sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Gabeira O Repórter


Publicado originalmente no site da Revista Status, em 30/10/2015.

Gabeira o repórter.

Além de sua atuação na política, Fernando Gabeira notabilizou-se como repórter, mergulhando num mundo desafiante e perigoso. Infiltrou-se em presídios, desmascarou policiais desonestos e ficou cara a cara com traficantes e assassinos. Conheça os bastidores de suas bombásticas experiências.

Por Michael Koellreutter | Foto Joaquim Nabuco 

A menina começou a morrer assim. Ela viu as notícias na TV e gritou:

– Apareceu minha casa.

– Não é sua casa. Você se enganou.

– Mas eu vi também meu pai. Aquele era o meu pai.

– Não chore que ele vem. Vai levar você para a sua mãe.

Depois da notícia, a menina ainda assistiu uma novela e um programa chamado “Leandro & Leonardo na Disneylândia”. Minnie e Mickey apareciam na tela. Seria a última vez que ela viria a TV.

O relato de Fernando Gabeira aconteceu após encontrar, face to face, o chamado “Monstro de Minas”. William Ferreira, o criador de galos de briga que sequestrou, matou e queimou a menina Miriam Brandão, de 5 anos, no Natal de 1992. Um crime tão bárbaro que fez o então presidente Itamar Franco reativar o debate sobre a pena de morte no Brasil. Primeiro, William asfixiou a pequena Miriam com éter. Após constatar que ela não respirava, ele levou o corpo para o quintal, depositou num latão de zinco, juntou alguns troncos de lenha e despejou gasolina. A chama subiu junto e ele diz ter sentido logo o cheiro de carne queimada. Jogou rapidamente alguns pedaços de pneu sobre o corpo para que o cheiro de borracha queimada se misturasse ao da carne. Uma parte do corpo da menina resistia. Mais lenha e mais fogo. William saiu e foi para a rua passear. Ao retornar, enterrou as cinzas debaixo de uma mangueira e continuou a cobrar o resgate da família.

“Desembarcar em Belo Horizonte para buscar a causa daquilo não foi tarefa fácil”, lembra Gabeira. “O delegado Minelli, responsável pelo caso, não queria que ninguém conversasse com William, pois acreditava que qualquer publicidade em caso de sequestro era negativa. Dizia que o assassino era frio, que tinha uma inteligência acima do normal e se comportava como um líder. Visitei a cena do crime, a advogada e obviamente o próprio William, preso depois de ter uma chamada localizada pela polícia. Ele parecia viver num clima de pesadelo e dizia que os amigos não acreditavam que ele tivesse matado a menina. Dizia que ele mesmo não acreditava e que, depois disso, voltou a aceitar Jesus Cristo”.

William dizia ter asfixiado a menina por não conseguir fazê-la parar de chorar.  Mas o repórter sempre ficou intrigado: “Por que não usou uma mordaça? Um brinco de mulher foi encontrado junto ao corpo da criança. Teria William matado a menina para que ela não reconhecesse uma pessoa que viu na casa? Nunca ninguém soube explicar.”

Nossa história com Fernando Gabeira repórter começa nos fervilhantes encontros noturnos no Bar Florentino, no Rio de Janeiro, sempre frequentado por Tarso de Castro, João Ubaldo Ribeiro, Fernando Sabino, Chico Caruso, Palmerio Doria, Ezequiel Neves….   Eram as famosas reuniões de pauta da extinta Interview, revista que eu dirigia. Um verdadeiro clube intelectual batizado de “Rio on the Rocks”, já que, além de talentosos e ferinos, todos se afogavam no uísque. Todos, menos um… Fernando Gabeira!  Tomava apenas uma taça de vinho tinto, era o primeiro a chegar e o primeiro a sair, nunca varando a madrugada. Gabeira tinha ali uma posição muito especial. Não discutia apenas sobre as histórias que farejava. Funcionava também como uma espécie de antena para toda a revista, trazendo temas incríveis para os outros jornalistas. Aliás, fazendo jus à fama de ter sido o melhor pauteiro nos tempos de glória  do Jornal do Brasil.

Um dos motivos que nos levara a convidar Gabeira para cobrir este universo foi a desenvoltura com que ele atuara no Jornal de Vanguarda, na TV Bandeirantes, na época editado pela jornalista Belisa Ribeiro, única mulher jornalista no clube “Rio on the Rocks”. Numa das matérias de mais impacto, Gabeira foi até um presídio em Belo Horizonte para denunciar a superlotação. Ali, ante as câmeras, Gabeira revelava a roleta russa: uma vez por mês os presidiários escolhiam um colega que era morto pelos demais e o corpo jogado para fora da cela, com o objetivo de deixá-la mais vazia. Urrando e espremido atrás das grades, um dos prisioneiros chamava atenção entre os muitos. O assassino Severino, condenado a passar o resto da vida na prisão: “Nem adianta me soltar, porque eu não vou conseguir me controlar: aqui ou lá, vou sempre matar! … Adoro matar!”.

Zé Bundão.

Foi graças a episódios como esse que Fernando Gabeira requisitava, sempre que necessário, um parceiro: o celebrado psicanalista Luiz Alberto Py, com intimidade do metier. Foi Py quem orientou Gabeira no caso do Monstro de Minas e, juntos, fizeram uma reportagem que sacudiu o Brasil. Eles foram os primeiros a entrevistar o ator Guilherme de Pádua, aquele que, com a namorada Paula Thomas, assassinou a tesouradas a atriz Daniela Perez. Gabeira foi ao encontro do prisioneiro acompanhado do fotógrafo Luiz Garrido e, ao analisar o depoimento, Py deu seu parecer: Guilherme de Pádua era um psicopata e, portanto, deveria estar num hospital psiquiátrico e não na cadeia. A opinião despertou a ira da mãe, a autora Glória Perez. Detalhe: a condição do assassino para ser fotografado era ser também maquiado! Queria ficar bem na foto…

Mesmo as mais contundentes matérias de Gabeira sempre foram regadas a irresistíveis doses de humor. Uma delas, sem dúvida, foi sobre o então governador de São Paulo, Luiz Antônio Fleury, cuja reputação fora abalada pelo famoso massacre no presídio do Carandiru. Mostrava a trajetória de Fleury, começando como policial militar, depois austero promotor público, mas revelou que o governador, nos tempos de escola, era chamado pelos colegas de…  Zé Bundão. Foi o suficiente para que Fleury movesse um processo contra Gabeira, sendo imediatamente defendido pelo advogado criminalista Marcio Thomaz Bastos, que anos depois se tornaria ministro da Justiça no governo Lula. A ação, entretanto, não durou muito tempo. Gabeira foi eleito deputado, beneficiou-se da lei da imunidade parlamentar e o processo prescreveu.

Sempre preocupado em investigar os crimes de conteúdo político, Fernando Gabeira chegou a um caso de amor no sequestro do empresário Abilio Diniz, na época dono do Grupo Pão de Açúcar. O foco foi o casal de canadenses David Spencer e Christiane Lamont, condenados a 28 anos de prisão por sua participação no sequestro do empresário. “Eles tinham ideias políticas e estavam especialmente preocupados com a América Latina. Queriam libertar El Salvador”, diz Gabeira. “Acabaram, em busca de dinheiro para a causa, envolvendo-se no crime”. Presos em São Paulo, David e Christine estavam há cinco anos sem se ver quando Gabeira foi visitá-los. Eles reivindicavam que deveriam ser tratados como presos políticos e diziam que, na condição de estrangeiros e por contarem com a fiscalização do consulado do Canadá, “felizmente não foram torturados”. O que fez com que o jornalista voltasse os olhos para a tortura que acontecia paralelamente. A primeira vítima foi Raimundo, o porteiro cearense que cuidava da casa em que Abílio Diniz ficou escondido. “Este é um gringo enrustido que fala bem português”, notou um dos policiais. “Olhem a cabeça dele”, dizia o outro. “É cearense. Não há dúvida!”  No auge da pancadaria, Raimundo hesitou ao gritar: “Chamem já cônsul do Ceará!”

O Fernando Gabeira repórter nasce em 1950 quando, aos 17 anos, ingressa no Binomio, o mais crítico e combativo jornal fundado em Minas Gerais, sua terra natal. Suas reportagens de estilo inconfundível (mesmo quando enviadas por meio de bilhetes ou guardanapos) valeram um convite para ingressar no Jornal do Brasil, durante seu apogeu. Passou pelo Última Hora, Zero Hora, Correio de Minas… Ao se envolver com a política, participou do célebre sequestro do embaixador americano Charles Elbrick durante a ditadura, foi preso, torturado e, mesmo no exílio, não largou o jornalismo: começou a trabalhar na rádio da Suécia produzindo programas frenéticos!  Ao retornar, fez seu debute na TV Bandeirantes, nunca se desligou do jornalismo escrito e hoje, na Globonews, tem um programa com seu nome, com temas ecléticos, abrangendo do crime à ecologia.

Bangu I.

Impossível não notar seu charme e o look, sempre festejado pelos fãs: as cores das roupas, as echarpes, a variedades de óculos e coletes. Mas nada disso (nunca!) causou tanto impacto quanto a famosa sunga de crochê lilás, mostrada em Ipanema, quando Gabeira voltou do exílio. Ele comenta: “Trabalhava na rádio na Suécia e passava os verões na Grécia, onde, como todos, ficava na praia nu!  Em Ipanema, com aquela tanga, me senti de gravata!”, conta Gabeira, às gargalhadas. Quando veio a primeira candidatura a deputado, surgiu a famosa frase no Rio: “Quem senta, fuma e cheira… vota no Gabeira!”.  Acharia mais adequado se a frase fosse: “Quem pensa, fuma e cheira… vota no Gabeira!”, acrescenta ele, ainda rindo.

Quando retornou do exílio, passou a investir ainda mais em reportagens de grande impacto. Uma das mais importantes foi, sem dúvida, sua entrada na penitenciária de Bangu I para um convívio com os traficantes “Gordo”, “Professor” e “Japonês”. Ali, já mostrava a intenção de “Gordo” em regenerar-se. Ao ser libertado, “Gordo” entrou para a política e foi assassinado por queima de arquivo. “O que me impressionou foi a facilidade com que, na época, eles já operavam com celulares nos presídios. Acho que fui um dos primeiros a falar sobre o assunto”, diz o repórter. Gabeira infiltrou-se na Yakusa, a máfia japonesa; encarou “Uê”, na época o bandido mais procurado do País; desmascarou os “Cavalos Corredores”, facção assassina da PM carioca; denunciou a ligação de policiais federais com o tráfico de drogas.

Mesmo eleito deputado federal, Fernando Gabeira nunca deixou de escrever. De cara, perfilou José Carlos Alves dos Santos, o homem que denunciou o esquema de corrupção dos “Anões do Orçamento”. Numa outra matéria, apresentou a visão séria e lúcida, baseada nos países mais desenvolvidos, defendendo os usuários de drogas, contra a prisão. Manchete: “Deputado Gabeira defende liberdade para quem cheira!”. Em outra vez na revista Interview, onde, por coincidência, o pintor Ivald Granato, na mesma edição, dava uma polêmica declaração: “Se me derem cocaína, não vou agir como um monge”. Claro que o fato despertou uma reação violenta dos mais conservadores acusando a revista de fazer apologia à droga. Foi o suficiente para que, no número seguinte, o repórter Ezequiel Neves, leal amigo de Gabeira, revoltado com o preconceito, estampasse na capa da publicação: “Cherei cocaína na bunda de Elizabeth Taylor!”

Texto e imagem reproduzidos do site: revistastatus.com.br

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