Crédito: rawpixel.com
Publicado originalmente no site da revista TRIP #285, em 2
de fevereiro de 2020
Contrato com Deus
Como Adão e Eva e as grandes corporações traduzem nossa fé
cega
Por Ricardo Guimarães
Caro Paulo,
“... Estou apenas cumprindo ordens.” Sempre que ouvi essa
frase, tive a sensação de estar assistindo ao suicídio intelectual e espiritual
de um ser humano.
Se Adão e Eva tivessem perguntado a Deus por que estavam
proibidos de comer o fruto da árvore do conhecimento, poderia ter havido uma
negociação ganha-ganha para chegar a algo que fosse bom para os quatro: Adão,
Eva, a serpente e Deus.
Mas, não, Adão e Eva não perguntaram nem cumpriram as ordens
de Deus. Foram punidos com a expulsão do paraíso, que era aquela vida boa e
medíocre, sem conhecimento, sem consciência nem responsabilidade, desde que
fossem submissos e obedientes às ordens de uma hierarquia toda poderosa,
bondosa e generosa.
O Deus daquela narrativa queria uma fé cega, tanto que o
efeito da desobediência de comer o fruto foi o casal abrir os olhos e perceber
a nudez (e a beleza do paraíso! – comentário meu, e não do narrador).
O triste é que o contrato proposto por aquele Deus no começo
dos tempos ainda está valendo e até hoje inspira muitas organizações dos mais
diferentes setores e ideologias: você obedece de olhos fechados sem perguntar
por que e, em troca, o chefe garante segurança e vida boa para sempre.
Este contrato está no cotidiano das fábricas, das lojas, das
famílias, das igrejas, dos governos, dos partidos... Esta é a explicação para
pessoas corretas fazerem coisas erradas dentro das estruturas hierárquicas
corporativas. Este é o segredo das gangues institucionais de corrupção. Esta é
a força que tem o conforto do não saber.
“Estamos vivendo uma fase de nossa história em que o grande
aprendizado será a definição do objeto de nossa fé. Eu escolho a vida e a
ciência”
Ricardo Guimarães
Não graças àquele Deus, existe a fé inquieta e insatisfeita,
curiosa e inconformada que questiona e pergunta, pergunta, pergunta, nunca para
de perguntar porque acredita de verdade que existem respostas. Digo que essa é
a fé do cientista, do artista e de todo aprendiz, a fé que faz evoluir, que
inova e move montanhas porque produz conhecimento e tecnologia para mudar o
cenário com eficiência, segurança, melhorando a vida das pessoas e do meio
ambiente.
Por quê? Por quê? Por quê?
Vejo muitas organizações frouxas e estagnadas porque a
hierarquia é respeitada demais e as pessoas se respeitam de menos. Não existe a
tensão criativa do confronto, do questionamento, da evolução. A política fala
mais alto que a ciência porque as pessoas acreditam mais na hierarquia do que
nos fatos e dados. O fluxo de informação que garante a saúde da organização é
substituído pelo silêncio conveniente ou a concordância cínica, o que leva ao
desastre inevitável.
Sugiro assistir à premiada série Chernobyl (HBO) para
entender como a política derrota a ciência. Ou veja nossos noticiários sobre
Brumadinho, Ninho do Urubu, incêndios na Amazônia, óleo no Nordeste para
entender por que o desastre acontece, mas o socorro não.
Estamos vivendo uma fase de nossa história em que o grande
aprendizado será a definição do objeto de nossa fé. Eu, humildemente, escolho a
vida e a ciência. O cientista Valery Legasov, em Chernobyl, diante dos
políticos perplexos e da imensidão do desastre, reconhece: “O átomo nos torna
humildes”. Eu concordo e algum Deus deve me abençoar por isso.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistatrip.uol.com.br
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