Publicado originalmente no site da revista Carta Educação, em 25 de julho de 2017.
O que Lima Barreto pode ensinar ao Brasil de hoje.
Autor homenageado pela 15ª edição da Festa Literária
Internacional de Paraty.
Por Denilson Botelho
Em sua 15ª edição, pela primeira vez a Festa Literária
Internacional de Paraty (FLIP) homenageia em 2017 um escritor negro. A escolha
de Lima Barreto é muito significativa para um país que se debate de forma
conflituosa com a herança secular da escravidão. A polêmica sobre a relevância
e a pertinência da adoção de cotas, entre outras ações afirmativas, é um
indicador do quanto o racismo continua fazendo vítimas entre nós. Por isso, a
homenagem ao escritor cumpre uma indiscutível função pedagógica.
Lima Barreto (1881-1922) viveu numa época de transições. No
seu aniversário de sete anos, viu a abolição ser festejada em praça pública na
companhia do pai, registrando as lembranças do episódio em seu Diário íntimo.
No ano seguinte, em 1889, viu a monarquia dar lugar à república. E passou a
juventude e o resto de sua curta existência – faleceu aos 41 anos – enfrentando
os desafios de ser negro num país que aboliu a escravidão, mas não fez com que
a liberdade viesse acompanhada dos direitos de cidadania pelos quais temos
lutado desde então. Da mesma forma, vivenciou também os desafios de uma
república que se fez excludente, frustrando a expectativa por um regime
democrático.
Não bastassem as adversidades enfrentadas por qualquer homem
negro no pós-abolição, Lima Barreto se fez escritor e sua extensa e
diversificada obra constituiu-se em precioso testemunho daquele tempo para as
gerações seguintes. Quem quiser compreender o que foi o Brasil nas suas
primeiras décadas republicanas, terá que percorrer obrigatoriamente a
literatura produzida por esse autor, que olhava para o país a partir de um
ponto de observação singular: os subúrbios, a periferia e os bares frequentados
pelas camadas populares. Ou a partir de sua casa suburbana que, de modo
sarcástico, apelidou de “Vila Quilombo” – para implicar com Copacabana e as
elites.
Mas por que devemos ler Lima Barreto hoje? São vários os
motivos, mas um deles revela-se da maior importância. Nos últimos anos, os
grandes grupos empresariais de mídia têm contribuído decisivamente para
demonizar a política. A pregação de um discurso anticorrupção tem se revestido
de um moralismo sem precedentes e, ao mesmo tempo, esterilizante. Muitos são
aqueles que têm sido levados a recusar o debate político sob o argumento tolo,
generalizante e perigoso que sugere que todo político é ladrão e corrupto. A
estratégia abre espaço para a figura enganosa do “gestor”, que, fingindo
renegar a política, governa para contemplar os interesses de poucos em
detrimento da maioria.
O fato é que encontramos em Lima Barreto um vigoroso
antídoto para lidar com essa situação, pois estamos diante de um escritor que
fez da literatura a arte do engajamento. Escrever era para ele uma forma
efetiva de participar dos acontecimentos. Os mais de 500 artigos e crônicas que
publicou em dezenas de jornais e revistas do Rio de Janeiro – assim como seus
romances e contos – não deixavam escapar nenhum tema importante em discussão na
época. Lima não se esquivava do debate e muito menos de opinar e apresentar
enfaticamente os seus pontos de vistas, geralmente urdidos com base nas
leituras que fazia quase obsessivamente. Em síntese, escrever era fazer
política, era participar da vida política do país e isso resultou numa
literatura militante, que nos leva a perceber a centralidade da política em
nossas vidas.
Ao mesmo tempo, já na sua estreia como romancista, ao
publicar Recordações do escrivão Isaías Caminha, em 1909, Lima Barreto
instigava o senso crítico de seus leitores em relação aos métodos e
procedimentos do jornalismo, fazendo do romance uma denúncia contra a imprensa,
aquele “engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada de
tablado de mágica e espelho prestidigitador, provocando ilusões,
fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com pedacinhos de
chumbo, uma máquina Marinoni e a estupidez das multidões”.
O autor homenageado pela FLIP em 2017 tem, portanto, muito a
nos ensinar sobre a importância de reconhecer a política como instrumento
indispensável para a obra – que continua em curso – desafiadora de construção
de uma república democrática. Inclusive sobre os desafios forjados por uma
imprensa mais comprometida com a “estupidez das multidões” do que com a
cidadania que tanto almejamos.
Denilson Botelho, historiador e professor da Universidade
Federal de São Paulo. Autor de A pátria que quisera ter era um mito: história,
literatura e política em Lima Barreto (Editora Prismas, 2017).
Texto e imagem reproduzidos do site: cartaeducacao.com.br
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