sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Dinheiro ou propósito?


Publicado originalmente no site da REVISTA FAAP

Dinheiro ou propósito?

Por Ariane Abdallah e Marcela Bourroul

Colaborou: Bruna Galati

Foto: Alex Batista

PARA RUBEM ARIANO, É POSSÍVEL CONCILIAR AS DUAS COISAS. FORMADO EM ADMINISTRAÇÃO PELA FAAP, ELE ABRIU MÃO DE UMA CARREIRA BEM SUCEDIDA NO MERCADO FINANCEIRO PARA CRIAR UM INSTITUTO QUE CONECTA MÉDICOS A QUEM NÃO PODE PAGAR PELA CONSULTA

Rubem Ariano cresceu em Lins, interior de São Paulo, ouvindo do pai que se fosse corretor de café e falasse inglês, ganharia em dólar – e isso sim, seria sucesso. Ao pai, que era corretor de café, só faltou falar inglês. Filho também de uma terapeuta ocupacional, o garoto, que sonhava ser médico para ajudar as pessoas, aprendeu inglês e, sem se dar conta, acabou seguindo o conselho do pai. Foi parar no mercado financeiro, desenvolvendo justamente a área que atendia o mercado internacional. Dezoito anos depois, se aproximou do sonho de origem: a medicina. Fundou o instituto Horas da Vida, projeto que permite que profissionais da saúde, como médicos e psicólogos, doem horas de atendimento a pessoas que não têm condições de pagar pelo serviço. Mais de 70 mil pessoas já foram impactadas. Rubem é ex-aluno de Administração da FAAP e foi um dos convidados do evento Revista FAAP Ao Vivo. Ele falou sobre dinheiro e propósito e como busca conciliar os dois nessa jornada de impacto social.

Por que, após 18 anos no mercado financeiro, você decidiu fazer algo totalmente diferente da sua vida?

Eu tinha uma sensação de dever cumprido, como se aquele ciclo tivesse terminado. Ao mesmo tempo, sentia uma gratidão e uma responsabilidade de devolver de alguma forma a sorte que eu havia tido no meu caminho até ali. Mesmo sem saber muito bem como, algo me puxava para criar um trabalho que tivesse mais sentido para mim. Decidi mudar de vida no fim de 2009.

No que baseou essa transição profissional? Conhecia outras empresas de impacto?

Não sabia quase nada sobre o assunto. O que eu tinha era o exemplo da minha família. Sempre ajudamos as pessoas ao redor. Lia sobre algumas iniciativas, mas a ideia sobre o que fazer só ficou mais clara para mim em 2010, durante o meu período sabático. Então, passei a procurar oportunidades que de fato trouxessem um benefício para a sociedade. Quando defini o setor, resgatei a inspiração que tive dentro de casa, de ajudar os outros, para criar o modelo do Horas da Vida, que é único.

Teve um momento específico em que você sentiu aquele frio na espinha, percebendo que alguma coisa precisava mudar?

Sim. Lembro de uma cena, depois que vendemos a Hedging-Griffo, empresa em que eu trabalhava, para um banco. Comecei a perceber que eu não fazia mais parte daquele ambiente e um dia, caminhando pelo corredor, parei em frente à janela e fiquei alguns minutos olhando para o lado de fora. Via a vida passando a 1 milhão de quilômetros por hora e pensei que não podia ficar trancado do lado de dentro. A partir daquele dia, meu incômodo aumentou muito e se tornou urgente resolver esse desconforto.

O que foi mais difícil nesse processo de mudança de carreira?

Eu achava que não sabia fazer nada além de trabalhar no mercado financeiro e, por um acordo que eu havia feito, não poderia trabalhar em nenhuma outra empresa desse setor. Tive muito medo, mas a vontade de fazer algo com mais sentido era tanta que juntei coragem para arriscar.

E como foi a reação da sua família e dos seus amigos, quando você falou que deixaria uma carreira segura?

Minha família teve certeza de que eu estava louco. No começo teve muito questionamento. Tinha 36 anos, trabalhava numa gestora super-conhecida e de repente resolvi ir embora. Acho que muitas pessoas próximas ainda me acham louco, apesar de sempre me apoiarem. Existem outras formas de ajudar, não necessariamente é preciso montar uma ONG ou uma empresa que vise o impacto social. Então, eu poderia ter continuado no mercado financeiro e começado a me dedicar mais às pessoas que precisam. Mas eu queria atuar no dia a dia. Depois de um tempo, minha família viu que estávamos causando bastante impacto na vida das pessoas, e isso não tem preço.

O que foi mais difícil para você?

O mais difícil foram os primeiros dias do lado de fora. Eu não sabia o que fazer sem precisar trabalhar na rotina das 8 às 20 horas. Me senti como se estivesse em uma crise de abstinência. Decidi tirar um ano para cuidar de mim, desconectar e refletir, mas as primeiras semanas foram um desafio. Foi uma ruptura drástica.

Quais eram os sintomas dessa crise de abstinência?

De vez em quando eu lia jornais escondido, para saber as notícias da semana. Mas aí eu me sentia mal, porque não estava cumprindo o que tinha combinado comigo mesmo. Por isso resolvi viajar. Passei um mês em Londres e outro na Mongólia, sozinho. Chorei muito. Especialmente na Mongólia, foi um período de muita reflexão. Fiquei bastante isolado e foi muito impactante para mim.

Por que Londres e Mongólia? E o que cada um desses lugares trouxe para você?

Tinha alguns amigos que moravam em Londres e a cidade é muito bem posicionada geograficamente, com acesso para qualquer lugar do mundo. Por isso pensei em começar por lá. A Mongólia eu escolhi pela história e pela paisagem. Era um lugar pouco explorado e acreditava que seria interessante para fazer uma reflexão. Foi um desafio. A comunicação era precária, porque eu não sabia a língua deles. Dos 30 dias que passei na Mongólia, fiquei dez no meio da montanha, isolado, praticamente sem conversar. O frio era duro, o povo é lindo, só coração, mas muito diferente da gente.

O que sentiu lá?

Uma sensação de gratidão por ter tido a felicidade de nascer na família em que nasci e ter feito parte de histórias legais. Sentia uma vontade grande de devolver um pouco da minha sorte para a sociedade, mas não sabia bem como, o que era um inconveniente e me causava uma combinação paradoxal de sentimentos. É muito difícil não saber o que fazer. Ainda mais sentir que não sabe fazer mais nada além de trabalhar no mercado financeiro. Era uma mistura de felicidade, gratidão e dúvida. Talvez uma boa palavra para definir seja: angústia.

“Trabalhava numa gestora de investimentos super-conhecida e de repente resolvi ir embora. Para mim, o mais difícil foram os primeiros dias do lado de fora. Eu não sabia o que fazer sem precisar trabalhar na rotina das 8 às 20 horas. Me senti como se estivesse em uma crise de abstinência.”

Como foi lidar o tempo todo consigo mesmo, com a solidão? Você tinha ferramentas de autoconhecimento?

Não tinha as ferramentas. Na verdade, era o oposto. Eu trabalhava para mercados internacionais, então muitas vezes eu ficava ligado à noite para falar com pessoas na Ásia e na Europa. Minha vida pessoal também acabou ficando assim, seguindo o ritmo da profissional. Hoje eu tenho mais consciência da necessidade de autoconhecimento. Carrego ainda o hábito de ficar em silêncio, o que é muito desafiador. Pratico meditação. Quando faço exercício, como correr, procuro ficar longe e desconectado do celular. Isso tem se tornado cada vez mais habitual.

Como nasceu o Horas da Vida? Por que você escolheu o setor de saúde?

Eu já gostava de olhar para a área de saúde quando trabalhava com gestão de fundos de investimento. Via como uma atividade que traria algum impacto direto para o ser humano, mas no mercado financeiro considerava apenas oportunidades para investir.

Em 2011, comecei a estudar possibilidades de atuação e me associei com um médico para fazer uma startup de agendamento de consultas. Naquele momento pensamos: será que esses profissionais da saúde que estão dentro da nossa empresa, atendendo pacientes no dia a dia, não gostariam de doar parte de suas horas para atender quem não pode pagar? Ligamos para meia dúzia de amigos médicos e quando percebemos, havíamos nos tornado um grupo de conexão entre quem precisa de atendimento e quem quer doar tempo para ajudar. Não houve um planejamento, apenas a vontade de fazer alguma coisa que tivesse impacto.

Algumas pessoas que trabalharam com você no mercado financeiro agora estão junto no projeto. Como é essa relação?

Eu tenho muitos amigos do mercado financeiro que apoiam o Horas da Vida ou se tornaram sócios da Filoó – a plataforma de saúde que criamos, anos depois, para escalar o impacto social do Horas da Vida. Ela possibilita acesso a saúde de qualidade por preços que cabem no bolso. Comecei me inspirando em pessoas com quem trabalhei e que praticavam filantropia, e hoje vejo essas e outras pessoas participando do projeto, o que é muito legal.

Como foi sair de um modelo de vida sem tempo para nada e de repente ter tempo de sobra?

Não foi 100% fácil lidar com isso. Foi desafiador, especialmente no começo. Se você está em qualquer mercado, é fácil ficar completamente envolvido e absorvido pelo trabalho. A felicidade que muitas pessoas têm é grande, mas restrita a determinados períodos fora do trabalho. Quando toma uma decisão como a que tomei, a felicidade passa a ser diluída todos os dias, o dia todo.

Não é todo mundo que sabe lidar com esse excesso de tempo e tudo fica meio sem graça.

Foi o que aconteceu com você?

Não, porque me ajudou muito o fato de perceber que queria fazer algo com propósito. Mas vi pessoas tendo crise de depressão, de pânico. Porque precisam ter motivação, se sentir produtivas.

O que é o sucesso para você hoje? E o que considerava sucesso antes?

Quando era estudante da FAAP, o sinônimo de sucesso para mim era trabalhar no mercado financeiro. Uma vez nele, passou a ser trabalhar no mercado internacional. Então, tive também uma satisfação muito grande por conseguir o que queria. Hoje o sucesso para mim são duas coisas combinadas: o impacto social (sentir que eu estou fazendo diferença na vida das pessoas) e conseguir ter paz interior.

Qual foi o momento mais marcante que você viveu no Horas da Vida?

O que tive com o Micael. Um menino de 9 anos que conheci no primeiro mutirão de oftalmologia que a gente fez pelo Horas da Vida. Ele era considerado autista, sofria bullying, não conseguia passar de ano na escola. O pedido que chegou no projeto era para ele passar em um neurologista ou psiquiatra. Mesmo assim, indicamos o Micael para o mutirão de oftalmologia. Descobrimos que ele tinha 9 graus de miopia. Todo o seu problema é porque ele não enxergava nada. Mas, na verdade, essa história fez eu me dar conta de que era eu que não enxergava nada até criar o Horas da Vida. No fim do mutirão, quando estávamos colocando as crianças de volta no ônibus, esse menino veio e me deu um abraço na cintura. Eu comecei a chorar naquele momento. Ali caiu a minha ficha do que estávamos fazendo.

Quais são os seus planos para o futuro, tanto para você quanto para os negócios de alto impacto?

Eu tenho uma missão, que é levar saúde para o maior número de pessoas que eu conseguir. Essa combinação de impacto social com o sucesso da Filoó é um caminho sem volta. Quero fazer isso para o resto da minha vida. Estar presente em algo que traga impacto na vida das pessoas.

O que dinheiro não compra?

Paz.

Texto e imagem reproduzidos do site: revista.faap.br

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