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Publicado originalmente no site da revista Literatura, em 7 de março de 2018
O que estamos fazendo com o nosso tempo?
Uma crônica só tem a obrigação de ser um respiro, uma pausa
entre falsas manchetes e notas
Crônica de Ellen Maria Vasconcelos*
Ao contrário da notícia de jornal, que tem data, local,
hora, temperatura e estação do ano definidos, além de uma determinada (ou nem
tão determinada assim) atmosfera política e outros fenômenos climáticos
validados por alguns profissionais do ramo, há quem diga que a literatura é
atemporal, já que busca arquitetar um salto quântico e engendrar um lapso no
espaço-tempo para permitir a identificação do leitor contemporâneo com a figura
do clássico herói grego, do medieval cavaleiro, do prisioneiro de guerra na
Sibéria, do jagunço sertanejo etc.
Você já viu, por um acaso, algum personagem literário,
protagonista ou secundário, monologar sobre a urgência da vacina da febre
amarela, defender a falta de opiniões nos elevadores ou analisar o excesso
delas nos pequenos botecos gourmets dos grandes centros urbanos? Não, claro que
não, leitor. Isso é coisa de cronista (ok, não só de cronista), mas
principalmente desses seres, nem glorificados nem humilhados, que se interessam
em discorrer tanto sobre os sentimentos e angústias das criaturas mundanas
quanto sobre os trending topics, comentários e memes das redes sociais.
Crônica é um espaço no papel em que a literatura ganha tempo
e, sincronicamente, já se despede dele. No dia seguinte, vai embrulhar sapatos,
transformar-se em cama de cachorro ou forrar gaiola de passarinho. Talvez possa
parecer uma bobagem falar da efemeridade da crônica no jornal ou revista em
tempos nos quais quase todo mundo lê exclusivamente pela tela do celular ou do
computador. Afinal, se jogamos um nome em qualquer ferramenta de busca, tudo o
que já saiu sobre ele, ainda que em épocas longevas ou lugares remotos, parece
cantar e sapatear debaixo de nossos indicadores, com somente um clique de
distância. Uma vez na nuvem, uma informação parece ficar para sempre armazenada
em cinquenta tons de pixels.
No entanto, se já nos assombrávamos com a duração de um
periódico quando ele era diário, por que haveríamos de duvidar de sua
transitoriedade quando, na internet, um algoritmo virtual nos dificulta de
visualizar duas vezes a mesma mensagem para nos revelar, a cada F5 automático,
algo “inédito” aos nossos corações e mentes, ou quando uma notícia é reeditada
quatro ou cinco vezes por hora, a cada traço de mudança do acontecimento?
Como o narrador Brás Cubas, que revela de antemão ao seu
leitor a passagem do tempo, a crônica, da mais atual à mais antiga, sempre
antecipou seu próprio fim, mesmo que mirasse a posteridade. Sua duração é
apenas a do correr dos olhos. E ao menos para aqueles que a escrevem, ter essa
atenção do leitor contemporâneo, da primeira à última linha, já é um presente
raro. A lista de pendências aumenta e “cabisbaixeamos” mais uma vez para
verificar o celular. Sim, somos todos procrastinadores, ladrões do próprio
relógio.
E se profanamos de Chronos sem nem ao menos corar a face,
somos também todos, muitos sem saber, adoradores da Crônica. Uma crônica não
tem a obrigação de conservar-se em um altar, nem de só tratar de prosa leve ou
desimportante, como postulava Olavo Bilac e José de Alencar. Tampouco impõe uma
escrita necessariamente com ares de casa ou ao rés do chão, como afirmava
Antonio Cândido.
Sem precisar proporcionar detalhes muito subjetivos como em
um diário pessoal, nem tão objetivos quanto em uma seção policial, nem
sobejamente líricos como em um poema, a crônica tem a liberdade tanto de
mergulhar em águas profundas quanto de apenas molhar os dedos dos pés na borda
da piscina. Uma crônica só tem a obrigação de ser um respiro, um instante, uma
pausa entre falsas manchetes e notas, entre editais e imagens editadas. Assim,
simplesmente, sem mal-entendidos, ser só uma crônica. Será que é possível?
*Ellen Maria Vasconcelos é escritora, autora dos livros
Gravidade (2018) e Chacharitas & gambuzinos (2015), ambos publicados pela
Editora Patuá.
Texto e imagem reproduzidos do site: conhecimentoliteratura.com.br
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