quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A escrita em braille: O passaporte de independência para cegos

CAROLINE LIMA/ESPECIAL PARA HUFFPOST BRASIL
Regina Oliveira é a 166ª entrevistada do projeto "Todo Dia Delas", 
que celebra 365 Mulheres no HuffPost Brasil.

Regina Oliveira e a escrita em braille: O passaporte de independência para cegos

“Quem utiliza o braille tem mais autonomia. Não deixo de fazer nada que eu queira por causa da minha deficiência, de jeito nenhum”, ressalta a coordenadora de revisão da Fundação Dorina Nowill para Cegos.

By RYOT Studio e CUBOCC

Lembra bem dos livros que leu na infância. Como não tinha muitos, costumava voltar ao mesmo várias vezes, feliz da vida. O primeiro foi Branca de Neve. E depois, já adulta, foram tantos outros... Aí não dá nem para nomear todos. Destaca O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. Pode ler duas vezes. Dedicada, conta que em menos de um mês já tinha passado as mãos por todas as páginas dos 72 volumes da publicação. Uma das leituras foi para revisar. A outra foi só por prazer mesmo. Como a Fundação Dorina Nowill para Cegos traduziu a obra, ela teve esse "trabalho". Mas nem usa esse termo. "Eu tive a oportunidade de ler, foi muito bom", conta com alegria.

Regina Oliveira, 64 anos, perdeu a visão aos 7. Mas nunca deixou de lado seu amor pelos livros e sua vontade de conhecer coisas novas. Realizou seu grande desejo de aprender a ler e a escrever e hoje seu trabalho permite que ela faça isso como rotina.

Atualmente, é coordenadora de revisão da Fundação Dorina Nowill para Cegos e membro do Conselho Mundial e do Conselho Ibero-americano do Braille. Conquistou sua independência e não deixa de fazer nada do que quer. Por vezes, se sente até privilegiada. Regina conta que sempre teve o costume de pousar o queixo na mão, apoiada na mesa. Uma amiga dizia que ela parecia a escultura O Pensador, famosa obra do francês Rodin. "Eu dava risada, conhecia a obra, mas de ouvido. E quando veio a exposição para a Pinacoteca [de São Paulo], fui correndo e tive a oportunidade de tocar a escultura e falei que foi a primeira vez que me senti privilegiada por ser uma pessoa cega, porque as obras do Rodin são mais para serem tocadas do que para serem olhadas, porque quando você toca você sente mais os detalhes." Foi assim que ela viu a famosa escultura. Observou cada parte.

Eu queria muito aprender a ler e escrever e minha mãe começou a me ensinar as letras e, quando eu perdi a visão, ela não sabia como uma criança cega poderia aprender a ler e a escrever.

CAROLINE LIMA/ESPECIAL PARA HUFFPOST BRASIL
Regina Oliveira é coordenadora de revisão da
 Fundação Dorina Will  para Cegos, em São Paulo.

No dia em que recebeu a reportagem para esta entrevista, chegou tranquila, com passos lentos e firmes. Disse que estava com uma camisa amassada e preferiu trocar. Passou a ponta dos dedos na blusa, questionou se o caimento estava bom. Sentou-se e passou rapidamente um batom — perguntou se estava borrado antes de começar. E estava pronta. Regina é uma mulher que toma conta da própria vida. Arrumou um emprego, fez faculdade, trabalha com o que mais gosta. E o grande passaporte para isso tudo foi o braille.

Nasceu com glaucoma e teve o diagnóstico logo nos primeiros meses de vida. Conta que a família correu atrás de todos os tipos de tratamento. A mãe, dona de casa, e o pai, garçom, fizeram o que podiam na época, mas aos 7 anos ela perdeu a visão por completo. Seis meses depois, chegou na fundação. Tudo por causa de seu desejo de aprender a ler e escrever.

"Eu tinha uma vida mais ou menos normal, enxergava bem pouco, acho, porque tenho poucas lembranças dessa época, mas quando eu estava com uns 6 anos eu queria muito aprender a ler e escrever e minha mãe começou a me ensinar as letras e quando eu perdi a visão ela não sabia como uma criança cega poderia aprender. Um dia ela saiu de casa disposta a só voltar quando encontrasse um lugar para eu ser atendida. E chegou à fundação", recorda. Já são quase 40 anos ali. Regina não só aprendeu o braille, como se tornou telefonista, depois coordenadora do voluntariado e mais tarde entrou para a área do editorial em braille.

Eu nunca tive o livro no 1º dia de aula junto com os meus colegas, meu livro chegava atrasado e infelizmente continua sendo essa a realidade. Esse é um dos problemas da educação para cegos.

CAROLINE LIMA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
O braille é a linguagem que permite aos cegos a leitura 
e o contato com obras e clássicos da literatura.

E as mudanças não foram só essas. Um mês após começar a ser atendida na fundação, Regina foi matriculada em uma escola regular em seu bairro. Ela conta que nessa época já existia a lei que garantia que crianças com deficiência visual fossem aceitas na escola tradicional. Mesmo assim, o diretor da época foi resistente em realizar a matrícula e disse que Regina não conseguiria acompanhar a classe, mas permitiu que ela ficasse como ouvinte por um ano para avaliar se ela teria condições de ficar na escola. "Mas ninguém contou para mim esse combinado [risos], então eu achava que estava matriculada normalmente e foi assim que estudei, me apliquei bastante e no fim do ano ele disse que eu estava preparada para o próximo. Mais tarde essa escola virou referência e depois de mim muitos [cegos] estudaram lá", conta.

O grande desafio nessa época era conseguir o material em braille. Regina diz que apesar de muitos anos terem passado e a produção do livro em braille hoje ser mais rápida, a dificuldade é a mesma. Segundo ela, as escolas não indicam com antecedência quais publicações serão usadas. "Então, quando começava a aula, a minha mãe corria na escola para saber o livro e trazia para ser transcrito na fundação em braille. Eu nunca tive o livro no primeiro dia de aula junto com os meus colegas, meu livro chegava atrasado e infelizmente continua sendo essa a realidade. Esse é um dos problemas da educação para as pessoas cegas."

Mas ela conseguiu. Lembra que a fundação tinha copistas voluntárias que aprendiam o braille e transcreviam os livros. "Elas tinham vários para transcrever e era artesanal mesmo. Mas eram pessoas muito dedicadas e agradeço muito a todas que me ajudaram a ter meus livros e poder estudar, isso foi muito importante e acho que por isso eu trabalho hoje com braille. É muito gratificante você pensar que ajuda a fazer livros que vão trazer para outras pessoas a mesma alegria, as mesmas informações que foram importantes pra mim", reflete.

É muito gratificante você pensar que ajuda a fazer livros que vão trazer para outras pessoas a mesma alegria, as mesmas informações que foram importantes pra mim.

CAROLINE LIMA/ESPECIAL PARA HUFFPOST BRASIL
Aprender a andar sozinha, com a bengala, foi um desafio e tanto para Regina.

E foi essa relação com o braille que conduziu Regina para a independência. Fez faculdade de letras e, já trabalhando na fundação, recebeu uma proposta de dona Dorina Nowill, com quem teve oportunidade de trabalhar diretamente. Ela sabia bem do gosto de Regina pelo braille e um dia perguntou se ela faria um estágio fora do Brasil. "Respondi que sim, mas fui pra casa falando 'Imagina!' [risos]. Mas ela conseguiu. E fui para a Espanha, fiquei um mês lá. E foi uma experiência muito boa; a partir desse momento me senti uma pessoa independente e capaz de tomar conta da minha vida", relembra. Nessa época, Regina já tinha dado muitos passos a caminho de sua independência. Mas tudo como parte de um processo.

Durante muito tempo sempre teve apoio dos pais e da irmã para levá-la e buscá-la em seus compromissos. Mas as coisas foram mudando. "Eu ouvia minha professora especialista falando que quando eu tivesse 17, 18 anos eu ia aprender a andar sozinha na rua, usar a bengala e eu tinha muito medo. Como eu ia andar sozinha na rua? Foi um processo um pouco difícil. Não é fácil em uma cidade como São Paulo você pegar uma bengala sem enxergar nada e sair andando." Hoje ela vai sozinha para o trabalho diariamente. Sai de sua casa, onde mora com a mãe, na Parada Inglesa, zona norte, e pega o metrô até a zona sul. Espera com paciência nas esquinas alguém oferecer ajuda para atravessar. Apesar de saber que o farol para os carros fechou, não se arrisca. "Tem sempre alguém que ultrapassa o sinal, uma moto, uma bicicleta". Não tem pressa. E nunca se atrasa.

Trabalha para que outras pessoas possam ter essa mesma liberdade e chances de escolha. E para ela, está claro. O primeiro passo é o braille. Hoje, com tantas novas tecnologias, Regina vê esse sistema perdendo espaço e alerta para os problemas que isso pode causar. "As pessoas acham que um computador substitui tudo, e não. Você tem que ter outros recursos, mas todas as crianças são alfabetizadas com lápis e papel, continuam tendo seus livros impressos e por que a criança cega vai ficar sem essa oportunidade? Imagina você aprender matemática, química e física somente ouvindo? Tem alunos que chegam aqui na fundação e vão fazer o Enem e nunca viram um gráfico em relevo. E tudo isso é possível com o braille", argumenta. Não ensinar o braille para cegos é deixar essas pessoas analfabetas e sem acesso a muitos serviços, hoje disponíveis em braille.

Imagina você aprender matemática, química e física somente ouvindo?

CAROLINE LIMA/ESPECIAL PARA HUFFPOST BRASIL
O braille foi fundamental para Regina conquistar sua independência
 e se virar sozinha na vida.

Atualmente é possível administrar remédios com segurança, pedir um extrato bancário em braille e ter privacidade para consultá-lo. A tecnologia facilita e ajuda em muitas coisas, de fato, mas para Regina nunca pode ser um substituto. "Quem se utiliza do braille tem mais autonomia, então você vai a um restaurante e pode pedir um cardápio em braille. Tem coisas que não tem muito jeito, mas o que você pode fazer sozinho, você deve fazer sozinho. Ninguém gosta de ter alguém dependente o tempo todo. Isso é muito importante. Eu não deixo de fazer nada que eu queira por causa da minha deficiência, de jeito nenhum", orgulha-se.

Essa postura é adotada em seu dia a dia. Há diversas dificuldades, é verdade. Mas Regina acredita que, mesmo assim, não há motivo para tratamento diferenciado. O que precisa é existir uma troca, aprendizado e ajuda entre as pessoas. "Você tem dificuldade nas ruas porque as calçadas não são adequadas, não só para as pessoas cegas, mas para ninguém. As escolas, quando falam em inclusão, muitas vezes não têm pessoas preparadas para atender as crianças. Você vai para um hotel e se ele tem condições de acessibilidade você se sente melhor, mais acolhida, mas independente, tem uma série de coisas. Mas o Brasil caminhou bastante, você pode votar com independência e privacidade, por exemplo."

Regina sabe da importância de exercer todas essas atividades e viver sua vida da forma que desejar. Da forma que pode viver. "Não queremos privilégios. Nós temos direitos, mas que correspondem a um dever também."

Seu dever segue claro. Coisa de quem sabe muito bem a importância — e a liberdade — de saber ler e escrever. No seu caso, faz isso com as próprias mãos. Assim, não perde nenhum detalhe.

Texto e imagens reproduzidos do site: huffpostbrasil.com 

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