Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 13
de agosto de 2021
Hannah Arendt e a arte: imaginar e compreender.
Ensaio de Adriana Novaes, publicado pelo Estado da Arte:
A arte e a cultura são fundamentais para a formação de
qualquer indivíduo. Não para servir de reserva de citações, o que é uma bobagem
e uma farsa. A arte e a cultura são insubstituíveis no modo como contribuem
para ampliar o mundo, compreender sensações e situações de si mesmo e,
principalmente, dos outros. As linguagens formulam múltiplos cenários e vozes.
Quando prestamos atenção em como a arte e a cultura foram vivenciadas por uma
pessoa intelectualmente criativa, temos clareza dessa relevância e renovamos a
confiança na riqueza da companhia de artistas e obras nas nossas vidas, porque
despertam e provocam nossa imaginação e assim estimulam a consciência de nossas
capacidades de compreender e de enfrentar a dureza, a baixeza e a mentira de
tempos perversos. A seguir, algumas observações sobre a arte na vida e no
pensamento de Hannah Arendt.
O pai de Arendt passou boa parte da infância dela doente.
Seu avô paterno, Max Arendt, tentava suprir essa ausência, levando a menina
para passear e lhe contando histórias. Ela perdeu o pai e o avô em 1913, aos
sete anos. Mesmo demonstrando uma serenidade própria das crianças, ao dizer
para a mãe que não fazia sentido pensar demais em coisas tristes, essa solidão
marcaria sua vida. Aos cinco anos já lia e escrevia sem grandes dificuldades.
Na juventude, adorava poesia e sabia de cor vários versos em sua língua
materna, o alemão. Adorava Heine, Goethe, Rilke, Hördelin. Entre os 14 e 16
anos, também leu Immanuel Kant e Soren Kierkegaard, e criou com colegas um
grupo de tradução da língua grega.
Hannah e o avô
Hannah Arendt era judia, mas sua família não era religiosa.
Seus pais eram socialistas. Aos nove anos, foi levada pela mãe para ver e ouvir
Rosa Luxemburgo. Gostava de conversar com um rabino, que respondia suas perguntas
provocadoras. Ao mesmo tempo, Arendt frequentava uma escola dominical cristã.
Segundo uma grande amiga, Anne Mendelssohn, os colegas comentavam que Arendt
havia lido tudo. Inteligente, era firme e assertiva, tendo sido expulsa da
escola por liderar uma revolta contra um professor. Estudou para o exame alemão
de admissão na universidade, o Abitur, com o auxílio de um professor
contratado. Passou, conseguindo o acesso antes de sua turma. Para cursar a
universidade, teve bolsas e contou com a ajuda de um tio. A esposa desse tio
lhe emprestava livros, romances alemães, franceses e ingleses.
Na universidade, longe de casa, Arendt também escreveu
poesia.[1] Em seus versos misturam-se solidão, ironia, a aceitação das
ambiguidades e a clareza de ser uma pária consciente, como Rahel Varnhagen, de
quem escreveu uma biografia anos depois.
Meus pés flutuam em glória solene.
E eu, eu estou
Dançando também.
Liberta da carga —
Para a escuridão, para o vácuo.
Aposentos cheios de passados,
Espaços atravessados
E solidões perdidas
Estão começando a dançar, a dançar.
E eu, eu estou
Dançando também.
A temeridade irônica
Eu não esqueci.
Conheço o vácuo,
Conheço a carga.
Mas eu danço e danço
Em irônica glória.[2]
Como afirma sua mais importante biógrafa, Elizabeth
Young-Bruehl, seus poemas não são necessariamente bons, não possuem uma
originalidade especial, mas esclarecem um estado de espírito, uma consciência
da passagem do tempo, a existência do curso da vida, como também se nota em
Kierkegaard. A ironia, a ambiguidade, o sentimento dolorido do tempo vão
conduzi-la à “dança” dos conceitos, à filosofia. Como belamente conclui
Young-Bruehl, Arendt poderia fazer suas as palavras de Kierkegaard: “Eu me
preparei… para ser sempre capaz de dançar a serviço do pensamento”.
O antissemitismo, o nazismo e a Segunda Guerra Mundial
fizeram com que Arendt se tornasse apátrida, fugitiva, prisioneira, refugiada,
sobrevivente. É divertida, apesar do contexto, sua referência à ajuda das
histórias policiais de Simenon para que ela e o segundo marido conseguissem
escapar da perseguição da polícia francesa, na jornada de fuga do nazismo pela
Espanha até Portugal, onde esperaram três meses pela autorização para seguirem
de navio até Nova York. Bérénice Levet, em seu livro Le musée imaginaire
d’Hannah Arendt: parcours littéraire, pictural, musical de l’oeuvre, examina a
dinâmica entre arte e pensamento na obra de Arendt. Por um lado, a potência da
literatura e da arte em geral para concentrar a explicação de um determinado
tema. Por outro, o mote para a formulação conceitual. Ela destaca o relato que
Arendt faz, em carta ao marido, de seu insight ao assistir à apresentação do
oratório Messias, de Georg Friedrich Haendel, uma espécie de revelação do
sentido metafísico do nascimento, fundamental para elaborar o conceito de
natalidade, um dos mais importantes de sua obra. Na base da formação para
identificar essas possibilidades da arte, o fascínio pela contação de
histórias.
A ajuda das histórias é cara a Arendt. Era preciosa para ela
a frase de Isak Dinesen (nome masculino e sobrenome de solteira de Karen
Blixen), usada como epígrafe do Capítulo V Ação, do livro A condição humana,
talvez um dos trechos mais importantes de sua obra. A frase “Todas as tristezas
podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história
sobre elas” é destacada no ensaio dedicado à autora no livro Homens em tempos
sombrios, como uma exaltação da arte de contar histórias, arte que ela diz ter
salvado o amor e a vida de Isak Dinesen e que talvez tenha salvado Arendt e
talvez possa nos salvar, assim como, conceitualmente, ao preservar fatos,
proporcione a valiosa conservação da verdade para além das vilanias cometidas
no abuso das mentiras, sobre o que Arendt também escreveu. Para ela, aqueles
que contam histórias — jornalistas, historiadores e escritores — salvam os
acontecimentos e garantem a chance de utilizarmos os fatos para a compreensão
de nossa realidade e a projeção do futuro. As histórias, portanto, cumprem o
papel de registrar, preservar, para entender, suportar e, se for o caso,
perdoar, concedendo a chance de seguir em frente. É um tipo de perseverança, de
confiança na vida, na experiência real de nos mostrarmos dignos dela, assumindo
sua crueza, abraçando seus testes. Contar histórias significa estar vivo
plenamente.
A arte se tornou, diante da lógica de progresso da
modernidade que reduziu a ação apenas ao trabalho garantidor da sobrevivência,
a única possibilidade de duração e permanência e, tomando a Crítica da
Faculdade de Julgar, de Immanuel Kant, que é uma crítica do gosto, o caminho
pelo qual seria concebível para Arendt uma compreensão da política resgatando
seu sentido básico de bem comum. A política havia perdido seu significado de
acordo entre plurais, colocando em risco o entendimento em relação aos outros,
a consciência da vida em conjunto que exige o olhar a partir dos outros com os
quais convivemos. O interesse próprio sendo colocado de lado em nome do
equilíbrio e exercício da capacidade de escolha com outros, para Kant, poderia
tornar viável a mentalidade ampliada, a vida de escolhas em comum. Para Arendt,
esse raciocínio servia à reconsideração da política: a mentalidade ampliada,
que é a disposição de olhar para o mundo a partir de perspectivas diversas, e o
sentido comum (sensus communis) serviriam à recuperação da política como
experiência viva admitida na dinâmica da vida da mente, isto é, nas relações
entre pensamento, vontade e juízo.
Arendt cita várias vezes personagens de Shakespeare como
alegorias, por exemplo, do enfrentamento consigo mesmo no final de Ricardo III,
do mal encarnado no invejoso Iago, de Otelo, e do dever filial em Rei Lear,
este citado por Thomas Jefferson como uma lição mais clara do que a encontrada
em livros de ética. A parábola “Ele”, de Franz Kafka, é destacada por Arendt
como a “única descrição exata da crise” em que o ser humano se encontra na
modernidade, cuja essência está no aforismo de René Char, também muito repetido
por Arendt: “nossa herança nos foi deixada sem testamento algum”. A parábola
traz uma metáfora do ego pensante que quer fugir da pressão entre o passado e o
futuro. As tantas referências de Arendt à capacidade esclarecedora da
literatura, da poesia, são mais um traço aristotélico de seu pensamento, além
da constante atenção às distinções, admitida por ela mesma.
Arendt tinha uma predileção por Homero e Franz Kafka,
fazendo várias referências a ambos em seus textos. Destacou a imparcialidade de
Homero que cantou as palavras e os feitos de Aquiles, assim como as palavras e
os feitos de Heitor. No início de sua vida nos Estados Unidos, a partir de
1941, trabalhou em instituições judaicas e na editora Schocken, onde tentou
publicar textos de Walter Benjamin e foi responsável pela edição de obras de
Kafka, em especial seus Diários. Conheceu T.S. Eliot, tornou-se amiga de
Hermann Broch e de Randall Jarrell. Arendt escreveu muitas resenhas de livros.
Tratou de Fiódor Dostoiévski, Nathalie Sarraute, William Faulkner e René Char.
Admirava Albert Camus. No texto “The Jew as Pariah: A Hidden Tradition”, de
1944, reconheceu Charles Chaplin, Heinrich Heine, Bernard Lazare e Franz Kafka
como judeus que definiram e defenderam o pária como tipo humano, personificando
a emancipação através dessa figura como o excluído da sociedade que deve se
responsabilizar e tomar sua condição como um fator relevante e político, o
outsider sempre suspeito, aquele que aspira a uma vida normal. O pensamento era
a arma de resistência, como o personagem K. de O castelo, de Kafka, que insiste
em distinguir o certo do errado e se nega a ver seus direitos como privilégios.
O pensamento como arma é tomado nesse texto como resistência à assimilação, à
diluição de características essenciais formativas em qualquer contexto que
oferecesse um “lugar” para os judeus. A resistência significava afirmar a
lembrança da origem. Ao se ver diante da conivência assustadora de colegas com
o antissemitismo crescente no início dos anos 1930, ou seja, ao se ver
perseguida por ser judia, decidiu responder a partir dessa sua identidade,
aproximando-se do movimento sionista, o que causou sua prisão em Berlin. Mesmo
que tivesse que escrever em inglês por ter se estabelecido nos Estados Unidos —
e para tanto contou com a ajuda de amigos, em especial da escritora
norte-americana Mary McCarthy —, Arendt fazia questão de não se esquecer do
alemão, sua língua materna, garantia de espontaneidade, fonte da vida
espiritual e da ação.
Hannah e McCarthy
No já citado Homens em tempos sombrios, Arendt elaborou os
perfis de alguns artistas: além de Isak Dinesen, Hermann Broch, Bertolt Brecht e
Randall Jarrell. São retratos generosos destes que pensaram e agiram
corajosamente, resistindo como podiam a um tempo brutal, desumano. O título do
livro é tomado da poesia de Brecht. Arendt trocou comentários com Gershom
Scholem sobre a vaidade do dramaturgo e defendeu sua poesia em discussões com
Karl Jaspers, sem conseguir convencê-lo. Brecht havia apoiado Stalin, o que
Arendt relativiza ao destacar, em contrapartida, a condenação que ele faz em
várias de suas peças da piedade como distorção do bem: o uso por poderosos do
sofrimento das pessoas ao invés do devido compromisso de combate efetivo aos
males que causavam tantas penas. Arendt faz uma ponte com Maquiavel — esse
pensador tão mal compreendido, que particularmente admirava — e sua repreensão
da bondade do governante. O alvo de Maquiavel é a bondade de fachada. Ela o
identifica como o pai da revolução por não conceber o conflito como
necessariamente destrutivo, mas sustentável, na medida em que mantém a chama do
espírito revolucionário, garante o caráter espontâneo, participativo,
inspiração para a democracia. Segundo Arendt, Brecht combateu essa bondade de
fachada, essa perversidade, e é isso que precisa ser lembrado de sua grande
obra.
Arendt incorporava em seus cursos a diversidade da
literatura ficcional como fonte para a compreensão. Na bibliografia de alguns
deles como “Contemporary Issues”, ministrado na Universidade da Califórnia,
Berkeley, em 1955; “Political Experiences in the Twentieth Century”, na
Universidade Cornell, em 1965, e na New School, em 1968; e “Basic Moral
Propositions”, na Universidade de Chicago, em 1966, estão contos de William
Faulkner, poemas de Bertolt Brecht e de René Char, peças de William
Shakespeare, romances de Ernest Hemingway, Albert Camus, Boris Pasternak, Fiódor
Dostoiévski, Herman Melville, Czeslaw Milosz e George Orwell. O trabalho
proposto aos alunos dos cursos de 1955 e de 1965 não foi nada convencional,
para deleite de muitos historiadores. Arendt pediu para que eles criassem um
personagem nascido em 1890, que tivesse lutado na Primeira Guerra, se tornado
um revolucionário de esquerda ou de direita e participado da Segunda Guerra
Mundial. Na solidão, experiência das massas, como seria o mundo desse
personagem? O relato não deveria ser pessoal e não se tratava de como o aluno
se sentia ou de como a outra pessoa se sentia, mas de como o mundo parecia a
esse personagem. Arendt queria que os alunos desenvolvessem a imaginação
política, porque a imaginação é pré-requisito da compreensão.
Por fim, novamente a poesia de Arendt, reiterando o
significado da arte, da poesia, da música, da literatura, do teatro: contar
para registrar, suportar e seguir; imaginar para compreender; buscar iluminação
nas vidas e obras dos inquietos, dos felizes que em tempos de sombras veem um
lar em seus sonhos.
A tristeza é como uma luz
que arde no coração.
A escuridão é uma brasa
que vasculha nossa noite.
Precisamos apenas acender
a pequena chama triste
Para encontrar o caminho de casa,
como sombras, através da longa,
vasta noite.
A floresta, a cidade, a rua,
a árvore, são luminosas.
Feliz é aquele que não tem lar;
ele ainda o vê em seus sonhos.
Notas:
[1] Há uma edição espanhola de seus poemas. Uma edição
brasileira está no prelo.
[2] Reproduzido por Elizabeth Young-Bruehl, p. 54-55.
Referências
ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e
totalitarismo. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008.
________. A condição humana. 11.ed. Revisão e apresentação
Adriano Correia. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.
________. Entre o passado e o futuro. 4.ed. Tradução Mauro
W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1997.
________. Homens em tempos sombrios. Tradução Denise
Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
________. The Jewish Writings. Ed. Jerome Kohn, Ron H.
Feldman. New York: Schocken, 2007.
________. Pensar sem apoios: Compreender 1952-1975.
Organização Jerome Kohn. Tradução Beatriz Andreiuolo, Daniela Cerdeira,
Virginia Starling e Pedro Duarte. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
________. Rahel Varnhagen: A vida de uma judia alemã na
época do Romantismo. Tradução Antônio Trânsito e Gernot Kludash. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1994.
ARENDT, Hannah; BLÜCHER, Heirich. Within Four Walls: The
Correspondence Between Hannah Arendt and Heinrich Blücher, 1936-1968. Ed. Lotte
Kohler. New York: Hartcourt, 1996.
ARENDT, Hannah; JASPERS, Karl. Hannah Arendt/Karl Jaspers
Correspondence, 1926-1969. Ed. Lotte Kohler and Hans Saner: New York: Harcourt,
1992.
ARENDT, Hannah; MCCARTHY, Mary. Entre amigas: a
correspondência de Hannah Arendt e Mary McCarthy, 1949-1975. Ed. Carol
Brightman. Tradução Sieni Campos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.
ARENDT, Hannah; SCHOLEM, Gershom. The Correspondence of
Hannah Arendt and Gershom Scholem. Ed. Marie Luise Knott. Chicago: The
University of Chicago Press, 2017.
ARISTÓTELES. Poética. Edição bilíngue. Tradução Eudoro de
Souza. São Paulo: Ars Poética, 1993.
LEVET, Bérénice. Le musée imaginaire d’Hannah Arendt:
parcours littéraire, pictural, musical de l’oeuvre. Paris: Stock, 2011.
YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Por amor ao mundo: a vida e a obra
de Hannah Arendt. Tradução Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1997.
Os cursos ministrados por Hannah Arendt estão disponíveis
em: Hannah Arendt Papers, Available Online | Library of Congress
Adriana Novaes é pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e autora de "O canto de Perséfone" e "Hannah Arendt no século XXI: a atualidade de uma pensadora independente".
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com
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