Cristiele França: A filha de santo que vê no rádio outra
forma de não andar só
"Tem uns alunos que já sonham em trabalhar com rádio
quando crescer. Eles me falam: ‘professora, eu quero ser como a senhora’",
disse, em entrevista ao HuffPost Brasil.
By Ruot Studio Brasil
Além da Ialorixá e dos filhos de santo, um outro cargo
também completa o quadro de uma casa de Candomblé. Mesmo que não sejam rodantes
– aqueles que conseguem manifestar através da matéria a personificação dos
Orixás –, as Ekedes dão suporte aos trabalhos e são consideradas autoridades na
casa. Essas mulheres precisam estar sempre atentas e acordadas para atender
necessidades das entidades que foram devidamente designadas para servir.
As obrigações das chamadas "mão-direita da Mãe de
Santo" são cozinhar para a casa de culto, puxar os cânticos, zelar,
acompanhar, dançar, cuidar das roupas e apetrechos do Orixá da casa, além dos
demais Orixás, dos filhos e até mesmo dos visitantes. Diferentemente das outras
posições da religião, essa não se impõe, e sim surge como um convite. Fica a
cargo da escolhida decidir ou não se quer seguir esse caminho.
Foi aí que eu tive contato com as coisas: cachoeira,
barracão... eu ouvia ele conversando com a minha mãe, prestava atenção e fui
aprendendo algumas coisas.
Com sua voz, Cristiele conseguiu ocupar um lugar e hoje fala
sobre Orixás na rádio Metrópole de Salvador.
Cristiele França foi chamada por Iansã, incorporada na
própria mãe, a Ialorixá Mãe Carmen, durante um festejo no Ilê Axé Oyá Mesi, do
babalorixá Antonio Celestino Pereira. "Ela veio e me pegou pelo braço. Eu
até então não estava entendendo, tava achando legal ela me tirar para dançar.
No dia seguinte, me chamou para conversar e disse o que significava",
conta em entrevista ao HuffPost Brasil. Carmen então explicou: "essa é uma
função muito importante. Enquanto você é criança, é tranquilo. Mas pense que
você, por exemplo, daqui um tempo pode arranjar um namorado ou um marido que
não seja do Candomblé, e ele não queira entender. Você vai escolher o marido ou
a religião?". No auge de seus nove anos, sem pestanejar e "com uma
convicção de mulher de 30", Cristiele disse sim ao chamado.
Nascida e crescida em Salvador, a jornalista sempre esteve
envolvida nas atividades de Axé da mãe. Das lembranças que têm da infância,
todas envolvem os trabalhos e atendimentos que Carmen realizava em casa. Tomou
consciência do que era o Candomblé um ano antes de se tornar Ekede, quando a
família se se mudou para o bairro do Uruguai e, numa casa de aluguel, morava
perto da casa do Pai de Santo da mãe. "Aí eu comecei a ver uma outra
estrutura, porque minha mãe fazia os atendimentos em casa, não tinha estrutura
de terreiro. Foi aí que eu tive contato com as coisas: cachoeira, barracão...
eu ouvia ele conversando com a minha mãe, prestava atenção e fui aprendendo
algumas coisas".
Em terreiros mais antigos, como o de Mãe Menininha do
Gantois, os homens eram proibidos de receber o Orixá.
Se você está em Salvador e sintoniza a 101.3 a partir das
8h, será brindado com o Orixá do dia, suas cores, suas saudações. E com a voz
de Cristiele.
Caçula de quatro irmãos homens, foi a segunda a manifestar
relação com a religião. O que não foi surpresa, dado ao pioneirismo feminino
que é intrínseco ao Candomblé. Cristiele conta que até bem pouco tempo, os
principais terreiros nem aceitavam a figura masculina, como forma de valorizar
o matriarcado. "Só existia a figura da Ialorixá, não existia o Babalorixá.
Em terreiros mais antigos, como o de Mãe Menininha do Gantois, os homens eram
proibidos de receber o Orixá – o que é uma loucura, porque o Orixá é que
escolhe em que se manifestar, não somos nós quem devemos dizer em quem ele pode
ou não, é além de nossa vontade".
Atrelada à religião, descobriu uma segunda paixão: o rádio.
Ainda na faculdade de jornalismo, trabalhando em uma empresa de telemarketing,
soube de uma vaga de estágio na Rádio Cultura. Se jogou. O problema é que ela
não sabia que quem iria conduzir a entrevista seriam os donos da emissora,
ligados à Igreja Evangélica. "Eu não fui de turbante, porque fui toda
formalzinha. Só que durante a minha entrevista perguntaram qual a minha
religião. E eu respondi. Eles então questionaram como é que eu iria lidar com o
público de lá. Eu disse que do mesmo jeito que em qualquer outra emissora: o
que está em voga é o profissionalismo, não a religião". Saiu de lá achando
que não ia ser chamada. Só que como a gente já viu, Cristiele não anda só.
Começou apenas na produção dos jornais, depois vieram os
boletins de trânsito e previsão do tempo. Agradou: foi contratada antes de se
formar. Dona de uma voz poderosa, safa e muitíssimo bem-humorada, ganhou um
programa cultural aos sábados e conquistou ainda mais. "Eles gostaram e me
deram um programa diário, o De Bem Com a Vida, no qual eu podia escolher as músicas
da programação. Eu perguntei se tocaria só música evangélica ou se eu poderia
tocar qualquer tipo. E deixaram. Aí eu fui e botei Timbalada (risos). Todo
mundo me olhou de cara torta quando eu saí do estúdio. Mas o pior é que os
ouvintes me adoravam!".
E lá eu tive espaço para falar também da questão da
religiosidade – antes eu era só uma voz falando notícia o tempo todo.
Nascida e crescida em Salvador, a jornalista sempre esteve
envolvida nas atividades de Axé de sua mãe.
Se até em rádio evangélica Cristiele não se deixou abater,
emendou um trabalho no outro e, nas emissoras subsequentes, permaneceu com o
mesmo jeitinho. Na última parada, porém, se encontrou mais ainda. Na Metrópole,
emissora na qual trabalha atualmente, ganhou uma função que juntou o útil ao
agradável. O chefe soube que ela era do Candomblé e pediu que ela listasse os
Orixás de cada dia. Ela preparou uma tabelinha e entregou. Ele então avisou:
"olhe, eu quero que você fale isso todo dia".
Desde então, já é sabido: se você sintoniza a 101.3 a partir
das 8h, será brindado com o Orixá do dia, suas cores, suas saudações e
comentários irreverentes acerca das informações. "Eu falo de um jeito
baiano, não sei falar toda certinha. E lá eu tive espaço para falar também da
questão da religiosidade – antes eu era só uma voz falando notícia o tempo
todo. Entrar no ar falando dos Orixás faz tudo ficar mais leve e me ajuda a
quebrar um pouquinho esse paradigma, esse preconceito que muita gente tem com o
Candomblé. No começo eu ficava com vergonha, mas agora já 'discarou'
(risos)".
A Ekede ressalta que há uma preocupação constante, no
entanto, para que a intervenção não caia na ridicularização ou na patifaria.
"Tem gente que se aproveita mesmo do Candomblé para ganhar dinheiro, faz
da religião um teatro. Se você fizer uma busca rápida na internet, vai
encontrar muita gente querendo aparecer e querendo viver as custas daquilo ali.
Para mim, que sou de Axé, é fácil diferenciar. Mas e uma pessoa leiga? ".
Tem uns alunos que já sonham em trabalhar com rádio quando
crescer. Elas me falam: 'professora, eu quero ser como a senhora'.
Cristiele conta que, até bem pouco tempo, os principais
terreiros não aceitavam a figura masculina, como forma de valorizar o
matriarcado.
Depois de quase dez anos no rádio, desde o fim de fevereiro
deste ano passou a dar aulas de radiojornalismo para estudante das escolas
públicas de Salvador. Nos encontros, ensina a vivência em uma rádio, como o
meio chegou ao Brasil e à Bahia, mostra como montar e editar os programas e
cria junto com eles todo o conteúdo. "Tem uns alunos que já sonham em
trabalhar com rádio quando crescer. Eles me falam: 'professora, eu quero ser
como a senhora'. Eu me vi, do nada, sendo espelho para eles. Pode parecer muito
pouco para quem sonha com fama, com estrelato. Mas para mim, nascida e criada
no subúrbio de Salvador, me ver numa emissora grande, falando da minha religião
e podendo passar aquilo que eu sei pra crianças, é maravilhoso. É um
reconhecimento incrível do meu potencial", constata.
Para quem levou uma vida regada a espiritualidade, sua
gravidez não poderia ter chegado sem uma pitada de misticismo. "Meu marido
olhou para mim um dia e falou que a minha barriga estava com uma listrinha
estranha. Eu disse que deveria ser da calça jeans e ele retrucou: 'minha filha
já tá aí e você não sabe". Estava, e há muito tempo: após fazer um exame
de farmácia, descobriu que estava grávida de sete meses. Não sentiu enjoo,
dores, absolutamente nada. Passados quinze dias, foi realizar um exame de
rotina. Ao chegar no hospital, foi informada que iria ter de realizar o parto
ali mesmo, naquele dia: "eu gritei: É o quê? Me dê mais um mês que é pra
eu curtir". No dar à luz, também não sentiu uma dorzinha sequer. Nasceu
Emily Abayomi, o "encontro precioso", como o segundo nome em iorubá
sugere. E o nome de Emily também significa "aquela que traz alegria".
Então todo mundo fica dizendo que ela vai ser a herdeira da
casa – eu nem gosto de pensar nessa possibilidade porque a responsabilidade é
muito grande.
Desde o fim de fevereiro deste ano ela passou a dar aulas de
radiojornalismo para estudante das escolas públicas de Salvador.
Hoje em dia, com dois anos de idade, Emily segue
"linda, forte, saudável e pentelhaça". E frequentando todas as
cerimônias do Ilê Axé Oyá Mesi – ainda sem destino traçado. "Nas cerimônias
ela fica louca para ir para o chão dançar, gosta de um batuque... eu já flagrei
ela imitando Orixá em casa. Ela é do mesmo Orixá de minha mãe, de Iansã. Então
todo mundo fica dizendo que ela vai ser a herdeira da casa – eu nem gosto de
pensar nessa possibilidade porque a responsabilidade é muito grande. Mas alguma
função ela vai ter ali dentro, sabe lá Deus qual".
Porém já adiantamos que os filhos de Oyá, a Rainha dos
Raios, têm um temperamento indomável, são exagerados em tudo aquilo que lhes
pareça importante e não gostam de ser contrariados. Seja qual for o caminho de
Emily, para que não percamos o costume: hoje é sexta-feira, dia de Oxalá, o
primeiro dos Orixás, criado por Olorum e pai de todos os Orixás. A cor do dia é
o branco – da cabeça aos pés – e as saudações são as seguintes: Axé Babá! Epa
Babá!
Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
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