terça-feira, 25 de abril de 2023

'Antolhos e esporas versus visão holística', por Antônio da Cruz

Artigo compartilhado do site JLPOLÍTICA, de 19 de abril de 2023 

Antolhos e esporas versus visão holística
Por Antônio da Cruz

Sem sensibilidade pras liberdades sociais, há uma gente violenta que parece usar antolhos

Quando menino, morei em sítios arborizados e lidei com animais. Lembro de uma mula indócil que se assustava quando, indo do sítio onde morávamos à Feira das Oficinas, no Bairro Siqueira Campos ou ao mercado “lá de baixo”, deparava-se com os novos calçamentos a paralelepípedos que davam ares de modernidade às ruas de Aracaju nos idos anos 1960.

“Lá embaixo” era a designação popular, até a década de 1980, para o centro comercial por quem habitava as partes altas de Aracaju, como os bairros América, Dezoito do Forte e Santo Antônio.

Aquela mula não fora completamente domesticada. Na sua caminhada madrugada adentro, invariavelmente com carga de frutas, seguia ela bem em estradas de terra batida. Ao se deparar com a luz refletida na pedra de granito do calçamento se assustava com a estranha novidade que lhe machucava os cascos. Animal de pobre à época não usava ferraduras.

Ela pinoteava, derrubando a carga. Eu, o montador, quando não conseguia saltar com minhas pernas de saracura, ficava encalacrado, até de cabeça para baixo, em meio os arreios, a cangalha e os caçuás.

Vi como se fazia a domesticação desses animais. Um montador sagaz, com um par de esporas, cabresto vindo do bridão, controlando a cabeça do “noviço rebelde” e um bom tempo, a cada dia, ficando sobre o lombo do poltro até a sua exaustão.

A brutalidade era proporcional à resistência do animal. Podemos dizer que, o bicho resistia por sentir estar perdendo a sua liberdade. E era bonito ver os animais criados no pasto, principalmente nos dias em que corriam aos bandos como crianças se sentindo seguros e livres.

Para os animais de tração, além da sujeição às rédeas e às esporas na sua domesticação, durante o serviço entra em cena o chicote e os antolhos. O primeiro para forçá-lo, como se faziam aos escravos, para aumentar a força e a rapidez e, por consequência, a produção do serviço.

O segundo, para bloquear a visão bilateral e o quadrúpede tenha apenas enquadramento à sua frente, a partir de uma certa distância, pois frontalmente, de perto, sua visão se constitui ponto cego.

Assim, com a visão monocular, o animal não se assusta nem dispara sem controle ou comando. Os antolhos, entram como peças importantes nos arreios para o perfeito domínio do equino ou asinino. Sem visão lateral dos dois lados da cabeça, e limitações da visão frontal, significa dizer que o animal perde profundidade e visão do todo, ou visão holística.

É bem certo que humanos são humanos, e demais animais ficam à parte. A nossa soberba não permite nos comparar com eles. Mas é verdade que chegamos ao século XXI com homens e bichos melhorando o relacionamento.

Agora se fala muito em domesticação racional dos animais. A nova prática, na verdade, valoriza a afetividade. Os animais resistentes à domesticação na base da pancada e do sangramento pelas esporadas sabem o valor do carinho e da liberdade. Quem espanca não sente e esquece a dor infringida.

Entre os seres humanos, no entanto, há regressão em todo o mundo. Sujeitos com discursos de apologia às armas, à tortura, à eliminação física dos adversários e com vocação para ser ditador estão a governar diversos países, e tendo milhões de seguidores. O discurso de que “armas não matam” encobre o desejo de intimidar e oprimir com e pelas armas.

Viu-se em certo país continental, abaixo do Equador, nos últimos quatro anos, duas eleições presidenciais polarizadas. De um lado quem vê o mundo sob o enquadramento panorâmico, multilateral, multirracial, centrado profundamente na perspectiva da resolução dos problemas econômicos, políticos, sociais e primando pela liberdade plena.

Do outro, gente braba, preconceituosa, racista, homofóbica e misógina, como que precisando de amansador feroz, com chicote, brides e esporas. Pessoas que, diante dos benefícios e avanços entre os anos de 2003 e 2016 não reconheceram o esforço de quem os proporcionou.

Na primeira das duas eleições citadas, venceu o que restou de entulho autoritário de uma ditadura que durou 21 anos. Para felicidade geral, na última venceu a sensatez.

Essa gente incapacitada de compreender a liberdade como valor universal, a transforma em desejo egóico umbilical. Apega-se a mesquinharias, distorções e à violência para seguir quase às cegas rumo a ignorado destino.

Falta para essas, aprofundamento na percepção dos fatos e visão panorâmica da realidade. Desconfio que, com tanta ojeriza, essa gente tenha cismado em usar antolhos.

* É artista plástico e ativista sociocultural. Escreve às quartas.

Texto e imagem reproduzidos do site: jlpolitica.com.br

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