A ilusão das redes sociais
O narcisismo, a superficialidade e o distanciamento, entre
outras características das relações virtuais, formam pessoas cada vez mais
individualistas e egoístas
Por Dulce Critelli — publicado na edição 81, de novembro de
2013
É indiscutível o importante papel que as redes sociais
desempenham hoje nos rumos de nossa vida política e privada. São indiscutíveis
também os avanços que introduziram nas comunicações, favorecendo o reencontro e
a aproximação entre as pessoas e, se forem redes profissionais, facilitando a
visibilidade e a circulação de pessoas e produtos no mercado de trabalho. A
velocidade com que elas veiculam notícias, a extensão territorial alcançada e a
imensa quantidade de pessoas que atingem simultaneamente não eram presumíveis
cerca de uma década atrás, nem mesmo pelos seus criadores. Temos sido
testemunhas, e também alvo, do seu poder de convocação e mobilização, assim
como da sua eficiência em estabelecer interesses comuns rapidamente, a ponto de
atuarem como disparadoras das várias manifestações e movimentos populares em
todo o mundo atual.
Portanto, não podemos sequer supor que elas tragam somente
meras mudanças de costumes, porque seu peso, associado ao desenvolvimento da
informática, é semelhante à introdução da imprensa, da máquina a vapor ou da
industrialização na dinâmica do nosso mundo. As redes sociais provocam mudanças
de fundo no modo como as nossas relações ocorrem, intervindo significativamente
no nosso comportamento social e político. Isso merece a nossa atenção, pois
acredito que uma característica das redes sociais é, por mais contraditório que
pareça, a implantação do isolamento como padrão para as relações humanas.
Ao participar das redes sociais acreditamos ter muitos
amigos à nossa volta, sermos populares, estarmos ligados a todos os
acontecimentos e participando efetivamente de tudo. Isso é uma verdade, mas
também uma ilusão, porque essas conexões são superficiais e instáveis. Os
contatos se formam e se desfazem com imensa rapidez; os vínculos estabelecidos
são voláteis e atrelados a interesses momentâneos.
Além disso, as relações cultivadas nas redes sociais se
baseiam na virtualidade, portanto, no distanciamento físico entre as pessoas.
Isso nos permite, com facilidade, entrar em contato com as pessoas e afastá-las
quando bem quisermos. Tal virtualidade garante comunicação sem intimidade. Em
1995, quando as redes sociais nem sequer eram cogitadas, o filme americano
Denise Calls Up (Denise Está Chamando) já apresentava uma crítica às relações
estabelecidas entre as pessoas através dos recursos da época: computador,
telefone e aqueles enormes celulares. Os personagens eram alguns amigos que se
comunicavam continuamente, mas tinham muitas dificuldades e até mesmo aversão
de se encontrar pessoalmente. Também namoro e sexo aconteciam virtualmente.
Nunca me esqueci desse filme, impressionada que fiquei com a
possibilidade, hoje tão iminente, de mutações essenciais nas condições de nossa
existência. O que aconteceria conosco se não precisássemos mais da proximidade
física de uns com os outros? O que morreria em nós, se essa proximidade
deixasse de acontecer?
Quando Hannah Arendt, pensadora contemporânea da política,
analisou os totalitarismos do século passado, apontou para o projeto desses
sistemas de tornarem os homens supérfluos. Para tanto, entre outros
expedientes, mantinham as pessoas isoladas umas das outras.
Separavam-nas de seus familiares, de suas comunidades, inclusive
das pessoas com quem coabitavam nos galpões dos campos de concentração,
instaurando entre elas a suspeita e o medo de delações. Isolavam classes
sociais promovendo contendas e animosidades entre elas. Isolavam as pessoas do
seu próprio eu, exaurindo-as com trabalho e mantendo-as doentes e famintas. O
isolamento torna os indivíduos manipuláveis e controláveis, como coisas. Os
sistemas totalitários sabem muito bem que, isolados, os homens perdem a
capacidade de se expor e de agir.
Na nossa atualidade o isolamento tem um perfil diferente,
porque é mais voltado para a intensificação do individualismo, cujos interesses
afastam-se a cada vez mais das questões sociais. As recentes manifestações
populares embora devam sua ocorrência às redes sociais, mantêm o caráter do
individualismo e do isolamento, pois os participantes não criam vínculos entre
si. Expressam suas opiniões, caminham juntos, mas é só isso.
Arendt tem por pressuposto de suas análises a condição
humana da pluralidade, ou seja, o fato de vivermos entre homens e jamais
chegarmos a ser nem um ser humano nem mesmo os indivíduos que somos longe da
companhia dos outros. Os outros, tanto quanto o ambiente em que vivemos, nos
constituem, daí que, se o distanciamento interpessoal for se estabelecendo como
nova condição de existência, nossa própria humanidade poderá sofrer o impacto
de uma mutação.
Os próprios equipamentos para acesso às redes, que estão
conosco o tempo todo e exercem intenso fascínio sobre nós, corroboram com esse
isolamento. Tenho ficado irritada com muitos de meus alunos que ficam
consultando seus celulares e notebooks durante as aulas, como se estivessem
fazendo anotações, mas acho que estão ligados às redes sociais. Talvez as
aulas, sobretudo as de Filosofia, sejam muito chatas. Nelas não se pode pular
de um assunto para outro, nem entrar em contato com múltiplas informações ao
mesmo tempo, como se faz nas telas do computador, nem ficar livre de esforços
do pensamento com análises e reflexões. Nas aulas não se pode passar por alto
dos assuntos e situações.
Já em 1927, em seu livro Ser e Tempo, Martin Heidegger
percebia esse comportamento cotidiano dos indivíduos de tomar tudo pelo aspecto
e o nomeou de “avidez de novidades”. O que interessa é sempre a próxima
novidade, o próximo assunto, a próxima notícia... Também identificava como
“falação” um comportamento complementar: todos falam sobre tudo, sabem de tudo,
mas não compreendem nada em profundidade.
Parece que “falação” e “avidez de novidades” estruturam a
participação nas redes sociais. As pessoas já estão acostumadas a comentários
rápidos e superficiais sobre tudo e todos. É fácil ver nesses comentários a
preocupação de cada qual em simplesmente dar sua opinião, mais do que ouvir a
alheia. A opinião do outro é apenas a oportunidade para se expressar a sua
própria.
O outro parece importar, mas de fato não importa. Importam
apenas a própria posição e a autoexposição. Daí a constante informação sobre as
viagens, os pensamentos, as emoções, as atividades de alguém. É preciso estar
em cena e sempre. Há nisso um evidente desenvolvimento do narcisismo e,
consequentemente, do reforço do distanciamento entre as pessoas.
Faz parte desse narcisismo o fato de as pessoas terem de
tratar a si mesmas como se fossem mercadorias. Em alguns de seus escritos,
Zygmunt Bauman tem apontado para a necessidade das pessoas, sobretudo dos
jovens, de se ocuparem sobremaneira com sua imagem nas redes sociais. Elas
precisam escolher as fotos que melhor as apresentem, que as tornem atraentes e
desejáveis. Aquelas que não souberem se vender correm o risco da invisibilidade
e da exclusão.
Meu propósito, aqui, foi apenas o de levantar dados para uma
reflexão. Mas quero acentuar que essas tendências das redes sociais – a
virtualidade, o distanciamento, a superficialidade, a superfluidade do ser
humano, a exposição narcísica, a ilusão de intimidade e popularidade, a
“falação” e a “avidez de novidades”... – constituem o padrão de isolamento das
relações pessoais. E quanto mais isolados, mais ficamos à mercê de controles e
manipulações. Cada vez mais ameaçados na autoria do nosso destino pessoal e
político.
Foto e texto reproduzidos do site: cartanaescola.com.br
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