domingo, 30 de novembro de 2025

António Damásio: "Não é impossível fazer consciência artificial"


Entrevista compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 29 de novembro de 2025

António Damásio: "Não é impossível fazer consciência artificial".

O que significa consciência? Como é que os sentimentos falam com o cérebro? Onde está o bem e o mal na biologia? São temas de conversa nesta entrevista e no novo livro do neurocientista. Alexandra Carita para o Observador:

António Damásio é, há décadas, um dos mais proeminentes neurocientistas do mundo. A sua investigação tem vindo a ensinar-nos a pensar o ser humano de uma outra forma e a rever a matéria dada sobre comportamentos, afetos e emoções. É professor catedrático e diretor do Brain and Creativity Institute na Universidade de Southern California, em Los Angeles. Agora, em A Inteligência Natural & a Lógica da Consciência, o livro que acaba de lançar pela Temas & Debates, apresenta-nos um cérebro que conversa em contínuo com o corpo e os seus sentimentos. E explica da forma mais simples a complexidade da nossa condição biológica. Em conversa com o Observador, António Damásio traça as linhas que definem a nossa inteligência e que tanto a distinguem da novíssima Inteligência Artificial. Otimista q.b., acredita que a vulnerabilidade é a chave para uma IA mais parecida connosco.

Este novo livro fala sobre a Inteligência Natural num momento em que estamos todos a falar da Inteligência Artificial. Foi preciso aparecer esta inteligência artificial para nos questionarmos sobre o que é a inteligência natural, no fundo, a única que conhecíamos?

Sim, essa é a única, é a nossa, a que temos.

De que forma ela se diferencia da inteligência artificial, que é a que nos assusta?

A Inteligência Natural é esta junção magnífica entre o nosso corpo e a sua inteligência e a inteligência que o cérebro nos dá. Esse cérebro tão complexo que tem uma componente afetiva, aquilo a que chamo The Feeling Mind, a Mente que Sente, e uma outra a que chamo a Mente Percetual/Reflexiva/Linguística, uma outra componente ou uma outra história.

Uma outra história porque isso significa que funcionam ao mesmo tempo, mas em partes diferentes do cérebro?

Funcionam ao mesmo tempo, mas em partes diferentes do cérebro, exatamente. E essas partes diferentes têm uma origem evolutiva diferente também. Tudo aquilo que tem a ver com a nossa inteligência afetiva é extremamente antigo, entre aspas, em matéria de evolução, enquanto que a inteligência que tem a ver com a perceção, com a linguagem e com a reflexão e a criatividade, é uma inteligência muito mais moderna, também porque vem de um cérebro muito mais moderno. Em termos gerais, tudo o que tem a ver com o afeto vem antes do córtex cerebral, enquanto que grande parte daquilo que acontece com a inteligência percetual, linguística e reflexiva vem do córtex cerebral. Para mim, isto são coisas perfeitamente óbvias e têm-no sido há décadas, mas que para as pessoas que trabalham neste campo não são. De certa maneira, estou a dizer neste livro uma série de coisas muito óbvias, mas que não são óbvias de todo para os outros neurocientistas, e é por isso que é preciso dizê-las.

Ao lê-lo, percebe-se que defende que há uma relação contínua, constante, entre os sentimentos, tudo o que sentimos através do corpo, e o cérebro. É um diálogo entre os sentimentos e a consciência, consciência essa que vai atuar precisamente ao receber a informação que esses sentimentos lhe dão.
Exato.

E vai atuar sempre no mesmo sentido, no sentido da homeostasia, um conceito que podemos definir como equilíbrio, bem-estar?

Antes ainda do equilíbrio e do bem-estar, a homeostasia atua no sentido de salvar a vida. É essa a lógica da consciência. A verdadeira razão de todos estes desenvolvimentos evolutivos tem a ver com a vida. A natureza não só inventou a vida, como também está extremamente preocupada em que a vida não desapareça. Defendo que os sentimentos apareceram pela primeira vez como sistemas de alerta.
Sentinelas?

Sentinelas, sim, belíssima palavra em português. Podemos dizer que a natureza criou a vida e ao mesmo tempo tem imensas preocupações para que essa vida não desapareça. Esta é uma forma de descrever o processo, evidentemente. Primeiro houve a invenção da vida, e claro que a vida é extremamente arriscada, a probabilidade de perder a vida ou de a vida ficar doente é muito alta. Todos estes mecanismos que têm aparecido na natureza são mecanismos que visam reduzir a probabilidade da doença e reduzir a probabilidade da morte. É um jogo curioso pensar que a natureza, que não é evidentemente uma pessoa, tem uma inteligência implícita: uma vez que foi criada vida, vamos tentar mantê-la! Vamos salvar essa vida. Tudo o que se tem desenvolvido em termos dos nossos sistemas nervosos da nossa mente, visa a manutenção da vida. E, às vezes, e o que é o lado bom, visa também uma espécie de prémio pela boa manutenção da vida, que é aquilo a que chamo prazer. O prazer é o prémio pelas coisas funcionarem bem, por estarmos a fazer o que devíamos.

Por estarmos atentos àquilo que o próprio corpo nos diz?

Exato. Os sentimentos homeostáticos são isso mesmo, são esses alertas, ou sentinelas, gosto muito da palavra que usou.

Como é que algo tão complexo pode no fundo ser tão simples, como nos mostra neste livro?

Gosto de escrever e gosto de explicar. Quando uma pessoa está interessada em mecanismos, na realidade dos mecanismos e em que é que eles resultam, pode haver também um gosto pela forma como exprimimos esses problemas. Gosto de escrever, pensei mesmo, durante uns tempos da minha vida, que ia ser poeta ou escritor. Foi muito melhor que ficasse neurocientista.

Este mistério tão profundo que é o cérebro, um mistério que nos anima a todos e a todos desanima, e que nos põe a pensar sobre nós próprios e a existência, deve ser o mais estimulante que existe para estudar…

É, é muito estimulante. E este tema da consciência que desenvolvo neste livro é especialmente estimulante. Este foi um livro que gostei de escrever porque o que digo é, por um lado, tão natural e tão lógico, mas, por outro lado, é tão diferente do modo dominante como a neurociência tem abordado a consciência, que me dá muito gosto fazê-lo. Grande parte das teorias sobre consciência, pelo menos dos últimos 30 anos, são defendidas por pessoas — algumas das quais são minhas amigas, de quem gosto muito — que pensam de forma diametralmente oposta à minha. O princípio destes desenvolvimentos surge muito à volta do trabalho de Francis Crick [(1916-2004) biólogo molecular e neurocientista britânico que descobriu a estrutura da molécula do ADN], pessoa notabilíssima e um grande amigo, e nós discordávamos completamente da forma de abordar este problema. Francis Crick dizia-me sempre que o córtex cerebral é a coisa mais sofisticada que temos no nosso organismo, o que é verdade, a consciência é a coisa mais notável que temos na nossa vida, o que se pode debater mas que é aceitável. E para ele, o córtex cerebral tinha que ser o que criava a consciência. E isso está fundamentalmente errado.

O que o professor António Damásio nos diz é que o que cria a consciência é tudo aquilo que sentimos…

Sim. E o que sentimos vem-nos do tronco cerebral, vem-nos da parte mais velha do nosso sistema nervoso central. Quando toda a informação do corpo entra na medula espinal e depois caminha para o tronco cerebral, é aí que se constroem os sentimentos e é aí que se constrói a possibilidade da consciência. Já o córtex cerebral dá-nos a possibilidade de descrever esta sala, por exemplo, e o facto de que é oval em vez de ser circular ou quadrada, e dá-nos os pormenores da forma como esta mesa foi trabalhada com estes embutidos e está polida. Tudo isto é muito bonito, mas tudo isto requer uma forma de apreciação da realidade através da visão, do sistema auditivo, ou do tato, o que é realmente muito sofisticado. Aquilo que temos na nossa visão é extraordinário, a maneira como podemos descrever o mundo que nos rodeia… É muito mais penoso para o cérebro, e muito mais detalhado e pormenorizado do que aquilo que se passa ao nível dos sentimentos. Os sentimentos são uma espécie de coisa bruta, algo de brutal que nos está constantemente a dizer, olhando para todo o corpo, para todos os pedaços do nosso corpo, que isto está bem ou menos bem, ou há aqui um problema, ou isto está ótimo.

É uma avaliação?

Isso, é uma avaliação, um descobrir de qualidades e depois um descobrir de quantidades. Enquanto que aquilo que estamos a fazer com a nossa visão ou com a audição é analisar os pormenores e descrevê-los. Uma coisa é descrever qualidades e quantidades, que é o que acontece com os sentimentos, outra coisa é descrever os pormenores da realidade que nos rodeia. O descrever dos pormenores é do ponto de vista do sistema nervoso extremamente duro e extremamente sofisticado, esta é talvez a melhor palavra porque há tantos pormenores. Enquanto que no que diz respeito aos sentimentos tudo é mais vago, não tem que ser pormenorizado. É mais, menos, bom, mau, simpático, antipático.

Podemos dizer que damos mais importância aos sentimentos do que àquilo que estamos a querer descrever?

Normalmente, a nossa vantagem é dar mais importância aos sentimentos. O que vai muito contra a tendência atual quando se olha para aquilo que está a acontecer na nossa cultura. Há, ao mesmo tempo, uma preocupação com os sentimentos, o que é óbvio. Se as pessoas querem a felicidade, têm de querer certos sentimentos. Mas, ao mesmo tempo, é como se aquilo que contasse mais fosse aquilo que eu descrevo como digital. E é fundamental percebermos que, de certo modo, os sentimentos são um processo analógico. Tudo aquilo que tem a ver com o córtex cerebral e com a nossa perceção pormenorizada é digital. Não é que o nosso sistema nervoso seja ou digital ou analógico, é ambos, tal como é percetivo e sentimental também.

Tudo isso envolve um eu, um eu a que chama “experienciador” e “percecionador”, um eu individual e que está em primeiro lugar…

É a esse eu que chegamos através deste processo.

Qual é a diferença entre a consciência de que fala, que é a consciência de nós e de que existimos, e a consciência moral ou ética de que falamos normalmente quando falamos, por exemplo, em “peso na consciência”?

A língua portuguesa, tal como a francesa ou a italiana e a espanhola, tem um grande problema: não arranjou uma palavra separada para a consciência de que estamos a falar aqui. Quando se diz consciência, mistura-se constantemente o sentido de consciousness com o de conscience, em inglês, o sentido de consciência de nós com o de consciência moral. Isso é um enorme problema porque leva estas várias culturas latinas a confundirem as duas coisas e é muito difícil para as pessoas, a não ser que façam um esforço filosófico de separação dos conceitos, perceberem do que é que se está a falar. Dir-lhe-ia que a maioria das pessoas com quem se fala que não sejam especialistas na matéria ouvem a palavra consciência e pensam nesse lado moral e é por isso que têm um temor enorme em discutir a consciência. Claro que nas culturas latinas, que ainda por cima são religiosas, o problema é ainda maior.

No entanto, há algo que liga essas duas consciências. Há um momento no livro em que nos explica que para essa tal homeostasia individual, o bem-estar ou equilíbrio, ou manutenção da vida, de que começámos por falar, nos preocupamos com a homeostasia do outro. Ora aí parece-me que essa preocupação com o bem-estar do outro se aproxima dessa consciência moral…

É verdade. Tem outras raízes. Não surge porque Deus Nosso Senhor veio à terra para nos dizer o que devemos fazer. Mas, para começar, percebamos que a natureza tem preocupações com o outro porque se o outro não tiver bem-estar o nosso bem-estar também sofre. As razões são muito diferentes.

São mais egoístas.

São absolutamente egoístas. Temos caridade com o outro porque não ter caridade com o outro é mau para nós. Não é Jesus vindo à terra a dizer-nos “isto é o que devem fazer”…

Se calhar Jesus só veio à terra para nos dizer isso porque a nossa consciência primeira precisa de uma palavra.

É exatamente isso. No fundo, grande parte das coisas que criamos culturalmente, quer sejam histórias, quer sejam poemas, quer seja a grande e enorme sabedoria que aparece na Bíblia, são o resultado e uma projeção daquilo que somos biologicamente e nem podia ser de outra maneira. Somos o que somos biologicamente e essa biologia leva-nos, curiosamente, mais para o bem do que para o mal.

Isso é uma esperança?

Neste momento, politicamente, não se percebe que haja nem esperança nem governo, mas sim, é exatamente assim, pendemos para o bem. É de facto excelente termos na nossa natureza, por razões que têm a ver com o egoísmo da nossa condição, a necessidade de ter também um altruísmo.

Se não formos altruístas, o nosso bem-estar pode ser posto em causa? Dessa forma egoísta é que somos os tais altruístas?

Exato.

Quando fala destes outros fenómenos sociais, não só da religião, mas também da economia, da política e da sociedade em geral, fala numa construção ou projeção de nós, indivíduos biologicamente ativos.

Trata-se efetivamente de uma projeção. Quanto mais soubermos sobre a nossa fisiologia fundamental, quanto mais soubermos sobre a nossa natureza biológica, melhor podemos compreender a nossa situação no mundo, e melhor podemos compreender até que ponto há certas coisas que são verdadeiramente inventadas de novo e coisas que são criações, trabalhos à volta daquilo que somos. Grande parte daquilo que é o nosso altruísmo é um resultado daquilo que somos biologicamente. Quando se escreve um poema sobre o amor, há também uma projeção daquilo que somos biologicamente quando estamos apaixonados, mas há mais novidade, é menos restrito. Quando se pinta um quadro, como a Vieira da Silva, há coisas que vêm da nossa natureza, é evidente, da nossa perceção visual, mas é muito mais liberto, muito mais livre de todos esses arranjos biológicos que temos.

Vem tudo daí, no entanto?

Claro. Vem tudo do mesmo cérebro a trabalhar juntamente com o corpo. Sempre que as pessoas querem arranjar explicações para a consciência e que querem só o cérebro, dá asneira. Não funciona. A lógica de tudo isto é que há um corpo. Primeiro a vida, a vida está num corpo e quanto mais se complica a estrutura, quanto mais a estrutura aumenta e se diferencia, mais há necessidade de verificar que se inclui sempre o corpo. É sempre tudo por causa do corpo, é sempre tudo por causa da vida.

Tudo isto serve para salvar a vida e um corpo sem vida não existe, podemos resumir assim?

A lógica está toda aí. Estamos sempre à procura de manter a vida e de manter uma vida em bem-estar. E essa é a lógica de tudo o que criamos, numa replicação da mesma necessidade, que é manter a vida.

Só que tudo isso é tão complicado que chega a ser confuso que o possamos explicar de forma tão simples…

São precisas duas coisas. Primeiro: ter dados científicos, portanto fazer a observação daquilo que é a realidade biológica. Depois: refletir sobre essa realidade. Grande parte da melhor ciência é o resultado das duas coisas. Um microscópio ou a forma de fazer um ensaio químico são maneiras para descobrir mais pormenores da realidade, por si só conseguem-se fazer vários progressos. Mas por si só não têm a profundidade que resulta de ter esses dados e depois refletir sobre esses dados e perguntar-se como é que isto faz sentido. Porque é que existe ADN e ARN da forma que existe? A boa ciência no meu entender tem essas duas coisas. Tem um lado que procura dados cada vez com mais profundidade e tem, por outro, reflexão sobre esses dados de forma que se possa construir uma história que faça sentido.

Para aí também concorrem outras disciplinas. Desde a filosofia à psicologia e até à música, de que também fala.

Há uma reunião de disciplinas que pode conduzir a um melhor trabalho. Não vamos estar vivos daqui a cem anos, mas daqui a cem anos haverá, se as pessoas não destruírem o mundo entretanto, maneiras ainda mais profundas de compreender toda esta biologia.

Fala com otimismo?

Com algum otimismo, sim.

Apesar da Inteligência Artificial ainda não ser vulnerável? Avança neste livro com a vulnerabilidade como chave para os problemas levantados atualmente pelos sistemas de IA.

O conceito de vulnerabilidade tem muito a ver com aquilo de que estivemos a falar. É esse descobrir da nossa vulnerabilidade e o descobrir da vulnerabilidade do outro que nos leva a ter certos comportamentos. As pessoas que trabalham em IA estão completamente dominadas pelo pormenor da IA, pelo facto de que existe — e também, em grande parte dos casos, pelo facto de que é uma coisa altamente utilizável e altamente comerciável. Falei esta semana com o português Fernando Pereira, [vice-presidente da Google DeepMind], na Fundação Champalimaud, e surpreendeu-me por não ser assim e por ser tão raro. Aquilo que estamos a viver neste momento é o delírio da descoberta da IA. É quase impossível abrir um jornal ou uma revista sem encontrar um artigo ou uma notícia sobre IA. O que não é comum é encontrar pessoas que sabem onde é que a inteligência artificial fica no grande esquema das coisas. O Fernando Pereira percebe isso perfeitamente porque é um cientista, um cientista que tem trabalhado em sistemas digitais, mas que está muito mais preocupado, embora esteja em companhias que fazem milhões de dólares, em perceber o que são as coisas do que em perceber como é que se vai comercializar um produto, ou como é que esse produto se adequa ou não à vida diária. E falei com ele sobre a questão precisamente da vulnerabilidade, que é uma coisa rara e que tem que ser introduzida artificialmente dentro de um sistema artificial e que é uma das chaves para aproximar esses sistemas daquilo que são os sistemas vivos.

É fazer com que esse sistema artificial sinta? Sinta uma ameaça?

É fazer com que esse sistema artificial sinta uma ameaça artificial. É tudo artificial.

Mas é para que de uma certa forma esse sistema artificial se comporte como um humano?

Exato. Uma vez que um dos grandes problemas da IA é que não está inserida num esquema biológico de evolução e não há parceiros. Um sistema artificial é um sistema isolado. E o que não tem acontecido é a possibilidade desse sistema artificial perceber o que se está a passar com outro sistema artificial e fazer qualquer coisa como a entreajuda de que estávamos a falar aqui. Isso não existe na IA. O que existe são sistemas muito, muito artificiais que estão perfeitamente longe daquilo que é o ser humano, ou um ser biológico complexo. Não há entendimentos de cooperação por exemplo. Mas é possível desenhar esses entendimentos artificialmente. Chegámos noutro dia à ideia de que é possível desenhar sistemas que façam aproximações sucessivas daquilo a que são os sistemas humanos. Continuarão a ser artificias, não há a carne que vai sofrer e que vai estar em risco. Mas quanto melhor apreciarmos aquilo que são os seres vivos, mais possível é aproximar os sistemas artificiais desses seres vivos. Se soubermos com muito pormenor quais são as linhas fundamentais que descrevem um ser vivo, então é possível transpor algumas dessas linhas e desses conhecimentos para os sistemas artificiais. Quando as pessoas me perguntam se é possível haver consciência artificial, normalmente digo que não é. E não é porque os sistemas não a tenham, mas é diferente de dizer que nunca vai haver. Tenho impressão de que é possível chegar a aproximações quanto mais pudermos transpor aquilo que é a biologia para um sistema artificial. E é muito bem possível que haja certas transposições que de repente façam aparecer qualquer coisa que parece uma consciência. Portanto, não é impossível fazer consciência artificial, o que não é possível é fazê-la com os sistemas artificiais de hoje.

Com certeza que teria de ser também com as pessoas certas a fazer esse trabalho?

É preciso uma quantidade de avanços e desenvolvimentos e uma conjunção muito benigna para chegarmos a tal coisa.

Que é tudo o que não temos neste momento?

Neste momento não temos. E torna-se ainda mais difícil por todas as razões, por exemplo, comerciais que estão por detrás da IA. A IA e todos estes dispositivos estão a responder a certas necessidades — mais uma vez entre aspas — que as pessoas têm. Os sistemas dos nossos telemóveis, a maneira de organizar dados têm princípios que são muito, muito diferentes dos princípios da biologia e dos princípios da vida. Tudo isto é simples, como vê.

Parece simples. É com certeza muito mais complexo ainda do que conseguimos, nós, leigos, perceber.
Não é simples, não. Mas é curioso e é simpático sentir que há certos progressos e especialmente compreender aquilo que é a vida e a forma como a regulamos. Isso é extraordinariamente importante.

Não sente algum receio, e falando do contexto político atual nos EUA, de que todos estes avanços e estes estudos sejam condicionados pela liberdade ou falta dela para continuar a entender a biologia, ou a produzir ciência?

Claro que sinto. Há uma enorme preocupação. Há certos dias em que há muita esperança em que as coisas se componham e que as pessoas percebam o absurdo de certas posições, mas, por outro lado, o dinheiro é uma coisa muito importante e é o dinheiro que governa grande parte das decisões de certos organismos políticos. E isto não é só nos EUA. É claro que os EUA são um caso extremo. E são um caso extremo talvez porque o que se está a passar é tão diferente daquilo que definiu os EUA. Falo de coisas como liberdade e generosidade. Tudo isso de repente desaparece para dar lugar a uma preocupação com dinheiro e sucesso que tem a ver com dinheiro. Mas isto também está a passar-se noutros países. Preocupa-me que sistemas sociais e políticos estejam a abandonar o habitual desejo de liberdade, de generosidade e de apoio aos seres humanos para qualquer coisa que é muito mais egoísta no sentido literal do termo.

O dinheiro também passa a ser uma preocupação das instituições científicas se deixarem de ser apoiadas e não puderem trabalhar.

Claro. Há e vai haver restrições de generosidade em sistemas de subvenções, por exemplo. Não é possível fazer ciência, esta ciência de que estamos a falar, se não houver subvenções dos governos dos países mais ricos e que mais têm tradição científica. Mas tudo está a mexer. Neste momento, o mecenato também está a desenvolver-se, o que pode compensar em parte a falta de subvenções. O que é certo é que as coisas são muito mais difíceis. É muito mais difícil fazer ciência hoje do que fazer ciência há 20 anos ou há 50, exatamente por causa das restrições ao nível das subvenções. E enquanto for só o dinheiro… o pior é se houver mais restrições que têm que ver com as ideias. Então aí é o fim.

Quem é que mais o procura, jovens?

Sim, muitos. E isso é um aspeto positivo que tem a ver com a disseminação de conhecimentos através de redes socias. Há muito mais pessoas que sabem aquilo que os cientistas fazem do que havia há dez anos. O meu email está sempre cheio de pedidos de pessoas que querem vir estudar connosco, que fazem perguntas, que pedem opiniões. O interesse é enorme.

E em relação ao cérebro, ainda nos falta saber muita coisa?

Tanta. Mas é possível que estejamos a atravessar um momento de pico em que sabemos o suficiente para avançar do ponto de vista de possibilidades teóricas, coisa que não existia há 30 ou 40 anos. A conversa que tivemos aqui sobre sentimentos e consciência é uma conversa que seria impossível há 50 anos.

Porque não conseguiríamos entender estes conceitos?

Exato. Ainda não tínhamos tido a possibilidade de raciocinar sobre estes conceitos. Um dos locais de ciência mais interessantes na nossa vida, minha e da Hanna [Hanna Damásio, sua mulher e também neurocientista], foi o Salk Institute, em La Jolla, em San Diego, na Califórnia, [instituto de investigação biológica], um sítio muito particular, de uma beleza arquitetónica tremenda e onde se juntaram uma série de pessoas de alto calibre científico, por exemplo Francis Crick, que deixou a Inglaterra e foi sediar-se lá, ou o Jonas Salk, o inventor da vacina para a poliomielite, que é uma invenção absolutamente lapidar. Havia ali um grupo de pessoas que o que mais faziam era conversar sobre isto. Aquilo que se conversava era este tema geral, mas não com a profundidade que temos hoje. Pensando naquilo que se estava a passar nessa altura, havia muitas, muitas questões que estavam em aberto e em ponto de interrogação. Quando lhe falei da conversa com o Francis Crick é exatamente isso. Aquilo que ele estava a afirmar eu podia contrariar de um ponto de vista daquilo que era a minha ideia geral, mas não tinha os dados para lhe dizer não, aquilo que me está a dizer é uma burrice. Não era possível. Aí o progresso é de facto excelente e tenho impressão que vai continuar inevitavelmente.

Texto e imagens reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

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