terça-feira, 1 de agosto de 2017

Deborah Levy: "O escritor é um arqueólogo que tem de escavar suas ideias"

A escritora sul-africana Deborah Levy 
Foto: Ben Pruchnie/Getty Images.

Publicado originalmente no site da revista Época, em 28/07/2017.

Deborah Levy: "O escritor é um arqueólogo que tem de escavar suas ideias".

Nome ascendente da literatura em língua inglesa, a sul-africana Deborah Levy tece romances engajados e ao mesmo tempo emotivos sobre a memória do apartheid.

Por Sergio Garcia. 

Autora ainda pouco conhecida no Brasil, a sul-africana radicada em Londres Deborah Levy teve o aval de ninguém menos que Liz Calder, a mentora da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), para ser incluída na grade de atrações deste ano. Veio bem a calhar. Ela está lançando no país seu segundo livro, Coisas que não quero saber, que é uma resposta com coloração feminina ao ensaio Por que escrevo, em que o autor britânico George Orwell elenca motivos – para lá de diversificados – que levam uma pessoa ao ofício. Sua estreia no Brasil foi com o romance Nadando de volta para casa, lançado há quase três anos, cuja protagonista é uma correspondente de guerra. Esse livro chegou a ser finalista do Man Booker Prize, a mais conceituada premiação literária inglesa, mas não levou.

Bem-humorada, a poetisa, dramaturga e romancista está impressionada com uma cena prosaica com que vem deparando nas ruas de piso irregular de Paraty. “Os cachorros aqui estão sempre dormindo”, diz ela, à procura de uma explicação. “Isso pode ser um bom tema para uma história.” Ela cresceu em Joannesburgo, na África do Sul, no auge da segregação racial do apartheid. Por ser um ativista dos direitos humanos, seu pai esteve preso durante quatro anos. Assim que foi solto, ele levou a família para Londres, onde Deborah, aos 58 anos, vive até hoje e criou suas duas filhas. Fã de bossa nova e do poeta Ferreira Gullar, a autora deu esta entrevista a ÉPOCA.

ÉPOCA – Quando cheguei à pousada, sua editora no Brasil cantava para a senhora a versão em inglês de “Garota de Ipanema”.
Deborah Levy – Adoro bossa nova. É uma canção solar, que tem sensualidade, parece uma conversa. As músicas falam de pessoas vendo coisas, sentindo coisas e sendo felizes. É como o sol da manhã. Essa é minha segunda vez no Brasil, e agora estou muito feliz em Paraty, um lugar cheio de vida. Você só tem de trocar os sapatos. Fico olhando para os cachorros dormindo, e todos os cachorros daqui estão sempre dormindo. Quem sabe eu não escreva uma história sobre os cachorros de Paraty. Minha primeira viagem ao Brasil foi há quase três anos. Passei uma semana no Rio de Janeiro para lançar meu primeiro livro. Adorei o espírito vibrante da cidade.

ÉPOCA – O que levou a senhora a escrever?
Levy – Escrever é uma forma de pensar e de transmitir meu pensamento a outras pessoas, de fazê-las rir também. Quando criança, eu era muito quieta, falava muito baixo, e a professora vivia me mandando falar mais alto. Então, outra professora me sugeriu que eu escrevesse meus pensamentos. Escrevi meus pensamentos, e eles ganharam vida, soaram alto. Assim foi meu começo, escrevi para dar um sentido a meus pensamentos e ao mundo, que caminham juntos. E poder conversar a respeito de coisas que julgo importantes, como as emoções e a política.

ÉPOCA – A senhora parece ter preferência por conceber personagens femininos. Concorda?
Levy – Gosto de criar personagens masculinos também, e já criei vários deles. Mas o mundo não está ordenado da melhor maneira para as mulheres, que têm mais dificuldade de encontrar seu lugar no mundo. Daí a presença delas nas minhas obras. O escritor atua como um arqueólogo, que tem de escavar suas ideias. Isabel, por exemplo [personagem de Nadando de volta para casa], é uma correspondente de guerra. Ela quer esquecer tudo o que viu no front, para conseguir viver normalmente. O livro é de 1994, quando tive minha primeira filha. Lembro-me de uma vez ter ligado a televisão e vi cenas sobre o genocídio de Ruanda. Não suportei ver aquilo, e logo desliguei a TV. Mas, em seguida, refleti que era preciso ver aquilo, que jornalistas arriscaram a vida para levar aquelas imagens até nós, e liguei a TV novamente. Quando escrevo histórias, é como se eu ligasse a TV de novo.

ÉPOCA – Como foi sua infância na África do Sul ? Que lembranças tem do regime do apartheid?
Levy – Nasci em Joannesburgo, meu pai e minha mãe eram envolvidos com grupos que lutavam pela democracia e pelos direitos humanos. Cresci convivendo com uma diversidade de pessoas. Quando eu tinha 5 anos, meu pai se tornou um prisioneiro político. Ele esteve detido por quatro anos e, nesse período, minha mãe ficou cuidando sozinha da família. Quando ele foi solto, a família se mudou para a Inglaterra.

ÉPOCA – De que forma a literatura entrou em sua vida?
Levy – Quando tinha 15 anos, decidi que queria ser escritora. Havia lido muitos livros sobre os existencialistas, Simone de Beauvoir, Sartre, e eu estava fascinada com aquele mundo de cafeterias, de intelectuais fumando Gauloises e bebendo espresso. Pensei: essa é a vida que quero ter. Só que em Londres, onde morava àquela altura, não os cafés como os de Paris. Mas descobri um lugar parecido com um café numa estação de ônibus em Londres, que só era frequentado por homens. Mas mesmo assim resolvi frequentar aquele lugar para começar a escrever meus textos. Levei uma caneta e um bloco de notas, escolhi uma mesa e comecei a ir sistematicamente ao local, me achando uma Simone de Beauvoir. Descobri que uma jovem escrevendo num café londrino não era incomodada pelos homens. Acho que o ato de escrever evitava que eles se aproximassem de mim. Vi ali que a caneta me ajudava a criar meu próprio espaço, meu próprio mundo. A garçonete do café estranhava a minha presença: quem é essa mulher? Certa vez, ela me perguntou o que eu escrevia. Respondi que era meu primeiro livro. Não era verdade, mas precisava dar uma resposta forte.

ÉPOCA - A senhora ficou um longo tempo sem lançar nada, entre Billy and girl (1994, não lançado no Brasil) e Nadando de volta para casa (2011). A que se deveu esse intervalo?
Levy – Quando escrevi meu primeiro romance, eu era muito nova, tinha 25 anos. Depois, escrevi muito para o teatro, para a Royal Shakespeare Company. Nesse intervalo de 15 anos, tive uma filha e fui trabalhar como professora de escrita. Quando voltei para a ficção, estava mais velha, com mais experiência de vida, e isso se refletiu na minha obra.

ÉPOCA – Seus pais conheceram Nelson Mandela?
Levy – O nome Nelson Mandela era familiar na minha infância. Meu pai e minha mãe o conheceram bem. Todos eles foram parte de uma geração que lutou por democracia. Nelson Mandela foi mais um nome no movimento, que era repleto de gente anônima.

ÉPOCA – O que conhece de literatura brasileira?
Levy – Amo a poesia de Ferreira Gullar, e li Clarice Lispector quando era jovem, quando sua obra foi traduzida para o inglês. Conheci também o trabalho de Augusto Boal.

ÉPOCA – Como a senhora vê a questão racial no Brasil?
Levy – Não estou no Brasil tempo o bastante para me sentir segura a responder a essa pergunta. Essa é uma questão muito séria. Precisaria de mais vivência aqui para responder.

Texto e imagem reproduzidos do site: epoca.globo.com/cultura

Nenhum comentário:

Postar um comentário