terça-feira, 6 de junho de 2023

Revista Unamuno ENTREVISTA o escritor Alexandre Soares Silva

Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 4 de junho de 2023

Entrevista de Alexandre Soares Silva à revista Unamuno

O escritor Alexandre Soares Silva, o @LordAss do Twitter, concede entrevista a Lucas Lima da Unamuno:

Alexandre Soares Silva nasceu em 1968, publicou os romances A Coisa não Deus(2015), Morte e Vida Celestina(2004), A Alma da Festa(2013) e o mais recente, Totolino(2022), além do livro de contos O Homem que Lia os seus Próprios Pensamentos(2021) e da coletânea de ensaios intitulada A Humanidade é uma Gorda Dançando em um Banquinho(2016). Trabalha como roteirista, tendo ajudado a escrever os roteiros da série O Negócio e do filme Pronto, Falei, escreve uma coluna na Revista Crusoé e mora em São Paulo.

1. Em que momento você percebeu que queria ser escritor? Como foi essa descoberta?

Foi de repente, quando eu tinha uns oito anos. Peguei um caderno e saí escrevendo uma história. Era uma história bem imbecil, que demonstrava uma falta de lógica enorme, mas eu me diverti escrevendo. Durante toda a adolescência escrevi histórias policiais ou de aventura. Eu tinha um detetive brasileiro que vivia em Londres na época de Sherlock Holmes e caçava um criminoso que matava as pessoas pra roubar “o suco cerebral” (era assim que estava escrito) e, com litros de suco cerebral, curar a sua noiva que estava louca. Tinha também um detetive chamado Albrecht Asper, que era um relojoeiro que vivia numa cidadezinha da Suíça e que resolvia todos os casos comparando com um relógio (“Gott im Himmel! Está faltando só um peça… Uma pequena engrrrenagem na mecanismo… Mas o que poderrá ser?”, etc).

2. Sendo você essencialmente um contista, mais acostumado com narrativas curtas, qual é a principal dificuldade que enfrenta na hora de escrever romances?

Minha dificuldade principal escrevendo romances não é nem a história, é o estilo. Quando escrevo contos, não planejo nada, deixo que as palavras e as frases que vão surgindo me levem pra onde elas querem ir (é mais ou menos isso mesmo). Se surge na minha cabeça uma boa frase dizendo que o personagem fez algo que eu nem queria que ele fizesse, paciência, mantenho a frase e deixo a história ir pra esse lado. As palavras meio que mandam no conto. George Orwell disse que é errado fazer isso, mas c’est dommage, George Orwell. Mas escrevendo romances planejo a história antes, sei pra onde ela vai, e as palavras têm que surgir depois, descrevendo penosamente o pensamento que já tive. E fazendo isso desse jeito é sempre mais difícil que a palavra certa surja na sua cabeça.

3. E o seu processo de escrita, como se dá? Adota uma rotina e elabora planos, ou prefere apenas seguir os ditames da inspiração?

Ultimamente não tenho nenhuma rotina. Só uma regra, que é não deixar passar um dia sem escrever nada. Pode ser pouco, pode ser só leitura e revisão do que foi escrito no dia anterior, mas alguma coisa eu tenho que escrever.

4. Jules Renard em seu Journal diz que tudo o que faz de um homem escritor já se encontra manifesto em seu livro de estréia, e que pelo resto da vida ele não faz outra coisa senão repetir, embora de maneira aprimorada, o que ali foi dito. Chama a isso “sinais particulares” ou “distintivos”. Quais seriam esses sinais em sua obra, aquilo que o diferencia maximamente dos outros?

Espero que não seja verdade: meu primeiro livro (que escrevi com 8 anos) era a história de um menino chamado Hugo que, quando a avó desaparecia, pegava o seu “carro favorito” e saía procurando por ela pelo mundo inteiro. No final do livro ele voltava pra casa, vinte anos depois, e descobria que a avó tinha ficado cochilando num quarto da casa esse tempo todo. E o meu primeiro livro publicado era a história de um aventureiro cujo animal de estimação era a sua própria tênia. Eu espero não estar repetindo essas coisas nos meus livros. Não sei se existe algo em comum neles, tematicamente. Acho que não é bom pra um escritor ser muito consciente dessas coisas. Timidez, como tema, é algo que de vez em quando aparece. E há a idéia, talvez, circulando por tudo (um pouco menos em Totolino) de que a vida não é tão ruim quanto dizem.

5. Como foi a gênese de Totolino, seu último romance publicado? Um livro que em tese é realista mas segue a lógica dos sonhos é bastante original. Você o classifica como realismo fantástico?

Faz algum tempo me veio a idéia de escrever um romance realista, com uma trama realista reconhecível, em que coisas estranhas acontecessem sem que ninguém estranhasse. O primeiro rascunho que escrevi começava com pessoas fazendo churrasco em cima da barriga de uma baleia morta gigantesca flutuando em Angra dos Reis, e o que as pessoas falavam nesse churrasco era normal, cotidiano, realista, até um pouco desenxabido pra contrastar com o cenário. Mas daí me lembrei de um pesadelo que tive. Não sei quantos anos atrás tive um pesadelo que é igual ao primeiro capítulo do livro, com um psicopata italiano que saía pelas ruas cantando ópera de maneira exageradamente alta e emotiva, entrava na casa de uma costureira e a matava e torturava cantando ópera, chorando, chorando de pena da vítima e de si mesmo. Era uma autopiedade repugnante. E daí decidi usar esse psicopata como o centro do livro. Eu queria ver se era possível de alguma maneira usar a estrutura dos sonhos (se você perde o braço em um sonho, no sonho seguinte o braço está lá de novo) numa estrutura de romance mais-ou-menos realista. Não gosto da palavra “experimental” quando aplicado à literatura, mas foi uma experiência interessante de fazer.

6. Existe alguma técnica eficaz para lembrarmos dos nossos sonhos e os transformarmos na matéria dos nossos escritos, da mesma forma que você faz? Anotá-los é uma boa idéia?

Anotar todo dia de manhã, sim, parece a melhor coisa. Dá trabalho, mas com o tempo você vai lembrando cada vez mais. Os livros sobre o assunto também recomendam que você diga pra si mesmo antes de dormir: “Amanhã quando acordar vou lembrar os meus sonhos.” Mas quando eu digo isso pra mim, aí é que não lembro mesmo.

7. Recentemente um artigo seu deu muito o que falar. No título, você ironizava pautas esquerdistas. Algumas pessoas, não o conhecendo nem entendendo o que ali ia escrito, pensaram que você na verdade estava defendendo as idéias das quais fazia troça. Acredita que enfrentamos hoje uma crise de inteligência como jamais houve em toda a história? Há solução?

Não sei se jamais houve na história. Como era a inteligência dos escravos egípcios? Sempre lembro de uma frase de Paulo Francis ao comentar alguma celebridade ou político dos anos noventa (não lembro quem). Ele escreveu que em uma época mais sábia essa pessoa estaria empregada numa estrebaria “lavando o membro do cavalo” (é assim que ele escreveu no jornal, e eu gosto desse eufemismo aí). Eu sempre penso nessa frase, ela é útil. Quando vejo gente como o Gilmar Mendes penso nisso, “Em outra época ele estaria lavando o membro do cavalo, dizendo “Bom dia, senhor Marquês, já já termino”, etc. A maior parte dos escritores, leitores, gente de Twitter etc, em outra época estaria empregado lavando o membro do cavalo. Eles não são mais burros que as gerações anteriores, eles só aprenderam a escrever (mais ou menos). E a única solução é pararmos de encarar a burrice como um problema e encarar como uma condição permanente e engraçada da vida — porque é.

8. A ideologia pode ser considerada uma negação da fecundidade e da liberdade do espírito criador? É ela o cerne do problema por que tem passado a nossa literatura nos últimos 50 anos?

Nos últimos 50 anos, não sei, mas nos últimos dez certamente: tudo é raça, raça, raça, gênero, gênero, gênero; todas as histórias são de mulheres espancadas, negros espancados, índios espancados, mexicanos espancados, piauienses espancados etc. Até autores que escreviam mais ou menos honestamente nos anos 90 estão de repente escrevendo romances sobre os sofrimentos dos índios. Todo romance nacional agora parece sair de uma reunião de pauta de um jornal ou de uma revista online ativista. Eu queria ler um autor que não lê jornal. E é por isso que não leio jornal nem livros contemporâneos. Se eu tiver preconceitos, como é inevitável ter, não quero ter preconceitos da nossa época como todo mundo. Quero ter preconceitos da minha época favorita, que é 1800-1915.

9. Quais escritores contemporâneos mais o agradam e definitivamente merecem ser lidos?

Não muitos, por uma questão de gosto prefiro ler os mortos, mas entre os vivos meus favoritos são Mark Helprin e Edward St Aubyn.

10. E os escritores que mais o influenciaram literariamente? Vejo-o mencionar com freqüência P. G. Wodehouse, autor pouco conhecido no Brasil. É ele o seu favorito?

Sim, é. É um dos poucos, talvez o único, autor que consegue ser engraçado sem ser maldoso. É um humor gentil e nem por isso sem graça. É realmente engraçado. E parece escrever sobre o Céu, ou algo próximo do Céu. É um mundo sem grandes maldades. O maior sofrimento que você pode ter num livro de Wodehouse é a visita de uma tia severa ou o noivado com uma mulher que quer que você leia livros sérios. Ninguém morre gritando de dor nem nada disso. É até um choque quando ele diz que alguém morreu. Eu queria ter esse tipo de humor, mas infelizmente tenho mais agressividade que ele. Parece ter sido alguém especialmente feliz. É só ler as cartas dele: muito raramente Wodehouse reclama de alguma coisa e nunca choraminga, nunca é emocional. Sempre bem disposto e engraçado e produtivo. Os biógrafos tentam fazer alarde demais com o episódio do campo alemão de prisioneiros, porque não conseguem se interessar, ou acham que ninguém vai se interessar por alguém tão feliz. Além disso, foi um dos grandes mestres da língua inglesa. Quando me falam que Kafka foi o grande escritor do século vinte, digo mentalmente “Kafka Schkafka”. Aliás, e aquela frase de Kafka: “Acho que devemos ler apenas o tipo de livro que nos machuca ou apunhala.” Sempre que leio isso penso: “Ué, e Wodehouse?” É claro que Wodehouse foi o maior autor do século vinte, e as pessoas só não dão por isso porque relacionam qualidade a peso, a angústia. Mas apesar de tudo isso que estou dizendo talvez nem se note nenhuma influência de Wodehouse em nada que eu escrevo. O livro que estou escrevendo agora (Feérico Luar no Copacabana Palace) é o primeiro em que me deixei influenciar por ele.

11. Em língua portuguesa, quais são os seus autores prediletos? E os que lhe são intragáveis?

A maior parte são intragáveis, mesmo pessoas com um talento óbvio como Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Guimarães Rosa (“o Rosa”para os íntimos) acho um pouco brega. Um dos muitos gênios bregas que existem. Graciliano não me interesso pelo tema. Nelson Rodrigues (“o Nelson”) sempre que leio as crônicas (o teatro não me interessa) acho o que todo mundo acha, que é muito bom, muito engraçado, muito bem escrito. Mas dos brasileiros o único que eu sofreria de verdade se nunca mais pudesse ler é Machado de Assis. Bom, talvez Monteiro Lobato também. (Reconheço que Marques Rebelo escrevia muito bem.) Em Portugal, Eça, que releio sempre. De Camilo, prefiro as polêmicas. Por mim ele teria escrito só não-ficção; ele é grande na não-ficção, muito engraçado, muito maldoso, e um gênio, mas desinteressantíssimo na ficção com a exceção de uns dois ou três livros como “A Queda dum Anjo”. Mas em língua portuguesa o livro que releio sempre é “O Livro do Desassossego”. Ninguém jamais escreveu tão bem em nenhuma língua. Nem sequer nas muitas línguas que eu não leio.

12. Um bom estilo é capaz de tornar um assunto interessante? Em literatura a forma precede o tema? Noto que as preocupações estilísticas são cada vez mais fortes em você.

Já pensei muito nisso. Imagine um autor que, num estilo horrendo, escrevesse a melhor história do mundo. Ninguém passaria da primeira página. Já um autor que escrevesse uma história chatíssima no melhor estilo possível, talvez você não terminasse o livro, mas avançaria mais nele do que no livro do exemplo anterior, porque a chatice da história demora mais pra repelir que a feiúra do estilo. De modo que sim, a forma é mais importante que o conteúdo, como acabei de provar CABALMENTE. (Sei que é comum dizer que elas não se separam, que uma coisa está ligada à outra, mas elas se separam sim, para efeitos de análise pelo menos.) Se um bom assunto é capaz de tornar qualquer assunto interessante: sim, pelo menos até um certo ponto. Mas se você escreve tão bem que até um personagem polindo as próprias botas durante cem páginas fica interessante, imagine como seria mais interessante se você escrevesse igualmente bem sobre alguma coisa já em si interessante. Muito melhor, não? Por que se arriscar a ser chato?

13. Ainda há lugar para a literatura de entretenimento, mesmo com as tantas opções de filmes e séries hoje existentes, ou todos devem limitar-se a ler somente os clássicos e os livros considerados sérios?

Sempre vai haver lugar pra Rex Stout, Eric Ambler, Elmore Leonard. Talvez seja irrazoável, mas eu tenho uma espécie de ódio de pessoas que só lêem o cânone. Não acho nem que elas percebam a qualidade do que lêem, porque não tem outras coisas com que comparar. Você tem que comparar o excelente com o muito bom, o muito bom com o bom, e assim por diante; senão, por cansaço da vista, tudo se perde num pano de fundo de genialidade, como um brinco de ouro caído num chão de ouro. E os três autores que mencionei são muito bons, aliás; vários autores de entretenimento são. Nem acho que exista sempre uma separação entre entretenimento e grande literatura. Raymond Chandler não é grande literatura? Mas quem escrevia melhor que ele? As pessoas falam dos melhores autores de entretenimento com uma condescendência indevida. Muitos deles são admiráveis e têm uma habilidade e um controle maior do que autores considerados mais importantes. Vá comparar a beleza do estilo de Patrick O’Brian com o jeito com que Theodore Dreiser escreve! Ou veja como o João Carlos Marinho escrevia, diálogos principalmente, e o ritmo de forma geral, e depois folheie Torto Arado.

14. O trabalho para o cinema ao longo de todo o século passado foi estigmatizado por escritores, fossem eles romancistas ou contistas, que viam nele um elemento potencialmente prejudicial à sua escrita. Você, ao trabalhar como roteirista, não sente que há aí limitações que comprometem o seu estro?

Escrevendo roteiros dá pra aprender bastante a escrever romances e contos, porque roteiristas são humildes o suficiente para prestar atenção em maneiras de contar uma história. Manuais pra roteiristas são úteis, aquelas regrinhas são úteis — não como regras de verdade, coisas obrigatórias (às vezes os roteiristas ou os executivos de canal são estúpidos o suficiente pra achar que são), mas como uma orientação pra quando você está perdido em um ponto da história e não sabe como sair dali.

15. Certa vez Cabrera Infante disse a Javier Marías que cria ser, na construção de obras literárias, muito mais preponderantes do que as vivências que temos as coisas que em geral vemos, como filmes e pinturas. Em que medida acha que isso é verdade? Algo notável em você é a influência de seriados antigos.

Já pensei em escrever um livro sobre uma pessoa vendo uma série, já que é uma experiência importante, central, na vida de muitas pessoas nos últimos trinta anos, e não vejo ninguém escrevendo sobre isso. Tenho um plano na cabeça pra isso, só estou esperando a vontade aumentar. Talvez faça. Mas lembro que alguém disse – acho que foi Scott Fitzgerald – que livros bons se baseiam na vida real, livros ruins em outros livros. (Isso não é verdade pra Jorge Luis Borges, por exemplo.) Bom, levei uma vida meio reclusa, não de um recluso-recluso de verdade mas de alguém que não sai muito, e a maior parte das minhas experiências são imaginárias. Mas experiências imaginárias são experiências mesmo assim. Se outras pessoas tiveram amigos peculiares na juventude e escrevem sobre isso, eu via Columbo, Jornada nas Estrelas etc, e lia livros, e isso está muito na minha cabeça como coisas que aconteceram na minha vida, experiências de verdade. Livros também são coisas que aconteceram na sua vida – tanto quanto quebrar uma perna. Outra coisa é que eu cresci contrastando a imagem do mundo que eu via nas séries e nos filmes que passavam na tevê, diners em Los Angeles, ruas de Nova Iorque etc, com a cidade que eu via na vida real ao sair de casa, que era horrível; e isso me fez querer viver mentalmente, para sempre, nas versões ficcionais das cidades americanas e inglesas. E ainda mais uma coisa (mas estou respondendo exaustivamente, chatamente) é que escrevo de vez em quando sobre séries antigas por amor à nostalgia e por amor à vida de aventuras que esses personagens viviam.

16. Que conselhos ou recomendações você daria a jovens escritores?

Acho que o pior que pode acontecer é pararem de escrever pra sempre porque percebem que as primeiras coisas que escreveram não são boas. Mas é normal que não sejam boas. Continue escrevendo que, aos poucos, um livro depois do outro, você vai gastando a ruindade. É um processo de purificação que pode demorar anos, ou décadas, mas acontece. Sou tão otimista que acho que até o Itamar Vieira, se continuar escrevendo coisas ruins, um dia vai escrever uma coisa boa. Se a ideologia deixar.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

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