Polaca sendo leiloada - Crédito: Divulgação
REGISTRO de publicação feita em 12/10/2019 no blog.bemglo.com
Publicado originalmente no Blog BEMGLO, em 12 de outubro de
2019
[IN]VISÍVEIS – Polacas, Memória e Resistência
A história oculta das mulheres judias prostitutas em São
Paulo
Inaugura na última semana do mês em São Paulo uma exposição
que resgata uma história que tem origem no século passado e ecoa até hoje na
comunidade judaica da cidade. “[IN]VISÍVEIS – Polacas, Memória e Resistência”,
das artistas Eva Castiel, Fanny Feigenson e Fulvia Molina, recupera a história
de mulheres judias trazidas para a América do Sul em um esquema de exploração
sexual e tráfico humano. A mostra promove um resgate histórico de memórias que
têm sido submetidas a um processo de apagamento, estigmatização e soterramento
há décadas.
Composta por uma grande instalação multimídia interativa,
vídeos e fotografias, o projeto também apresenta debates, depoimentos,
performances e visitas guiadas nas ruas do Bom Retiro onde viveram as polacas.
O painel de debates reúne, além das artistas, pesquisadores como Enio Rechtman,
Moisés Rabinovicci, Paula Janovitch e Márcio Seligmann-Silva. Mas, para
entender a origem de “[IN]VISÍVEIS – Polacas, Memória e Resistência” é
necessário voltar no tempo para contextualizar essa história que é pouco
conhecida dos paulistanos. A existência das polacas em São Paulo foi apagada,
esquecida e sempre foi discriminada, inclusive pela sociedade judaica
brasileira da época que não permitia a elas nem um enterro digno. Os índices
dessas memórias, suas casas, seus cemitérios, seus túmulos e suas sinagogas,
assim como suas próprias identidades foram abandonadas, deixadas à mercê do
tempo ou então descaracterizadas e refutadas por uma parcela mais tradicional
da comunidade judaica até hoje.
No começo da primeira década do século passado havia uma
cartografia do prazer em São Paulo que foi alterada pela reforma urbana que
estava em curso. As prostitutas foram deslocadas para as bordas da cidade e os
bordéis ficaram confinados principalmente no bairro do Bom Retiro, no qual
havia uma grande concentração de imigrantes judeus nesta época, notadamente
próximo às estações ferroviárias da Sorocabana e Santos-Jundiaí. Eram judias
nascidas no Leste Europeu, de países como Polônia, Hungria, Rússia e Ucrânia, e
conhecidas como polacas; pobres em sua maioria, quase sempre analfabetas e sem
dote para um bom casamento. Saíram de seus países ameaçadas por ondas de
anti-semitismo, sem perspectivas, e acabaram recrutadas por cafetões, muitos
também judeus. Eram jovens mulheres recrutadas e sujeitas a diversos tipos de
violência e humilhação. Excluídas da sociedade, longe dos familiares e com
poucas perspectivas de vida. É preciso lembrar que nas décadas de 1930 e 1940 a
situação dos judeus na Europa era dramática. Milhões de homens, mulheres e
crianças foram assassinados pelo genocídio nazista, e sobreviver neste
universo, não importando como, já era uma grande vitória.
Estabelecidas na cidade, as polacas atuaram – além da região
do Bom Retiro – também na Santa Ifigênia, ambas conhecidas na década de 1920
como a zona de baixo meretrício, a chamada “zona de confinamento da
prostituição”, perímetro traçado no bairro do Bom Retiro e entorno nas décadas
seguintes, até 1950, onde era permitida a prática da prostituição. Mas a
dimensão trágica dessa história remonta ao século 19 com a vida dessas mulheres
pautada pela miséria e pela exploração desregrada daquelas que ficaram
conhecidas como “polacas”.
A partir da década de 1880 elas passaram a ser recrutadas
acompanhando a tendência geral do tráfico de mulheres nos países da Europa
oriental e da Europa mediterrânica. As polacas sintetizavam a imagem das
mulheres pobres oriundas das regiões agrícolas e industrialmente atrasadas do
continente europeu. No Rio de Janeiro e em São Paulo, o termo “polaca” remetia
comumente à figura da meretriz, não necessariamente polonesa. Entendia-se que
eram mulheres loiras ou ruivas delicadas, de olhos verdes ou azuis, vindas de
alguns países da Europa e que tornavam-se mais misteriosas e inatingíveis para
uma clientela masculina. Nos registros policiais em que apareceram, ou mesmo na
imprensa, elas não eram associadas, ao menos de uma forma direta, à figura da
prostituta judia. A maior parte das “polacas” que chegava ao Brasil vinha pela
cidade de Buenos Aires, na Argentina, conhecida entre 1880 e 1930 como o
terceiro centro do tráfico de mulheres do mundo. Era de lá que elas eram
enviadas para todo o continente sul-americano.
O rápido crescimento populacional de São Paulo foi um fator
fundamental para que as polacas se estabelecessem aqui. Na década de 1870 a
população da cidade não passava de 32 mil pessoas; 50 anos depois o número de
habitantes já chegava a quase 600 mil pessoas. A população masculina era bem maior
que a feminina, e São Paulo – assim como o Rio de Janeiro – recebia povos de
várias etnias e diversas religiões facilitado pela Proclamação da República em
1889. A imigração ocorria com menos burocracia, não só de judeus, mas também de
alemães, espanhóis e italianos, entre outros povos.
O tráfico das “escravas brancas” tornou-se um assunto
importante na comunidade judaica internacional no final do século 19, tanto que
em 1885 foi fundada em Londres a Jewish Ladies’ Society for Preventive and
Rescue Work (Sociedade de Senhoras Judias para Trabalhos de Prevenção e
Resgate), cujo objetivo era combater a prostituição e o tráfico de mulheres
judias. As primeiras 67 prostitutas judias de nacionalidade polonesa
desembarcaram no Rio em 1867 e logo foram apelidadas de “polacas”. No decorrer
dos anos seguintes chegaram centenas de outras que, nas cinco, seis décadas
subsequentes estabeleceram-se no Rio, em Santos e em São Paulo.
Tanto no Rio quanto em São Paulo havia uma organização de
cafetões que definia as regras de participação no negócio controlando desde os
casamentos que deveriam realizar, os lugares onde deveriam recrutar as moças,
os preços a serem pagos à família e a quantia em dinheiro que deveria ser
entregue à polícia como forma de suborno. A maior parte destas mulheres foi
forçada a se prostituir pela Zwi Migdal, uma organização criminosa baseada em
Varsóvia, que operou até a década de 1930. Seus agentes viajavam pelas
empobrecidas aldeias judaicas da Europa Oriental afirmando serem comerciantes
bem estabelecidos na América do Sul em busca de casamento. A ilusão da cidade
grande obrigava pais a venderem suas filhas para os mercadores de prazer de
modo a garantir sua sobrevivência, sobretudo na Europa oriental e
mediterrânica, agrária por excelência. No caso dos judeus, o quadro se agravava
pelos diversos pogroms efetuados, espalhando o terror e a miséria pelas
comunidades judaicas. Uma vez no Brasil (ou na Argentina, onde a organização
teve atividade mais intensa), tendo perdido sua virgindade, não conhecendo o
idioma local e nem possuindo qualquer habilitação profissional, seu destino
estava selado. As autoridades locais eram complacentes com a organização em
função dos subornos recorrentes.
As mulheres, os traficantes e os cafetões da Zwi Migdal eram
marginalizados pelo restante da comunidade judaica que fazia vistas grossas à
atividade. Tanto, que nem sequer era permitido que ao falecerem elas fossem
sepultadas nos mesmos cemitérios que os demais judeus. Também não era permitido
às polacas que frequentassem as sinagogas. Embora todos na comunidade soubessem
que os cafetões estavam entre os principais patrocinadores do teatro iídiche
nas décadas de 1910 e 1920, especialmente no Rio de Janeiro. As polacas
adornadas com joias exuberantes e vestidos deslumbrantes eram presença
constante nos camarotes e nas primeiras filas das estreias de novas produções,
ocasião utilizada pelos cafetões para exibir suas “mercadorias”.
Na época, as polacas criaram fundos comunitários para
assistência às enfermas e velhas, construíram suas próprias sinagogas nas quais
celebravam as principais festas judaicas e adquiriram seus próprios cemitérios.
O maior, o de Inhaúma, Rio, com mais de 700 túmulos; e outros dois em São
Paulo, um no bairro de Santana, que tinha mais de 250 túmulos e foi demolido na
década de 70; e outro menor, o de Cubatão, que existe até hoje, com cerca de 80
túmulos. É nessa cidade que abriga esse pedaço esquecido da história dos judeus
no Brasil. Lá, em um cemitério em frente a uma refinaria da Petrobrás estão as
lápides e os corpos de cerca de 60 mulheres e 14 homens judeus. A maior parte
dos nomes gravados nas lápides tornou-se ilegível e a população local acredita
que o lugar é mal-assombrado. Em meio às tumbas ainda é possível encontrar
muitas adornadas com retratos impressos em porcelana com imagens dessas
mulheres.
Vale lembrar que no judaísmo, o cemitério tem uma
importância fundamentada no respeito ao corpo e possui ritualização para o
sepultamento. São considerados impuros os corpos dos suicidas e das
prostitutas, e que por isso não deveriam ser sepultados em cemitérios judaicos.
Para as polacas, no entanto, o espaço mortuário continuava a ser um local
sagrado independente de sua profissão. A importância de ter um cemitério era
mais importante do que ter uma sede social própria.
A maioria delas permaneceu na profissão até o fim de seus
dias como prostitutas e mais tarde gerentes ou proprietárias de bordéis.
Algumas deixaram suas marcas no folclore. A melodia “Judia Rara”, do sambista
Moreira da Silva, foi dedicada a sua amante Esthera Lado Konez. As últimas a morrer foram as que mais
sofreram em função da falta de recursos. Algumas tinham filhos e netos que as
ajudaram. Muitas, como a amante de Moreira da Silva, cometeram suicídio. Outras
morreram nas mais abjetas condições em sanatórios estatais para leprosos ou para
doentes mentais. A Exposição apresenta a dimensão trágica da história destas
vítimas de uma organização criminosa, “proletárias do sexo”, jovens mulheres
iludidas por aliciadores que prometiam um vida melhor no Brasil. Todas sujeitas
à marginalidade social e cuja história caiu no ostracismo sendo pouco a pouco
esquecida.
Mas agora, em “[IN]VISÍVEIS – Polacas, Memória e
Resistência”, Eva, Fanny e Fulvia resgatam essa história obnubilada pelo tempo.
E o público poderá conferir na mostra elementos físicos que remetem à ideia do
sepultamento e do esquecimento. Os visitantes também terão acesso a áudios que
resgatam as memórias dessas mulheres e apontam como seu sentido de resistência
pode se relacionar com o momento presente no qual diversos apagamentos estão
sendo engendrados pelo governo federal e servir como exemplo para futuras
gerações.
Texto e imagem reproduzidos do site: blog.bemglo.com
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