Publicado originalmente no site El País Brasil em 19 de março de 2018
Steven Spielberg: “O medo é meu combustível”
Steven Spielberg: “O medo é meu combustível”
Cineasta conta ao EL PAÍS como a construção de seus
personagens parte de sua vida. "Substituí minha família desfeita por
personagens quebrados através dos quais eu poderia contar minha própria
história"
Por Guillermo Abril
Ele semeou o pânico, fez chorar, emocionou e balançou em
suas poltronas os espectadores do mundo inteiro. Diz que gosta de combinar
mensagem e entretenimento, “remédio e açúcar”. Após The Post - A Guerra
Secreta, arrazoado em defesa dos códigos éticos do jornalismo, retorna à ficção
científica com Jogador N°1, um conto futurista sobre a realidade virtual que
coloca uma questão: “Quantos prefeririam viver em um mundo fictício em vez de
transformar aquele em que nasceram”.
Aos 16 anos, Steven Spielberg (Cincinnati, 1946) comprou um
ingresso de turista para entrar nos estúdios da Universal durante três dias. No
quarto, cumprimentou o segurança, este lhe devolveu o cumprimento e entrou como
se fosse de casa. Passou três meses estudando o trabalho em um local localizado
aos pés das colinas com a palavra "Hollywood". Aprendeu a editar,
entrou em uma filmagem de Hitchcock, viu Marlon Brando nu. Pouco depois, já não
havia como retirá-lo de lá. Corria o rumor de que o garoto havia conseguido um
escritório e um telefone. Foi contratado aos 22 anos, quando mostrou ao chefe
seu primeiro curta-metragem profissional, Amblin (1968). Nesse local dirigiu
seu primeiro episódio de uma série, seu primeiro filme à televisão, seu
primeiro longa-metragem para cinema. Com o segundo, Tubarão, o estouro do
orçamento e os atrasos previam uma catástrofe bíblica. O filme estreou em 1975,
quando ele tinha 28 anos. E se transformou no maior sucesso de bilheteria da
história. Em 1981 apresentou ao mundo o arqueólogo Indiana Jones e fundou sua
produtora, que batizou como aquele curta: Amblin. Construiu dois escritórios no
mesmo local. E continua aqui.
Seu refúgio parece uma fazenda mexicana, com um símbolo na
entrada: uma lua em cujo interior se encontra a silhueta de um menino voando de
bicicleta com um extraterrestre. O portão é de madeira e ao se atravessar o
umbral há uma vitrine com três Oscars. Do outro lado do pátio existe um
corredor onde estão pendurados cartazes de filmes que remetem a sua infância,
como Flash Gordon no Planeta Marte (1938) e O Planeta Proibido (1956). Ao lado
do cartaz de Guerra dos Mundos (1953) e o de A Doce Vida (1960) entra-se em uma
estância de ar colonial. Lá ocorre a espera antes da entrevista. De repente a
porta se abre com um chiado e entra uma pessoa com um suporte ergonômico.
"Para o senhor Spielberg". É acoplado em uma das cadeiras. Ao que
parece, o senhor Spielberg, de 71 anos, deve estar com dor nas costas. A porta
chia novamente e uma mulher se apresenta como sua assistente: "Está
acabando de almoçar". São 13h30: é possível inferir que está acostumado a
comer por volta de uma da tarde. E coloca um gravador sobre a mesa: "Para
seu arquivo pessoal".
“As redes sociais criaram uma desculpa para perder o contato
físico entre os seres humanos. Me assusta. Eu acredito no valor do olho no olho
e da conversa.
Três fliperamas dos anos oitenta quebram a harmonia da sala.
Talvez estejam ali para frisar a promoção de Jogador N°1, seu próximo filme, e
o que propiciou o encontro. A superprodução estreia em 29 de março e em seus
painéis publicitários, que já povoam Los Angeles, pode-se ver um jovem com
óculos de realidade virtual, com a mensagem: "Aceite sua realidade ou lute
por uma melhor". O roteiro é inspirado em um best-seller homônimo de
ficção científica: ano 2045, o mundo está em ruínas e a humanidade vive
aferrada ao OASIS, um espaço de realidade virtual mais interessante do que a
vida, onde cada um pode decidir seu nome, seu gênero, seu aspecto.
Definitivamente: pode ser quem quiser. Esse paraíso fictício, que age como
sedativo de uma população explorada, é um coquetel de sabedoria pop dos anos
oitenta, considerada "canônica": no universo de Jogador N°1 se venera
o videogame Pac-Man, o filme Jogos de Guerra e há uma infinidade de referências
a muitos símbolos que Spielberg ajudou a cimentar.
Ernest Cline, o autor do romance, reconheceu que nunca o
teria escrito sem os "excessos" de Spielberg: "Marcou minha
vida". Marcou a de milhões. Talvez por isso, um dos fliperamas da estância,
o de Indiana Jones e Templo da Perdição, exerce uma atração incontrolável sobre
qualquer um que tenha crescido com seu cinema. O desenho no console mostra o
rosto do malvado Mola Ram e Harrison Ford sem camisa e de chapéu. O videogame
está fora da tomada, mas na tela pode-se ler uma frase congelada: "Fortune
and glory". A citação desperta como um clarão na mente a cena de Indy com
Short Round, seu jovem ajudante, quando lhe explica o que o leva à aventura:
"Fortuna e glória, garoto".
E então escutamos passos do lado de fora, a porta volta a
chiar e Spielberg entra na sala, magro e mancando um pouco, com uma garrafa
térmica de café nas mãos. Ele senta-se na cadeira com suporte ergonômico e diz:
"Não sou mais o atleta que costumava ser". Sua voz desprende as
nuances arenosas da velhice. Seus olhos cor de mar faíscam atrás dos óculos.
Que impressão causa esse fliperama de O Templo da
Perdição... Nesse filme conheci minha esposa [a atriz Kate Capshaw]. Estamos
casados desde então.
E aterrorizou as crianças, quando Indiana Jones se tornava
malvado. Ele é transformado em um dos adoradores de Kali. Mas não era preciso
preocupar-se. Nunca o deixaríamos assim, ainda lhe restam muitas aventuras.
O senhor estreia agora o filme Jogador N°1. O que quis
contar nele? Tentamos inventar um novo gênero de aventuras. Um que ocorre em
dois lugares simultaneamente. É quase como viajar ao mundo de Oz, mas sem a
necessidade de bater os saltos para voltar ao Kansas. De fato, é mais difícil
escapar do OASIS, o mundo digital, do que sair de Oz. É uma parábola atualizada
de muitas histórias que convidam o público a abandonar o mundo conhecido e
adentrar em outro imaginário. E talvez seja o universo mais emocionante de que
tive a honra de fazer parte como cineasta.
“Dizer que ‘Tubarão’ ou 'Star Wars' arruinaram o negócio do
cinema porque os EUA desenvolveram uma mentalidade unicamente voltada ao
blockbuster é uma teoria totalmente corrompida.”
Por que? Você pode ser o que quiser no OASIS. Cria a pessoa
ou a criatura. Projeta seu avatar e pode viver a vida do personagem; ser o
herói que sempre desejou, o vilão de seu subconsciente. Eu me permiti rodar um
filme sobre dois mundos. É uma aventura, uma grande competição entre o mundo real
e o digital.
No romance o mundo virtual é descrito: "Ele se
transformou em uma prisão autoimposta à humanidade. Um lugar prazeroso para que
as pessoas se escondam de seus problemas enquanto a civilização
desmorona". Rumamos em direção a esse colapso? É só um filme, ainda que
possa ser lido com um conto com moral: o excesso de algo bom se torna
prejudicial. Lembro de quando tinha três anos e chegou a primeira televisão em
minha casa. Meus pais viram que era perigosa, você podia se viciar. Limitaram
minhas horas, duas por semana. Tinham grande capacidade de antecipação. Muitos
de minha geração se perderam nela, ainda que também tenhamos aprendido muito.
Qualquer novo meio pode ser usado e abusado. E, nesse caso, a moral da história
consiste em que o mundo real se despedaça em 2045, no econômico, moral e
espiritualmente. E muita gente, por pouco dinheiro, pode escapar a outra
existência de sua criação. E esquecer-se de como o mundo real as afeta.
A maneira como as redes sociais e a realidade virtual
começam a mesclar-se preocupa o senhor? As redes sociais criaram uma desculpa
para perder o contato visual entre seres humanos. Os novos meios não precisam
do cara a cara para a comunicação e acredito no valor de olhar nos olhos de uma
pessoa e ter uma conversa. Isso me assusta. Hoje existe menos contato social.
Nunca estive no Facebook e no Twitter.
Nessa ficção há refugiados, mudança climática, crise
energética, multinacionais fascistas. Você parece querer chamar a atenção para
alguma coisa. As pessoas deveriam se concentrar no mundo que nos rodeia. Toda
nova mídia que proporciona uma válvula de escape de nossas responsabilidades é
um perigo. Este filme tenta ilustrar quantos prefeririam viver em um mundo de
sua criação em vez de transformar o mundo em que nasceram. Não digo que esteja
acontecendo agora.
Mas é uma advertência. Hoje há mais notícias do que nunca.
Mas são tantas que temos de escolher no que acreditar. Quando era pequeno só
havia três canais e alguns poucos jornais, e quando me contavam o que
acontecia, acreditava. Atualmente, com essa hashtag horrível das fake news e
uma pletora de canais de distribuição dando todo tipo de ângulos sobre a mesma
história, alguns deles com a intenção de afastar você da verdade, torna-se cada
vez mais complicado descobrir o que é certo e o que não é.
Há pouco tempo, um grupo de adolescentes me deu sua
interpretação de quando algo se tornava notícia: "Quando aparece no
Instagram". Lembro-me da brincadeira do telefone sem fio. Um diz a
verdade, mas a pessoa número 500 já não ouviu palavra por palavra o que a
segunda pessoa escutou da primeira. É uma brincadeira de criança. Não acredito
em nada do Instagram.
Você abordou este tema no recente The Post - A Guerra
Secreta. Por que as duas estreias quase coincidiram? Estava trabalhando em
Ready Player One há três anos. Tinha tempo de sobra enquanto os efeitos
digitais estavam sendo concluídos. E então li o roteiro de Os arquivos... e me
dei conta de que o que aconteceu em 1971 era escandalosamente semelhante ao que
está acontecendo hoje no Governo de nosso país. Senti que todos nós —Tom Hanks,
Meryl Streep, eu mesmo e os roteiristas e as produtoras— tínhamos uma
responsabilidade social; deveríamos relembrar a história para que entrasse no
ciclo de notícias atual. Fizemos um pouco como um serviço público. Ninguém
cobrou.
É como se você rodasse dois tipos de filmes: os de aventura
e aqueles que sente a necessidade de fazer. Preciso fazer todos eles. Inclusive
os que só podem ser avaliados como puro entretenimento escapista. Sinto a ânsia
de entreter, e também de chamar a atenção sobre temas relevantes para que os
jovens possam aprender com eles.
"Substituí minha família desfeita por personagens
quebrados através dos quais eu poderia contar minha própria história. Muitos
dos meus filmes contam como foi ser filho de pais divorciados."
Você faz alguns como puro divertimento e outros como serviço
público? Às vezes faço filmes porque sei que o público vai gostar deles, porque
são uma aventura, com muitos efeitos especiais e grandes personagens, e sei que
os espectadores vão gritar e rir e ficar loucos. Fiz Ready Player One por esse
motivo. Mas não teria escolhido se não tivesse essa mensagem tão relevante
sobre as decisões que temos de tomar hoje diante dessa alternativa:
comprometer-se com os assuntos sociais ou perder-se em um mundo de realidade
virtual.
Primeiro olha para trás, para a história, para explicar o
presente, e depois vai ao futuro, com o mesmo objetivo? A história está em toda
parte, nos rodeia. Está em nosso futuro e também em nosso passado. Adoro
história. Me deixa louco, é meu assunto favorito.
Um crítico afirma que você se tornou "nosso professor
de história natural". Suponho que já seja suficientemente velho. Não teria
reagido muito bem a isso há 20 anos, mas agora meu aspecto é mais o de um
professor. Então não me ofendo com a descrição, é acertada. Mas não sou um
cineasta didático. Não faço filmes apenas para dar uma lição. Cada um,
inclusive aqueles com uma mensagem contemporânea muito relevante que quero que
todos ouçam, também tem de ser divertido. The Post deveria ter suspense, e ser
rápido, não me interessava fazer um filme educativo tipo Discovery Channel que
fosse só remédio, sem nada de açúcar.
Remédio e açúcar, talvez seja a fórmula de sua conexão com o
público. Muito poucos chegam perto de seus números astronômicos. Seus 30
longas-metragens, sem atualizar valores, faturaram quase 32 milhões de reais.
Nos últimos 25 anos do século XX, dominou, com seu amigo George Lucas, a
bilheteria do mundo. O cinema mudou, assim como a forma de consumi-lo. O
reconhecimento chegou nos anos noventa, quando ganhou os três Oscars de sua
carreira (dois de melhor direção; um de melhor filme) com obras que continham, digamos,
mais remédio que açúcar, como A Lista de Schindler. Seus detratores, porém,
rechaçam seu excesso de doce; acusam-no de ter "infantilizado a
cultura". Mas há um fato incontestável: este senhor cuja barba vimos
envelhecer, e que hoje a usa muito bem cortada, ajudou a configurar a forma de
ver o mundo de várias gerações, capazes de reproduzir diálogos inteiros de sua
filmografia.
Você provavelmente moldou a mente de milhões de pessoas.
Isso não o faz sentir certa responsabilidade? Não sinto essa responsabilidade
porque nunca tive a intenção de chamar a atenção para mim mesmo. Sinto,
modestamente, que tive muita sorte em minha carreira. Adoro fazer cinema. Mas
não costumo olhar para trás. Não fico obcecado. Raramente volto a ver um filme
que dirigi. Só voltei a eles com meus filhos, como quando quiseram ver E.T.
Sabia que o início dava medo, então me sentei com eles, para que não fosse
angustiante demais. Costumo ficar bastante envolvido no planejamento do próximo
para olhar para trás.
Quantos projetos costuma ter em mente? Normalmente preparo
apenas um de cada vez, mas sempre estou pensando no que vou fazer quando
acabar, então tenho quatro ou cinco roteiros em desenvolvimento. Provavelmente
acabe dirigindo apenas um, mas esse trabalho tem de acontecer antes. De outra
forma haveria um parêntesis grande demais. E adoro trabalhar. Não gosto de
ficar em casa enquanto sonho em trabalhar. Gosto de sonhar enquanto trabalho.
Em algum momento você se descreveu assim: "Não era
divertido ser eu entre projetos". Não era! E continua não sendo. É
verdade... O medo, o estresse da infância e da adolescência, nunca vão embora.
Inclusive quando você passa da adolescência, ela permanece com você. Sempre me
senti melhor em ação do que na espera. Cuido de mim me fazendo trabalhar.
Há quem o critique —a você e George Lucas— por terem
empobrecido a cultura. A crítica mais habitual que escuto dirigida a George e a
mim é que inventamos o blockbuster. Sem dúvida, não inventamos. Cecil B.
DeMille inventou o blockbuster. E o vento levou... e D. W. Griffith inventaram
o blockbuster. Ao longo das décadas, centenas de filmes se tornaram os mais
populares da Terra. E quando as pessoas falam que Tubarão ou Star Wars
arruinaram o negócio porque os Estados Unidos desenvolveram uma mentalidade unicamente
voltada ao blockbuster, é uma teoria absolutamente corrompida nascida de
pessoas sem qualquer respeito pela história do cinema. O blockbuster existiu
desde o primeiro filme que se projetou em um nickelodeon [os primeiros cinemas,
que cobravam entrada de cinco centavos de dólar, um níquel].
A cultura de massa pode ser arte? Quem pode determinar o que
é arte? Quem tem o direito de dizer que há uma única definição e que esses
exemplos não caem dentro dessa categoria? Todo mundo tem direito a defini-la do
modo como percebe. Para mim existe arte em tudo. Inclusive nos filmes ruins.
Sempre há uma cena interessante e digo: "Esse momento foi tocado pela
genialidade". Encontro arte em todo lugar que olho; em filmes como Black
Panther: é tanto um triunfo artístico como comercial e cultural. Quando alguém
tenta estreitar o foco da arte para satisfazer sua própria definição, prefiro
não contar com esse indivíduo.
Sting, no auge de sua carreira, se perguntava: tenho sucesso
e dinheiro, sobre o que vou compor agora? Acredita que há um preço criativo a
pagar quando a pessoa se torna rica e é aplaudida? O único preço é a perda do
anonimato. É um preço baixo para mim. Mas foi uma imposição sobre minha
família. Quando meus filhos estavam crescendo e viam seu pai ser parado na rua
por estranhos, se perguntavam por que eu falava com essas pessoas que sequer
conhecia, por que não estava com eles. Era muito difícil estar em público.
Olhava meus filhos e eles não gostavam. Esse foi o lado ruim.
E do ponto de vista criativo? Veja, não sou o tipo de
criador que diz: sofro por minha arte. Não sofro por minha arte. Me deleito com
ela. Simplesmente, tenho uma nova vida quando estou trabalhando. Adoro fazer
filmes. Se me preocupo? Claro. Se me engano? Com frequência. Tenho inseguranças
no trabalho de todo dia? Sem dúvida. Mas isso para mim é combustível para
encontrar caminhos que me tirem do atoleiro em que gosto de me colocar. Porque
quanto mais nervoso estou como cineasta, mais ideias me vêm para resolver os
problemas que todos os cineastas encontram para contar histórias.
E se perder esse sentimento, tudo acaba? Isso não
aconteceria. O medo é meu combustível. Não gosto de sentir isso. Mas a
insegurança que o medo causa é a única coisa que realmente me inspira, com
ideias melhores para contar histórias de uma maneira diferente, e isso eu
adoro. Bem, eu não adoro, eu não gosto de sentir isso, mas trabalho melhor a
partir da ansiedade do que em um lugar de segurança.
O medo, o terror, estão muito presentes em sua filmografia.
E geralmente aparecem representados na forma de algo que persegue o
protagonista: dinossauros, uma grande pedra que rola, um caminhão sem
motorista, nazistas; elementos que provocam um deslocamento para a frente e
desencadeiam a ação. Em Tubarão, essa fuga e esse terror também estiveram
presentes durante as filmagens. Logo após o início das filmagens, o boneco
mecânico do tubarão quebrou. O conserto levou semanas, e fez com que o diretor
buscasse alternativas para não interromper a produção. Ele decidiu filmar parte
das cenas sem o bicho. E tirou do pânico que provavelmente sentia uma solução
que mudou o destino do filme: os protagonistas atiraram no tubarão arpões
amarrados a tambores flutuantes de plásticos. Essas boias que sulcavam a água
passaram a ser, aos olhos do público, o tubarão. Quanto mais perto, mais a
música acelerava. A mera sugestão da fera era ainda mais ameaçadora. Seus
filmes não são biográficos, mas é possível intuir aspectos de sua vida neles.
Há algo indistinto que parece persegui-lo desde a infância. Várias vezes, ele
exteriorizou citando o divórcio de seus pais, que destruiu o equilíbrio
familiar. Obsessões e traumas costumam ficar escondidos em um canto abandonado
da infância. E geralmente definem a motivação de pessoas criativas.
Você tem uma primeira lembrança relacionada ao que é hoje,
ao seu trabalho, uma dessas imagens que são compreendidas anos depois como um
primeiro flash que indicaria que você se tornaria um cineasta? Eu me lembro de
como era bom quando alguém lia para mim. Um sentimento caloroso e bonito de
parentalidade. Eu vivenciava isso quando minha avó me contava uma história aos
dois ou três anos de idade, quando meu pai lia ficção científica para mim aos
sete ou oito, quando minha mãe, em tenra idade, lia poesia. Adorava que lessem
para mim. Isso soltou minha imaginação. As palavras disparavam imagens em minha
mente, cabia a mim preencher as lacunas, a aparência dos monstros e dos anjos e
do herói e da heroína. Quando comecei a assistir filmes, não havia espaço para
a imaginação. Na maioria deles, todos os buracos tinham sido cobertos pelo
cineasta. Mesmo que envolvessem você com uma ótima história. E, se era boa,
gostava de ver de novo e de novo. Eu diria que o fato de terem lido para mim me
ajudou a criar uma linguagem visual que mais tarde foi muito útil em minha
carreira.
Como contou, Lawrence da Arábia foi marcante, especialmente
quando Peter O'Toole, ensanguentado, parece perguntar: "Quem sou
eu?". Por que você faz filmes? Para se entender melhor? Eu não observo do
ponto de vista intelectual. Me entendo o suficiente para perceber que não sei
nada. E então acho que me entendo e descubro que não sei mesmo. Se algum dia eu
descobrir quem eu realmente sou, não terei mais histórias para contar. Então
preciso manter essa opção aberta, sempre.
E não é essa a grande questão, quem somos nós? Sim, quem
somos, o que fazemos aqui. Mas a resposta não nos corresponde. A busca por essa
pergunta sobre quem somos nunca me paralisou. E, se eu não conseguir
encontrá-la, talvez o próximo projeto revele outra coisa. Mas também não é isso
que me leva a contar histórias. Não estou procurando um guia sobre o que me faz
ser quem sou. Fico entediado só de pensar nisso.
Por que você assiste filmes? Porque gosto de me perder. E de
perder o controle. E quanto melhor o filme, mais perco o controle. Viro um
personagem no palco de outro e adoro. Se for bom o suficiente, esqueço quem sou
e onde estou. Essa é a minha definição de uma grande história.
Seus filmes geralmente mostram uma visão positiva da vida:
se algo se quebra, pode ser consertado; se você quer algo, pode conseguir.
Compartilha essa visão da raça humana? Tenho uma visão muito positiva. Mesmo
quando as coisas parecem mais sombrias, sei que haverá um nascer do sol. Sempre
me convenci disso. Sou mais pragmático na vida real, sei que as coisas não
mudam de um dia para o outro. O que eu posso fazer é mudar as coisas de um dia
para o outro em um filme, e é por isso que eu adoro contar histórias, porque
posso manipular o fato de algo que leva 40 anos para mudar entre o segundo e o
terceiro ato. É uma das grandes vantagens deste ofício, e talvez a razão pela
qual me dedico a ele: porque sou capaz de controlar a mudança, no meu próprio
ritmo.
E para enviar uma mensagem... Tento mostrar às pessoas que
existe uma maneira melhor de resolver problemas. Alguns dos meus filmes fazem
isso.
Voltando ao seu tempo na E.T., quanto resta em você daquela
criança, Elliot, que precisa ser surpreendido pelo extraordinário? Eu criei
esse filme, com [a roteirista] Melissa Mathison, então Elliot está vivo dentro
de mim, e continua mexendo comigo. Ele estará comigo a vida toda. Eu me sinto
muito próximo dele. Sei o que é ser filho de um divórcio. E sei o que se sente
quando você tenta substituir um pai ausente por uma criatura ou um alienígena.
Substituí minha família desfeita por um monte de personagens quebrados através
dos quais eu poderia contar minha própria história. Nem todos os meus filmes,
mas muitos, vieram do que era ser filho de pais divorciados.
E, muitas vezes, uma criança comum diante do extraordinário.
Eu gosto do extraordinário porque não acontece todos os dias. E gosto de contar
histórias que não acontecem todos os dias. Não consigo fazer esse tipo de
filmes de Sundance, gosto muito e admiro o talento de quem consegue fazê-los.
Mas eu preciso acrescentar algo que está além do que acontece na vida real.
Agora ele tem 71 anos... Os 71 são os novos 51.
Boa resposta. E netos? Eu tenho quatro.
Há algo que considere essencial para transmitir
a eles, essa questão chave da vida? Eu sempre digo aos meus netos a mesma
coisa: antes de falar, pare e ouça o outro. É o que meu pai me dizia. E é o que
meu avô disse ao meu pai. E isso tem estado na minha linhagem e ao longo da
minha experiência neste planeta. É algo que aprendi desde criança: você tem de
ouvir, porque, senão, você não tem raízes e base para falar. Digo isso o tempo
todo: "Ei! Ouça".
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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