos, no
Natal de 1992. Um crime tão bárbaro que fez o então presidente Itamar Franco
reativar o debate sobre a pena de morte no Brasil. Primeiro, William asfixiou a
pequena Miriam com éter. Após constatar que ela não respirava, ele levou o
corpo para o quintal, depositou num latão de zinco, juntou alguns troncos de
lenha e despejou gasolina. A chama subiu junto e ele diz ter sentido logo o
cheiro de carne queimada. Jogou rapidamente alguns pedaços de pneu sobre o
corpo para que o cheiro de borracha queimada se misturasse ao da carne. Uma
parte do corpo da menina resistia. Mais lenha e mais fogo. William saiu e foi
para a rua passear. Ao retornar, enterrou as cinzas debaixo de uma mangueira e
continuou a cobrar o resgate da família.
“Desembarcar em Belo Horizonte para buscar a causa daquilo
não foi tarefa fácil”, lembra Gabeira. “O delegado Minelli, responsável pelo
caso, não queria que ninguém conversasse com William, pois acreditava que
qualquer publicidade em caso de sequestro era negativa. Dizia que o assassino
era frio, que tinha uma inteligência acima do normal e se comportava como um
líder. Visitei a cena do crime, a advogada e obviamente o próprio William,
preso depois de ter uma chamada localizada pela polícia. Ele parecia viver num
clima de pesadelo e dizia que os amigos não acreditavam que ele tivesse matado
a menina. Dizia que ele mesmo não acreditava e que, depois disso, voltou a
aceitar Jesus Cristo”.
William dizia ter asfixiado a menina por não conseguir
fazê-la parar de chorar. Mas o repórter
sempre ficou intrigado: “Por que não usou uma mordaça? Um brinco de mulher foi
encontrado junto ao corpo da criança. Teria William matado a menina para que
ela não reconhecesse uma pessoa que viu na casa? Nunca ninguém soube explicar.”
Nossa história com Fernando Gabeira repórter começa nos
fervilhantes encontros noturnos no Bar Florentino, no Rio de Janeiro, sempre
frequentado por Tarso de Castro, João Ubaldo Ribeiro, Fernando Sabino, Chico
Caruso, Palmerio Doria, Ezequiel Neves….
Eram as famosas reuniões de pauta da extinta Interview, revista que eu
dirigia. Um verdadeiro clube intelectual batizado de “Rio on the Rocks”, já
que, além de talentosos e ferinos, todos se afogavam no uísque. Todos, menos um…
Fernando Gabeira! Tomava apenas uma taça
de vinho tinto, era o primeiro a chegar e o primeiro a sair, nunca varando a
madrugada. Gabeira tinha ali uma posição muito especial. Não discutia apenas
sobre as histórias que farejava. Funcionava também como uma espécie de antena
para toda a revista, trazendo temas incríveis para os outros jornalistas.
Aliás, fazendo jus à fama de ter sido o melhor pauteiro nos tempos de
glória do Jornal do Brasil.
Um dos motivos que nos levara a convidar Gabeira para cobrir
este universo foi a desenvoltura com que ele atuara no Jornal de Vanguarda, na
TV Bandeirantes, na época editado pela jornalista Belisa Ribeiro, única mulher
jornalista no clube “Rio on the Rocks”. Numa das matérias de mais impacto,
Gabeira foi até um presídio em Belo Horizonte para denunciar a superlotação.
Ali, ante as câmeras, Gabeira revelava a roleta russa: uma vez por mês os
presidiários escolhiam um colega que era morto pelos demais e o corpo jogado
para fora da cela, com o objetivo de deixá-la mais vazia. Urrando e espremido
atrás das grades, um dos prisioneiros chamava atenção entre os muitos. O
assassino Severino, condenado a passar o resto da vida na prisão: “Nem adianta
me soltar, porque eu não vou conseguir me controlar: aqui ou lá, vou sempre matar!
… Adoro matar!”.
Zé Bundão.
Foi graças a episódios como esse que Fernando Gabeira
requisitava, sempre que necessário, um parceiro: o celebrado psicanalista Luiz
Alberto Py, com intimidade do metier. Foi Py quem orientou Gabeira no caso do
Monstro de Minas e, juntos, fizeram uma reportagem que sacudiu o Brasil. Eles
foram os primeiros a entrevistar o ator Guilherme de Pádua, aquele que, com a
namorada Paula Thomas, assassinou a tesouradas a atriz Daniela Perez. Gabeira
foi ao encontro do prisioneiro acompanhado do fotógrafo Luiz Garrido e, ao
analisar o depoimento, Py deu seu parecer: Guilherme de Pádua era um psicopata
e, portanto, deveria estar num hospital psiquiátrico e não na cadeia. A opinião
despertou a ira da mãe, a autora Glória Perez. Detalhe: a condição do assassino
para ser fotografado era ser também maquiado! Queria ficar bem na foto…
Mesmo as mais contundentes matérias de Gabeira sempre foram
regadas a irresistíveis doses de humor. Uma delas, sem dúvida, foi sobre o
então governador de São Paulo, Luiz Antônio Fleury, cuja reputação fora abalada
pelo famoso massacre no presídio do Carandiru. Mostrava a trajetória de Fleury,
começando como policial militar, depois austero promotor público, mas revelou
que o governador, nos tempos de escola, era chamado pelos colegas de… Zé Bundão. Foi o suficiente para que Fleury
movesse um processo contra Gabeira, sendo imediatamente defendido pelo advogado
criminalista Marcio Thomaz Bastos, que anos depois se tornaria ministro da
Justiça no governo Lula. A ação, entretanto, não durou muito tempo. Gabeira foi
eleito deputado, beneficiou-se da lei da imunidade parlamentar e o processo
prescreveu.
Sempre preocupado em investigar os crimes de conteúdo
político, Fernando Gabeira chegou a um caso de amor no sequestro do empresário
Abilio Diniz, na época dono do Grupo Pão de Açúcar. O foco foi o casal de
canadenses David Spencer e Christiane Lamont, condenados a 28 anos de prisão
por sua participação no sequestro do empresário. “Eles tinham ideias políticas
e estavam especialmente preocupados com a América Latina. Queriam libertar El
Salvador”, diz Gabeira. “Acabaram, em busca de dinheiro para a causa,
envolvendo-se no crime”. Presos em São Paulo, David e Christine estavam há
cinco anos sem se ver quando Gabeira foi visitá-los. Eles reivindicavam que
deveriam ser tratados como presos políticos e diziam que, na condição de
estrangeiros e por contarem com a fiscalização do consulado do Canadá,
“felizmente não foram torturados”. O que fez com que o jornalista voltasse os
olhos para a tortura que acontecia paralelamente. A primeira vítima foi
Raimundo, o porteiro cearense que cuidava da casa em que Abílio Diniz ficou
escondido. “Este é um gringo enrustido que fala bem português”, notou um dos
policiais. “Olhem a cabeça dele”, dizia o outro. “É cearense. Não há
dúvida!” No auge da pancadaria, Raimundo
hesitou ao gritar: “Chamem já cônsul do Ceará!”
O Fernando Gabeira repórter nasce em 1950 quando, aos 17 anos,
ingressa no Binomio, o mais crítico e combativo jornal fundado em Minas Gerais,
sua terra natal. Suas reportagens de estilo inconfundível (mesmo quando
enviadas por meio de bilhetes ou guardanapos) valeram um convite para ingressar
no Jornal do Brasil, durante seu apogeu. Passou pelo Última Hora, Zero Hora,
Correio de Minas… Ao se envolver com a política, participou do célebre
sequestro do embaixador americano Charles Elbrick durante a ditadura, foi
preso, torturado e, mesmo no exílio, não largou o jornalismo: começou a
trabalhar na rádio da Suécia produzindo programas frenéticos! Ao retornar, fez seu debute na TV
Bandeirantes, nunca se desligou do jornalismo escrito e hoje, na Globonews, tem
um programa com seu nome, com temas ecléticos, abrangendo do crime à ecologia.
Bangu I.
Impossível não notar seu charme e o look, sempre festejado
pelos fãs: as cores das roupas, as echarpes, a variedades de óculos e coletes.
Mas nada disso (nunca!) causou tanto impacto quanto a famosa sunga de crochê
lilás, mostrada em Ipanema, quando Gabeira voltou do exílio. Ele comenta:
“Trabalhava na rádio na Suécia e passava os verões na Grécia, onde, como todos,
ficava na praia nu! Em Ipanema, com
aquela tanga, me senti de gravata!”, conta Gabeira, às gargalhadas. Quando veio
a primeira candidatura a deputado, surgiu a famosa frase no Rio: “Quem senta,
fuma e cheira… vota no Gabeira!”.
Acharia mais adequado se a frase fosse: “Quem pensa, fuma e cheira… vota
no Gabeira!”, acrescenta ele, ainda rindo.
Quando retornou do exílio, passou a investir ainda mais em
reportagens de grande impacto. Uma das mais importantes foi, sem dúvida, sua
entrada na penitenciária de Bangu I para um convívio com os traficantes
“Gordo”, “Professor” e “Japonês”. Ali, já mostrava a intenção de “Gordo” em
regenerar-se. Ao ser libertado, “Gordo” entrou para a política e foi
assassinado por queima de arquivo. “O que me impressionou foi a facilidade com
que, na época, eles já operavam com celulares nos presídios. Acho que fui um
dos primeiros a falar sobre o assunto”, diz o repórter. Gabeira infiltrou-se na
Yakusa, a máfia japonesa; encarou “Uê”, na época o bandido mais procurado do
País; desmascarou os “Cavalos Corredores”, facção assassina da PM carioca;
denunciou a ligação de policiais federais com o tráfico de drogas.
Mesmo eleito deputado federal, Fernando Gabeira nunca deixou
de escrever. De cara, perfilou José Carlos Alves dos Santos, o homem que
denunciou o esquema de corrupção dos “Anões do Orçamento”. Numa outra matéria,
apresentou a visão séria e lúcida, baseada nos países mais desenvolvidos,
defendendo os usuários de drogas, contra a prisão. Manchete: “Deputado Gabeira
defende liberdade para quem cheira!”. Em outra vez na revista Interview, onde,
por coincidência, o pintor Ivald Granato, na mesma edição, dava uma polêmica
declaração: “Se me derem cocaína, não vou agir como um monge”. Claro que o fato
despertou uma reação violenta dos mais conservadores acusando a revista de
fazer apologia à droga. Foi o suficiente para que, no número seguinte, o repórter
Ezequiel Neves, leal amigo de Gabeira, revoltado com o preconceito, estampasse
na capa da publicação: “Cherei cocaína na bunda de Elizabeth Taylor!”
Texto e imagem reproduzidos do site: revistastatus.com.br
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