Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 12 de fevereiro de 2020
Boris Cyrulnik: “A desigualdade social começa nos mil
primeiros dias de vida”
Reconhecido neurologista francês, que popularizou o conceito
de resiliência, destaca o papel em nosso desenvolvimento da atenção recebida
inclusive antes de nascer
Por Marc Bassets
Há muitas maneiras de apresentar Boris Cyrulnik. É o
neuropsiquiatra que popularizou o conceito de resiliência, a capacidade de
superar as adversidades. É o autor de numerosos livros que aproximaram do
público das chaves de sua disciplina, alguns lançados no Brasil, como Autobiografia
de um Espantalho. É um homem de 82 anos marcado pelo Holocausto e a Segunda
Guerra Mundial. E é quem inspirou o presidente francês, Emmanuel Macron, em
suas políticas sobre a educação pré-escolar e a escolaridade obrigatória aos
três anos de idade.
Pergunta. Tudo se define nos seis primeiros anos, antes da
educação primária?
Resposta. Nem tudo. Se a pessoa fracassa nestes anos, ainda
pode se recuperar. Eu não fui à escola. Mas são anos em que a aprendizagem é
fulgurante e fácil: as crianças aprendem a toda velocidade porque os neurônios
estão em ebulição. Depois, pode-se continuar aprendendo, mas menos rápido.
P. O que pode dar errado nesses anos?
R. Macron disse que todos os franceses deveriam ir à escola
infantil aos três anos de idade. Tinha constatado que 93% dos meninos e meninas
já iam à escola a essa idade, mas não os filhos de pais infelizes ou com
dificuldades sociais, o que agravava a desigualdade.
P. Por quê?
R. Quando uma criança entra na escola infantil aos três
anos, se antes os pais lhe ofereceram um ambiente estimulante, a criança possui
um vocabulário de 800 a 1.000 palavras. Se entra sem ter sido socializado ou
sem ter passado pela creche, tem 200 palavras. Não entenderá a professora e
será um mau aluno.
P. Quais as consequências dessa desigualdade na raiz?
R. Hoje em dia, a sociedade seleciona por meio da escola e
do diploma: é a nova aristocracia. Já não é a aristocracia da força física nem
a dos bens ou das fábricas, que ainda existe, mas é menos importante. A nova
aristocracia é a do diploma. A partir dos três anos, as crianças que estiveram
bem acolhidas com antecedência serão os bons alunos, e as crianças mal
acolhidas acumularão tamanho atraso na linguagem que serão maus alunos, não
terão diplomas e terão dificuldades sociais, culturais, afetivas…
P. Pelo que o senhor diz, nem tudo se define entre os três e
os seis anos, mas inclusive antes.
R. Sim, a desigualdade social já começa nos primeiros mil
dias.
P. Como intervir nessa idade, quando as crianças ainda não
estão escolarizadas?
R. Agora que as mulheres trabalham e que a aldeia já não
existe mais, há crianças que vivem num ambiente pobre e que serão maus alunos.
Mas essas crianças, se as enviarmos a creches, se as acolhermos, e se acolhemos
os pais e mães infelizes, se detectarmos dificuldades psicológicas e sociais
dos pais, poderemos melhorar o nicho sensorial que cerca o bebê e haverá menos
injustiças: ao entrar na escola infantil, terá menos atraso.
P. O que fazer para atenuar estas desigualdades?
R. Se for constatado, desde antes do momento da concepção,
que a mãe tem 14 anos, que não tem emprego, que não tem família, que se droga e
vive com um amante que tem 17 anos e é delinquente e consome cocaína, então é
possível predizer que o nicho sensorial que cerca o bebê será negativo e que
haverá um atraso no seu desenvolvimento. Por outro lado, se os pais estão
acolhidos e em segurança, pode-se predizer que o bebê terá um entorno que lhe
permitirá um bom desenvolvimento. Tudo começa antes do nascimento.
P. Como garantir a existência desse entorno?
R. Detectando as gestações patológicas. Uma em cada quatro
mulheres sofre depressão durante a gravidez. Os trabalhos sobre a epigenética
mostram que quando a mãe está infeliz segrega as substâncias do estresse que
passam ao líquido amniótico, e o bebê consome quatro a cinco litros de líquido
amniótico por dia, cheio de cortisona, catecolamina e substâncias do estresse
que danificam seu cérebro. A criança chega ao mundo com o cérebro prejudicado
porque a mãe é infeliz. E as causas da infelicidade da mãe são essencialmente o
isolamento, contra o qual socialmente pode-se lutar com a família e o bairro. É
a violência conjugal, contra a qual se deve lutar. E é a precariedade social
contra a que eu gostaria que se lutasse. Se protegermos as mães, protegeremos
as crianças.
P. Como foram seus primeiros anos?
R. Nasci em 1937. Meu pai se alistou no Exército francês em
1939. Foi ferido e detido na cama do hospital pela polícia francesa, o país
para o qual combatia. Depois foi deportado e desapareceu em Auschwitz. Minha
mãe ficou sozinha, muito pobre, sem família: os homens estavam no Exército, os
jovens na Resistência, e os outros em Drancy [o campo nos subúrbios de Paris de
onde os judeus da França eram mandados para os campos de concentração e
extermínio] ou em Auschwitz. Em 1942 a Gestapo a deteve. Apesar disso, meus
primeiros anos devem ter sido fortificantes, porque conservei uma pequena
confiança em mim. Aos seis anos me detiveram e escapei. Depois me recolheram
uns justos [pessoas que desinteressadamente salvaram judeus em situação de
perigo], me senti seguro com eles e retomei o desenvolvimento correto. A irmã
da minha mãe me reencontrou depois da guerra, mas quase nunca fui à escola.
Passei num exame de acesso ao liceu [ensino médio], aceitaram-me, o que é a
prova da existência de Deus, e recuperei meu atraso e me virei.
P. Os primeiros anos, com sua mãe, deram-lhe a força para
sobreviver?
R. Sim, sem dúvida. Crianças isoladas nos dois primeiros
anos de vida perdem a confiança em si mesmas, têm medo do mundo e só têm
atividades autocentradas.
P. E o senhor, por outro lado, confiava em si mesmo.
R. Sim.
P. Seu pai e sua mãe desapareceram.
R. Toda minha família, exceto uma irmã e um irmão da minha
mãe.
P. Não pôde enterrar seus pais. Isso é uma ferida aberta?
R. Não morreram: desapareceram. Não é o mesmo. Em um luto se
sofre, se chora e se lhes devolve a dignidade, se faz uma bela sepultura,
dizem-se coisas amáveis, inscreve-se o nome, colocam-se flores, cantam-se
canções. Já meus pais não tiveram esta dignidade, desapareceram. Depois da
liberação, soube que viraram fumaça, sem sepultura.
P. Aos 11 anos o senhor já queria ser psiquiatra. Por que
tão cedo? A essa idade os meninos querem ser jogadores de futebol.
R. Ouvia dizer ao meu redor que o nazismo era uma prova de
loucura social. Ainda penso assim. Não era individual, era a sociedade que
delirava. Eu me disse que, se a sociedade estiver louca, devia me tornar
psiquiatra para impedir, e assim não voltaria a haver guerras.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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