quinta-feira, 30 de março de 2023

O ofício do pensamento

Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 29 de março de 2023

O ofício do pensamento

O amigo André Lisboa acaba de traduzir um texto do filósofo espanhol Julián Marías, discípulo de Ortega y Gasset, sobre os intelectuais - aqui reproduzido na íntegra (grato, André):

A José Luis Aranguren 

Quanto pensam os intelectuais? A questão parece estranha, se não impertinente; supõe-se que a principal preocupação dos intelectuais seja o pensamento; alguns são chamados — com um termo agora insistentemente usado por Heidegger – de pensadores. E, no entanto, muitas vezes parei para pensar sobre o pensamento exercido por seus donos por excelência, e perguntei-me, comigo sozinho, por sua quantidade, sua intensidade e suas formas.

Várias considerações me trouxeram a essa preocupação. Uma delas, a comparação da figura humana dominante hoje entre intelectuais e aqueles usados em outros tempos muito diferentes. Até algumas décadas atrás, e com poucas exceções — individuais ou por breves períodos —, a vida dos homens dedicados às atividades intelectuais costumava ser simples, feita de calma, facilidade — skhole, otium, loisir, leisure —, tempo livre, talvez tédio – pelo menos um certo tédio. Mais de uma vez, olhando para as pequenas, charmosas e comoventes cidades universitárias alemãs, com suas casas de madeira, seus telhados pontiagudos, sua praça com uma fonte, seu rio preguiçoso sombreado por olmos, carvalhos ou castanheiros, sua sociedade muito limitada, seus curtos dias cinzentos e suas longas noites por tantos meses do ano, sonhei com o título de uma possível e sábia dissertação sobre Die Langeweile ais Triebfeder der deutschen Ge-lehrsamkeit und Wissenschaft (Tédio como a fonte da erudição e da ciência alemãs), que alguém deveria escrever. Quando às cinco ou seis da tarde cai a sombra, chove ou faz frio lá fora, todos se refugiam em suas casas, o que fazer? Com o fogão aceso, a sala quente, sob a lâmpada, nada mais natural do que inventar geometrias não euclidianas, estabelecer a cronologia dos diálogos platônicos, esclarecer as origens dos etruscos, analisar sons ou segregar, como casulos, sem perder o fio, sistemas filosóficos emaranhados? E assim tem sido; embora para isso tenha sido necessário algo mais que tédio.

Os intelectuais do nosso tempo fazem muitas coisas. Eles ocupam cargos públicos, socializam, presidem comissões, fazem declarações a jornais, falam no rádio, aparecem na televisão, são membros de inúmeras associações, intervêm na política de seu país e outros. Temo que em muitos casos lhes falte tempo, ainda mais, calma para pensar. O pensamento é sempre uma resposta, um afastamento ou recuo para a solidão de si mesmo, para a sua intimidade silenciosa. Esse movimento para trás e para dentro é essencial; quero dizer que se tem que estar nas coisas para poder se retirar delas; às vezes, é necessária até a imersão na ação, da qual se executa o sutil afastamento que põe uma distância e deixa o real na perspectiva certa para ser conhecido. Mas com que frequência? Alguém pode pensar seriamente que tal operação é realizada a cada instante? A um número muito grande de intelectuais contemporâneos faltam as possibilidades radicais, a atitude primeira que permite chegar ao pensamento.

Por outro lado, muitas vezes fico surpreso com o quanto os intelectuais sabem, especialmente aqueles que são relativamente tranquilos. De quantas coisas estão inteirados, quantas revistas leem, que tremendas bibliografias exibem, quantos livros citam em suas notas de rodapé. Tudo isso leva tempo, muito tempo. Quando se deseja, talvez por anos, um pouco de folga para ler um livro que está ao seu alcance, na prateleira, e esperando a sua vez, admira-se, um pouco com inveja, o incrível número de coisas que tantos sabem. Mas a admiração é seguida por uma indagação: todo o tempo gasto revisando e revisando revistas, vasculhando bibliotecas, lendo tantos livros, preenchendo tantas fichas, são horas que são subtraídas do pouco de cada dia. O tempo que é investido nisso, não é investido em outra coisa, por exemplo, no pensar. Devemos escolher; devemos buscar um equilíbrio entre informação e pensamento, porque nossos dias são contados e as horas de cada um são contadas com avareza. Aqueles que sabem tanto, não será que pensam menos? Não deveria o intelectual justificar seu próprio conhecimento, sua informação, sua erudição? É bem sabido que, se o saber não ocupa lugar, ele ocupa tempo. E não só o tempo, mas a atenção, a energia, a dedicação, porque na perspectiva vital, a capacidade de orientação da nossa alma. Toda a figura de uma mente dedicada às atividades intelectuais é condicionada por seu pondus, por aquilo para o qual ela gravita e que é seu amor. Diante de qualquer pergunta, o que o intelectual faz principalmente? Põe-se a procurar bibliografia, põe-se a ler livros antigos, procura o artigo mais recente, põe-se a pensar?

Unamuno era da opinião de que muitos se dedicam a contar os pelos da cauda da esfinge por medo de olhar em seus olhos. A informação e a erudição são, por outro lado, os grandes simuladores, pois fingem vida intelectual onde há apenas o manejo de objetos intelectuais inertes. Falar sobre as coisas é um excelente meio de evitá-las; embaralhar problemas e teorias é uma tarefa confortável para ficar a cem léguas deles. O grave é que, a longo prazo, perde-se o hábito de pensar; não se é capaz de pensar ou repensar, mas, no máximo, de transpensar – há países inteiros que não fazem mais nada. Chega um momento em que nem sequer se distingue. “Para distinguir eu paro, as vozes dos ecos”, disse Antonio Machado, formulando, sem saber, um admirável lema intelectual. Não se suspeita até que ponto se embota a capacidade de apreciar o que é autêntico e o que é mero “fazer acontecer”, como ela escorrega sobre o que é lido e citado, até que ponto falta a reação adequada à produção intelectual. Outras vezes falei dos aspectos morais disso; Refiro-me agora ao especificamente intelectual e teórico, à fácil deglutição do erro — quando não é um fato errado, mas uma ideia falsa — à aceitação de confusões, à insensibilidade ao que é novo e original, especialmente ao que é pensamento eficaz, teoria rigorosa e clara. Há algumas exceções dos intelectuais que vivem alertas, imersos no deleite da sua vocação, atentos à verdade ou acuidade que atravessam o seu horizonte visual; com menos precisão e profundidade, esta atitude ocorre também em muitos homens — e especialmente nas mulheres — que não são produtores, mas apreciadores, que são o que costumo chamar de “intelectuais marginais” — que tornam possíveis tantas coisas esplêndidas. Mas algum dia, se eu tiver vontade, talvez quando eu for um pouco mais velho, eu me entreterei em fazer uma lista das inovações, das descobertas da teoria encontradas em livros recentes e que estão nas mãos de todos, mas que quase nenhum intelectual profissional ouviu.

Por que isso acontece? Por que o pensamento deixou de ser o atributo essencial e constitutivo do intelectual para ser um fenômeno relativamente incalculável? Não podemos ignorar as razões económicas subjacentes a esta situação, que são bastante desafiantes e complicadas. O crescimento da vida em todas as ordens e o advento de massas consideráveis ​​a espaços antes reservados a poucos, tornaram a condição econômica do intelectual — escritor, professor, funcionário público da cultura— menos precária do que em outras vezes, embora sempre inferior ao de profissionais de igual valor em outras áreas. Isso levou muitas pessoas de vocação mínima ou hesitante a dedicar-se a tarefas especificamente intelectuais, que de outra forma teriam se esquivado dos sacrifícios que tal dedicação impunha, e que os intelectuais aceitavam pela compensação que para eles significava a fruição de seu exercício. Em longas etapas da história, só foi intelectual quem não teve outra escolha: aquele que se sentiu impedido com tanta força a esse modo de vida, que não estava em seu poder pesar seus inconvenientes, da pobreza ao descrédito ou ao perseguir. Mas agora, como sua situação não é tão penosa, muitos homens cujos desejos mais sinceros residem em outros caminhos abraçam o ofício intelectual e que, portanto, aspiram a um bem-estar econômico que pouco importava ao intelectual da raça; e então tentam melhorar seu desempenho, o que os leva a formas secundárias e inautênticas de atividade, aquelas que podem ser feitas de forma inerte, por acúmulo de trabalho ou talvez de palavras, sem inspiração – sempre problemática e insegura –, sem aquela risco de fracasso que é inseparável do pensamento que se lança alegremente entre os chifres afiados dos problemas. E como os homens desta linhagem também se preocupam com a estima social, sobretudo pelo que ela tem de valor, esforçam-se por impor a aceitação da forma como exercem a sua atividade e, consequentemente, a confusão e até a desqualificação social do pensamento e teoria estrita.

Uma segunda razão é política. Vivemos em uma época – escrevi sobre isso ampla e claramente em The Intellectual and His World e em outros lugares – definida pela penetração da política em áreas onde antes não acontecia. A consequência inevitável foi um notável declínio da liberdade nos países mais afortunados, seu desaparecimento ou um pouco menos em muitos outros. Se a guilda intelectual fosse composta apenas por homens de verdadeira vocação, a consequência disso seria a resistência ativa, a catacumba ou o silêncio total; não sendo assim, muitos têm desviado a sua atividade para as necessidades de uma informação mais ou menos sólida, mas que, por não enfrentar os problemas, é inócua e não levanta suspeitas — daí o intempestivo ressurgimento da erudição, quando já parecia definitivamente superada—; e, como em muitos casos, o favor político é um requisito essencial para a prosperidade, não foi suficiente ignorar o pensamento, mas foi preciso suplantá-lo, substituí-lo por uma imitação dele que, longe de buscar arriscadamente a verdade, expondo se perder sem encontrá-lo, fornecem argumentos a todos os poderes.

Existe uma terceira razão, bastante sutil, e que leva a evitar o pensamento. Está em conexão com o politicismo de nosso tempo – é sua repercussão nos próprios conteúdos da vida intelectual. Refiro-me ao caráter partidário que as ideias assumem, a propensão a reduzir tudo a ismos e slogans. O pensamento sempre matiza e distingue; ele sempre vê – ao contrário da política – o outro lado da questão; em vez de se petrificar nas fórmulas, passa por elas, e se as conserva é modificando-as, renovando-as, fazendo-as viver; acima de tudo, colocando-as perpetuamente em questão. Porém, como o pensamento em sentido estrito não é válido, não há probabilidade de que seja socialmente atendido e seguido. As ideologias formuladas e transformadas em ismo, ou aquelas recobertas por uma terminologia que funciona automaticamente, são recebidas pelo público, que nelas se alista ou dispara sem olhar direto as molas de suas fórmulas. É o caso do marxismo, existencialismo, psicanálise, neoescolástica e algumas outras ideologias; tal esquematismo não deixou de estar relacionado com o sucesso de obras individuais como a de Toynbee, a de Eiesman em menor grau e algumas outras. Isso não significa que todas essas doutrinas não tenham valor intelectual, às vezes alto, mas que sua fácil aceitação não vem dele, mas de seu caráter. Por outro lado, é improvável que uma doutrina constituída por um pensamento alerta e sempre fiel à estrutura variável e mutável da realidade seja amplamente adotada. (Outra coisa, claro, é a durabilidade e fertilidade de um e do outro; é muito provável que as fórmulas sejam abandonadas repentinamente, por mero esgotamento, pois os best-sellers costumam cair repentinamente, enquanto o pensamento continua operando por décadas ou séculos).

Por último, uma quarta razão, talvez a decisiva, é que a raridade do pensamento o torna cada vez mais raro. Quero dizer que — salvo exceções individuais tocadas pelo gênio — o pensamento surge em cada mente individual despertada pelo espetáculo de seu exercício, infectada, poderíamos dizer. Essa, e nenhuma outra, é a verdadeira função da escola, do seminário em seu sentido literal de viveiro. Quando ser intelectual significava dedicar-se a pensar, e eram muito poucos os que o faziam, era normal a transmissão dessa estranha tarefa a que chamamos pensamento teórico; hoje é pouco provável que um jovem faça a experiência autêntica do que se pensa verdadeiramente e, por outro lado, é certo que testemunhará mil vezes a sua suplantação ou a sua evasão. Esta dificuldade, gravíssima e difícil de ultrapassar, é multiplicada pelo fenómeno contemporâneo dos nacionalismos, cujo efeito é, nesta época de idas e vindas, movimento e comunicação, isolamento nas camadas mais profundas da vida. O nacionalismo, com efeito, reduz arbitrariamente o alcance da possível exemplaridade. Falam de tudo, mas na hora da verdade, isto é, quando se aborda o pensamento em sua germinação, em sua realidade interna — e esta é a única coisa que compõe o magistério —, o que não se julga adequado é recusado. Quando o caráter do pensamento é sua maravilhosa capacidade de apropriação! A consequência é o empobrecimento, o enfraquecimento progressivo da função teórica. Às vezes, observa-se que um país modesto, são e interessado no que acontece além de suas fronteiras — quase tudo —, à medida que prospera economicamente, envaidece-se e pretende, cada vez mais, mais, atendendo apenas a si mesmo e falando sobre si mesmo, um caminho certo para a indigência mental. O nacionalismo, por vezes, faz um curioso desvio: incapaz de buscar em si a exemplaridade intelectual, busca o remoto, rejeitando obstinadamente o que é próximo e relacionado. Mas acontece que o contágio intelectual tem suas exigências: só ocorre na proximidade pessoal ou quando há uma comunidade de suposições. O contato com um professor distante pode ser proveitoso; é improvável que a mera leitura de uma doutrina oriunda de um campo muito diferente provoque mais do que a mímica, o que os franceses chamam de singer. É por isso que o mundo foi preenchido em trinta anos com macacos de Freud, Heidegger ou Sartre; e os macacos pulam de galho em galho, mas não vão a lugar nenhum.

A participação nas formas – pensamento dos outros só é feita em virtude da apropriação prévia; mas isso tem que ser ativo, quer dizer, a partir de um pensamento pessoal, nunca receptivo. Quando se compara o Iluminismo espanhol do século XVIII com os homens da geração de 1998 e seguintes, comete-se um grave erro: nossos admiráveis ​​avós foram apenas receptivos; conheciam muito bem o pensamento europeu, comunicavam-no, transmitiam-no; não o fizeram germinar em nosso solo, porque não tinham pensamento próprio. Os homens do nosso século conseguiram a aclimatação de boa parte do pensamento ocidental na Espanha porque foram criadores, porque o apoderaram dos seus, com esse instrumento, o único eficaz. Para se apoderar do pensamento de esferas históricas ou sociais distantes, não há outro remédio senão passar pelo caráter exemplar de um pensamento criativo próximo, pertencente à mesma sociedade — pelo menos em sentido amplo —, talvez à mesma língua, que é o grande pressuposto de toda interpretação.

E o fato é que o pensamento, ele, está em uma de suas melhores temporadas. Em todas as disciplinas — e, nas humanidades, isso é uma novidade — a aproximação com a realidade tem sido prodigiosa; e a invenção de instrumentos para sua apreensão, comparável aos dos tempos mais felizes. Ao abordar a realidade, viu-se que ela é problemática em um grau maior do que se imaginava, e isso tem assustado a muitos; mas não há tentação comparável para um intelectual puro-sangue, que já experimentou o áspero e doloroso deleite do pensamento. Tudo é problemático e, portanto, tudo ainda precisa ser feito; mas sabe-se — talvez apenas isso — como fazê-lo. Acredito que desde o século XVII não houve uma hora tão instigante e apaixonante, para este abandonado ofício do pensamento.

Sória, 1957

O ensaio original de Julián Marías está publicado em uma coletânea de textos publicados pelo autor acessível na página da Biblioteca Cervantes.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com

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