Publicado originalmente no site da revista TRIP, em 04.10.2016
Ginecologista Sincera
Elas mandam a real sobre sexo, pílula, aborto, menopausa,
machismo, maternidade, pornografia e o papel social da mulher
Por Luiza Sahd
Encontrar um ginecologista realmente disposto a discutir
nossas queixas não é fácil, até porque as grandes questões da sexualidade
feminina costumam ser — com trocadilho pra car*lho — mais cabeludas do que
aquilo que um ultrassom transvaginal ou um Papanicolau podem detectar. Talvez
seja essa a explicação mais simples para o sucesso da página Ginecologista
Sincera, que ultrapassou os 100 mil fãs no Facebook. É um espaço amigável para
falar e ouvir sobre tudo, pulando a parte do constrangimento e do tempo
cronometrado dos consultórios, mesmo que a verdade venha sem lubrificante.
Por trás do avatar genérico de médica sem rosto estão JS, TS
e BW, ginecologistas catarineneses que têm, respectivamente, 35, 31 e 29 anos.
As duas primeiras são mães e casadas, enquanto BW é divorciada e não tem
filhos. Em comum, além do "saldo negativo no banco", elas têm boa vontade
e rebolado o suficiente para abordar temas negligenciados em exames de rotina
com toda a graça que exigem as pequenas tragédias de ser mulher.
O trio prefere não se identificar porque "a ideia do
Ginecologista Sincera não é fazer publicidade, mas difundir informação".
Na página, as leitoras podem se manter em anonimato também e muitas discussões
são feitas, inclusive, entre perfis fakes. "Não dá para achar que uma
consulta sincerona faria sucesso com qualquer paciente. Seria impossível ser
agressiva assim no consultório, ou você pensa que nenhuma paciente sai ofendida
do consultório quando a gente pergunta se ela e o namorado fizeram exame de
HIV?", dizem.
Conversamos com as Ginecologistas Sinceras durante três
semanas sobre tudo o que não se ouve em uma consulta. Doeu? Doeu, mas foi uma
dorzinha boa.
O que toda mulher deveria saber sobre a própria saúde?
De tudo o que vimos ao longo desses anos em consultório, o
que mais pode ajudar é a frase "não sou obrigada". A gente é cobrada
para ter o rendimento de 100 soldados, sem nunca reclamar. Tem que ser
eficiente no trabalho dentro e fora de casa, cuidar da casa, do marido, dos
filhos, do cachorro, da mãe doente e do sogro bêbado (baseado em fatos reais).
Deixar de fazer o que gosta para estar sempre disponível porque tem que
“segurar seu homem” ou porque é feio ser egoísta? Espera aí! Tem que se
desobrigar um pouco, entender que antes de ser filha, mãe, esposa, profissional
ou amiga, a mulher é um indivíduo, um ser humano único e especial. Como tal,
tem direito a lazer, descanso, prazer.
Outra coisa é que a gente, durante a formação em
ginecologia, não recebe nenhuma noção sobre feminismo. É como se um pediatra
não soubesse nada sobre desenvolvimento físico e cognitivo de uma criança. O
pediatra sabe os desdobramentos na vida de um bebê que cresce em um ambiente
hostil ou sem estímulos, então como é que um gineco desconhece o fato de que
sobrecarga, estresse e violência interferem na saúde de uma mulher? É um
acinte.
Pílula: remédio ou veneno?
Como qualquer tratamento hormonal, é remédio em alguns
casos, mas não deveria ser prescrita à rodo, o que infelizmente acontece.
Pílula tem efeitos colaterais, mas por vários motivos (precariedade, pressa ou
despreparo), muitos médicos se acomodam respondendo a qualquer demanda com
pílula. Acne? Anticoncepcional! Excesso de pêlos? Anticoncepcional! Perda da
libido? Troca de anticoncepcional…
Na página, a gente vê um monte de mulheres peregrinando atrás
de ginecologistas que não recomendem pílula como solução para tudo. Outras
preferem tomar e tudo bem, essas não costumam encontrar dificuldades. Mas mesmo
elas só podem falar em “escolha” quando devidamente orientadas quanto a outros
métodos contraceptivos, como o DIU por exemplo.
Se o médico não discute opções à pílula, vale perguntar o
que ele receitaria caso estivesse atendendo, por exemplo, um homem com acne.
Existem muitas alternativas contraceptivas mais saudáveis, desde métodos pouco
seguros (coito interrompido em pacientes jovens, controle de fertilidade com
pouco rigor), geralmente seguros (método hormonal bem usado, camisinha usada de
forma correta, diafragma), bem seguros (DIU, SIU, pílula tomada de forma
impecável, laqueadura, vasectomia) ou praticamente infalíveis (dois ou mais
métodos associados). O problema é não ver problema em arriscar a saúde e a
libido quando dá para fazer diferente.
Seria bom que as mulheres notassem que ser cíclica não é uma
deficiência, mas uma característica que as diferencia dos homens. Elas podem
ter dias de mais expansão, outros de mais recolhimento e isso faz com que sejam mais adaptáveis e
flexíveis. É tipo um superpoder, não é errado. Errado é esse mundo insano em
que vivemos, que força nossa natureza acima do limite do saudável.
Camisinha
O que mais aparece no consultório é mulher se arrombando pra
usar anticoncepcional e se recusando a usar camisinha como se fosse uma
restrição dela. JS só deu notícia de HIV para mulheres comprometidas e essa
estatística aumenta a cada ano.
O argumento de chupar papel com bala é furado. Se fizessem
um experimento com mulheres vendadas, bem lubrificadas, com camisinha de
tamanho adequado para o pênis e bem colocada, a maioria teria dificuldade para
saber se estava com ou sem proteção.
O que a maioria das pacientes faz é usar pílula — minando
libido e retardando a excitação — para o parceiro não precisar colocar
camisinha, coisa mais fácil do que tirar as roupas todas. Sem preservativo,
além da exposição dos dois a DSTs, o próprio sexo perde. O homem goza mais
rápido e pode continuar acreditando que qualquer ereção meia bomba já serve pra
transar.
Aliás, a maior vantagem da camisinha é provavelmente a
"seleção natural": só rola sexo com vontade, dá tempo de a mulher
também chegar lá. E se ele prefere que ela use pílula mesmo correndo riscos,
será mesmo que esse tipão aí vai cuidar dela caso fique doente? Passaria noites
em claro cuidando de um bebê não planejado?
A escolha tem que vir da mulher também, levando em conta o
prazer e segurança dela, não se sacrificando pra satisfazer o outro. A
camisinha é relativamente barata, de fácil acesso e uso. Se o relacionamento
terminar por causa disso, você perde um parceiro egoísta e fica livre pra
conhecer alguém bacana que se importe contigo, olha que legal.
TPM
Tão importante quanto falar sobre o que é TPM (Tensão
Pré-Menstrual) ou TDPM (Transtorno disfórico pré-menstrual) é falar sobre o que
não é nada disso. As pessoas costumam atribuir um monte de comportamentos que
são apenas parte da nossa natureza a essas síndromes — e muitas mulheres perdem
essa percepção ao longo de anos manipulando os ciclos artificialmente.
Muita gente fala como se os hormônios femininos fossem
capazes de causar algum transtorno psiquiátrico temporário que nos impede de
raciocinar com clareza, mas o que acontece de verdade é que, durante cada mês,
oscilamos entre menor ou maior disposição física e emocional. Isso não é ruim
de jeito nenhum.
É inegável que algumas de nós sofremos excessivamente com sintomas pré-menstruais, mas treinar a observação do próprio corpo para
conviver com o ciclo é quase sempre possível. Comer melhor, dormir mais, se
masturbar, fazer atividade física e tudo isso de sempre são coisas fundamentais
para evitar o mal estar.
Instalar um desses aplicativos para entender em que fase do
mês você está vale a pena. Se nada disso der certo, ainda se pode consultar
naturopatas, nutricionistas, enfermeiras, nutrólogos, ortomoleculares ou
endocrinologistas que entendam do assunto e tenham empatia. É importante
tentar.
Pílula do dia seguinte
Não faz bem para a saúde da mulher por causa dos hormônios,
isso é claro. Não é algo para usar como se não fosse nada, mas conhecendo o
comportamento sexual dos casais e o número de mulheres que sofrem violência
sexual, retirar a pílula do dia seguinte do mercado é uma arbitrariedade.
Ela não é um método abortivo: serve como anticoncepção na
tentativa de retardar a ovulação, para que ela não aconteça quando os
espermatozóides estão viáveis (cerca de 72 horas dentro do corpo feminino). Se
a ovulação já tiver acontecido, não tem função.
Mitos sobre aborto
Os abortos espontâneos ou provocados por si só não causam
infertilidade, independentemente da quantidade de vezes em que ocorram. O
problema surge, em geral, por conta de infecção uterina após o procedimento,
que pode gerar cicatrizes no útero e tubas uterinas (Síndrome de Asherman) ou,
em casos mais graves, levar à retirada do órgão (cirurgia de histerectomia).
Outro momento delicado é o da curetagem, cirurgia onde "raspamos" ou
"aspiramos" o interior do útero, que precisa ser feita tanto em caso
de aborto espontâneo quanto no induzido se ele não é completo, ou seja, quando
parte da gestação não foi eliminada com o sangramento e o útero retém resíduos
da gravidez.
Como médicas, somos a favor da legalização do procedimento,
porque é uma questão séria de saúde pública. Estamos em uma sociedade desigual,
então as mulheres que podem, geralmente brancas de classes A e B, vão até
clínicas de “qualidade” e fazem seus abortos com toda a segurança, enquanto as
mulheres pobres, as negras, as marginalizadas morrem tentando abortar com
agulhas de crochê e até mesmo por meios de choques elétricos no útero em
ambientes extra-hospitalares imundos. A gente vê isso acontecer MESMO!
Gostamos da frase: “Se você não é a favor do aborto, não
aborte!”, porque a maioria das pessoas que se dizem pró-vida são, na verdade,
pró-vida do feto. Se uma mulher (uma vida!) morrer durante o procedimento mal
feito, é “bem feito para ela! Assassina!”. No mais, sabemos que depois de
nascer, essa criança e torna invisível e vira um “problema” social.
Pornografia
"Se eu fizer sexo com agressividade com uma menina
virgem, será que pode danificar algo?" Um belo dia, acordamos com essa
pergunta na caixa de mensagens da página, feita por um rapaz bem jovem,
provavelmente com facílimo acesso à pornografia via internet. Ali, a penetração
é o único foco, alternando com a cara de dor e falsos gemidos de uma mulher que
foi paga pra se submeter àquilo sem ter o próprio prazer contemplado.
Sugerimos, então, que ele fizesse um teste nele mesmo. Caso
nunca tivesse feito sexo anal, que pegasse um frasco de shampoo e alternasse
colocar e tirar do reto "com agressividade", para depois formar a
própria opinião sobre "danificar algo". Porque não saber dar prazer
já é muito errado, mas se preocupar apenas em não "danificar algo"
enquanto trata a vagina da mulher como um objeto que pegou emprestado e tem que
devolver sem quebrar é intolerável.
Nem todo mundo sabe, mas vaginas rasgam. Uma colega já
atendeu uma menina de 14 anos cuja vagina rasgou na primeira relação. O pênis
passou com força e foi direto pra cavidade abdominal. A garota chegou no
hospital em franca hemorragia. Quando acordou da cirurgia (tiveram que abrir a
barriga pra costurar), ao ser perguntada sobre o que aconteceu, disse "não
sei... Só me lembro da hora em que ele me pegou pelos 'ombrinhos'...".
Ah, nos certificamos, também, de que o lance sobre o xampú
servisse apenas como uma analogia bem didática.
Feminismo
Algumas pessoas insistem em dizer que nós, assim como as
feministas, odiamos os homens. Mas não, nós adoramos! A sociedade que os
considera desprezíveis. Provar isso é facinho, quer ver?
Se o homem trai, o que a sociedade diz? Que ele é assim
mesmo, homem não presta. Se some e deixa a mulher sozinha com o filho, o que a
sociedade diz? Que ele é assim mesmo, covarde, nunca tá pronto, não amadurece
antes dos 50. Se ele chega passando a mão no meio das pernas da mulher, o que a
sociedade diz? Homem é assim mesmo, só pensa em sexo e só pensa nele. Se o cara
fica sentado que nem o Buda com o celular na mão enquanto a mulher cuida da
casa e dos filhos sozinha, o que a sociedade diz? Que homem não sabe fazer nada
direito.
As feministas, não. Não achamos que o pênis torna o homem um
canalha, imaturo, covarde, egoísta, ruim de cama, preguiçoso e relaxado.
Achamos que a sociedade os molda assim justamente quando só espera isso deles.
Achamos que os homens podem — e devem — ter honra, caráter, compromisso e
responsabilidade pelos seus atos como qualquer adulto em qualquer outra
circunstância. Nunca vi ninguém nem negar e muito menos deixar de cobrar
empréstimo para um homem porque "ah, eles não amadurecem nunca, não têm
juízo nem responsabilidade!!", então porque fazem isso quando uma vida é
creditada a eles?
Assim como é ridículo um adulto saudável e pleno das suas
capacidades depender de outro pra comer, se vestir e viver num lugar limpo, é
inadmissível que ele dependa de mulher até pra reafirmar sua masculinidade
através do sexo, seja por pornografia, prostituição, assédio, estupro. Mulher
não precisa de homem pra se sentir mulher, porque que homem não aprende também
a fazer isso sozinho? Nós acreditamos em vocês. Que vocês podem ser melhores.
Que a mediocridade não faz parte da essência do homem.
Maternidade
Não existe instinto maternal. Existe, sim, o instinto de
reprodução, mas não necessariamente o instinto de maternidade, que é uma
convenção social bem típica do ocidente. Em sociedades matriarcais ou tribos
indígenas, a criança é geralmente responsabilidade do grupo: a criação é
coletiva e não existe essa sobrecarga em uma única mulher. Uma mãe precisa
saber que o amor não necessariamente é imediato, o apego tampouco.
Uma vez uma paciente sussurrou no consultório para perguntar
se era normal não conversar com o bebê após 16 semanas de gravidez. Mas é claro
que é normal! Você ainda nem sente o bebê se mexendo. Esse amor é construído
aos poucos, é um processo, e cada pessoa tem seu tempo. Outra coisa é que nem
toda mãe será feliz com a maternidade. Quando a gente digita no Google
"odeio ser", quase sempre ele sugere completar a frase com
"gorda",”magra” "pobre" ou "mãe".
Existe um véu de sofrimento nos primeiros meses por conta da
privação de sono, do corpo voltando ao normal, do estranhamento em relação àquele
ser vivo cheio de necessidades que dispõe de uma comunicação muito primitiva.
Em um mundo tão cheio de pressões por excelência, nem todo mundo vai se adaptar
a essa maternidade brutal e cheia de exigências. Isso não tem nada a ver com
ser má ou necessariamente estar sofrendo de depressão pós-parto. Aceitar que é
normal não amar enlouquecidamente um filho desde o teste de gravidez ou no
primeiro minuto do nascimento até ajuda a construir uma maternidade mais
saudável e consciente.
Menopausa
Envelhecer no país da cirurgia plástica e das musas
perfeitas expostas nos meios de comunicação é muito desafiante. Tem que ser uma
pessoa muito segura de si para avançar com boa saúde mental. Algumas mulheres
se f*dem pra caramba na menopausa, enfrentam ondas de calor e mal-estar
intoleráveis porque boa parte dos ginecologistas não passa reposição hormonal,
já que não querem perder um tempão na consulta explicando os riscos e
benefícios. Outros se restringem a dizer que a reposição pode causar câncer e
acabam ouvindo "ué, então não quero". O risco existe, mas há casos em
que ele não é pior do que levar uma vida miserável por causa da menopausa.
Todo mês, recebemos mulheres reclamando de ainda estarem
menstruando, tipo: “Poxa! Até quando eu vou menstruar? Que coisa chata, não tem
um remédio para fazer a menopausa não?". Aí, começamos esclarecendo que a
menopausa é a transição entre a vida adulta e a senilidade, trazendo consigo os
perigos da falta do estrogênio endógeno (hormônio feminino natural, produzido
pelo nosso corpo). Isso acompanha o aumento do risco de doenças
cardiovasculares e da osteoporose. A menopausa é um momento da vida que tem sua
importância como todos, faz parte.
Se compararmos o organismo feminino com o masculino — que
produz estrogênio em baixíssima quantidade —, vemos que eles não têm esse
privilégio “cardio-protetor”. É por isso que o risco maior de infarto de um
homem começa por volta dos 40 anos, enquanto o da mulher começa a aumentar
depois dos 50. Temos uma expectativa de vida maior porque cuidamos melhor da
saúde, não nos expomos tanto à violência e temos mais estrogênio circulante, o
que é excelente.
Sete MITOS ouvidos no consultório
Orgasmo vaginal não existe. Orgasmos femininos são sempre
clitoridianos;
Mulher sem filhos pode, sim, colocar DIU;
Vagina larga é um conceito errado. O que pode rolar é vagina
flácida, e ela pode se fortalecer com exercícios como qualquer outro músculo do
corpo. É por isso que o parto normal não deforma a vagina;
Existem várias alternativas diferentes de anticoncepcionais
para tratar a síndrome dos ovários policísticos. As principais envolvem
cuidados com a alimentação e prática de atividades físicas;
Quem toma anticoncepcional não tem ciclo menstrual. Assim,
tanto faz sangrar ou não. A escolha é da paciente;
Ultrassom não é suficiente para diagnosticar a síndrome dos
ovários policísticos. Analisar o histórico da paciente e cruzar uma série de
dados dos exames físicos é obrigatório antes de bater o martelo;
Não se pega HIV, Hepatite, HPV, Clamídia, Sífilis ou
Gonorréia sentando na privada, muito menos no ônibus ou compartilhando calça
jeans. Em banheiros públicos, o assento deve estar seco e, preferencialmente,
forrado com papel. Isso basta. Mas se preferir fazer o “aéreo”, por gentileza,
levante o assento. Obrigada.
Texto e imagens reproduzidos do site: revistatrip.uol.com.br
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