Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 9 de
abril de 2021
Terapia: do divã de Freud ao seu celular.
A ciência da compreensão e cura da mente não pode ser
congelada no tempo e tratada como um culto imutável para privilegiados. Dagomir
Marquezi paraz a revista Oeste:
Tive algumas poucas experiências de terapia. Em alguns
momentos ela funcionou. Mas, no geral, eu não me dava muito bem com aquele
ritual estático, meio pomposo de uma sessão. Em dois momentos tentei mudar um
pouco as regras do jogo.
Cena 1: estou sentado na poltrona de paciente. Num móvel
logo atrás de mim tem um despertador à vista do terapeuta. Eu falo dos meus
pais, da minha vida sexual, dos meus sentimentos etc. O terapeuta não para de
bocejar, de olho mais no relógio do que em mim. Percebendo que vamos nos afogar
no tédio mútuo, pergunto a ele: “Nós temos mais 35 minutos. Vamos caminhar na
rua e continuar a sessão lá fora?”. O terapeuta nem leva em consideração minha
proposta. Diz que a volta no quarteirão seria violar as regras do Conselho
Regional de Psicologia.
Cena 2: o tratamento com outra terapeuta está estancado, não
avança. Tento romper o impasse: “Eu sou melhor escrevendo do que falando. E se
a gente tentasse fazer uma sessão por escrito? Durante uma hora a gente troca
e-mails”. (Não havia nada mais ágil naquela época.) A terapeuta avisa direto
que não vai rolar. O Conselho Regional de Psicologia etc.
Está lá, no Artigo 2º do Código de Ética Profissional: “Ao
psicólogo é vedado prestar serviços ou vincular o título de psicólogo a
serviços de atendimento psicológico cujos procedimentos, técnicas e meios não
estejam regulamentados ou reconhecidos pela profissão”. As penas aos faltosos
incluem, progressivamente, advertência, multa, censura pública, suspensão por até
30 dias e, como pena máxima, a cassação do exercício profissional. É um convite
a que nada mude.
Esse Código de Ética é de 2005. Dezesseis anos depois, a
terapia mais ortodoxa prossegue funcionando, com sessões presenciais em
consultórios. Ajuda muita gente com um tratamento personalizado, muito focado,
indispensável para muitos casos. E costuma ser caro, muito caro.
No entanto, o mundo se move e novos procedimentos, técnicas
e meios florescem quando o campo é fértil. Alguns fatores ajudam. Um desses fatores
foi a “aplicativação” da sociedade. Há cada vez menos coisas que fazemos na
vida que não passam por um aplicativo. Os celulares mudaram nossa relação com o
mundo. Não haveria razão para não mudar nossa relação com os terapeutas.
Outro fator: a condenação de populações inteiras à prisão
domiciliar (em regime fechado, para muitos) só podia gerar uma pandemia de
problemas psicológicos, mentais e emocionais. Não há terapeutas para tanta
gente que, nessas condições, se desequilibrou. E muito menos dinheiro para
pagar sessões particulares para cada cidadão afetado pelo ano do “Fique em
casa” e de tantas perdas por causa do vírus.
A Organização Mundial da Saúde publicou em 2017 (com dados
de 2015) um estudo global sobre o estado de saúde mental. A depressão foi
considerada o maior fator de incapacitação, atingindo 7,5% da população
mundial. A ansiedade vem em sexto lugar — afeta 3,4% da população. Em termos
gerais, a depressão atinge 300 milhões de pessoas, o equivalente a 4,4% da
população mundial. Pode atormentar qualquer um, mas afeta mais os que vivem na
pobreza, estão desempregados, sofreram a morte de um ente querido, passaram por
um processo de separação amorosa, sofreram doenças físicas ou estão imersos no
alcoolismo e no consumo de drogas. Naquele mesmo ano de 2015, 788 mil pessoas
se suicidaram, especialmente nas camadas mais pobres.
No ranking da OMS, o Brasil ocupava o terceiro lugar em
números absolutos de casos de depressão (11,5 milhões de afetados) e ansiedade
(18,6 milhões). Só perdemos para os megapopulosos China e Índia. É muita gente
para cuidar com um método tão elitista.
Como os táxis e os investimentos nas bolsas de valores, as
terapias precisavam ser urgentemente popularizadas e modernizadas. A tecnologia
e os fatos providenciaram as grandes mudanças. Não tem mais como voltar atrás.
Unir tecnologia com tratamento psicológico era apenas
questão de tempo. Foram feitos um para o outro. Na pré-história dos
computadores — 1966 —, já existia Eliza. Desenvolvida pelo professor Joseph
Weizenbaum, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), Eliza foi descrita
formalmente como “um programa de computador para o estudo da linguagem natural
na comunicação entre o homem e a máquina”. Por exemplo: se o usuário digitasse
a palavra “pai”, Eliza devolveria a frase “fale-me mais sobre seu pai”. E
assim, de pergunta em pergunta, fazia o usuário refletir sobre si mesmo.
Cinquenta e cinco anos depois de Eliza, aplicativos de
terapia já levantaram US$1,8 bilhão em investimentos só em 2020. Em 2019, esse
número era três vezes menor. Um dos aplicativos de maior sucesso nos Estados
Unidos, o Talkspace, revelou que 60% dos seus usuários estão fazendo terapia
pela primeira vez. Hillary Schieve, prefeita de Reno, no Estado de Nevada,
conseguiu uma verba de US$1,3 milhão para que todos os habitantes da cidade com
mais de 13 nos de idade tenham acesso ao Talkspace.
O Talkspace já tem mais de 1 milhão de clientes e pode ser
pago pelos planos de saúde dos EUA. Funciona 24 horas por dia e atende a
praticamente qualquer tipo de problema: depressão, dificuldades no
relacionamento, ansiedade, estresse, problemas com os pais, desajustes sexuais,
doenças crônicas, distúrbios de alimentação, controle de agressividade, traumas
de infância, variações de humor, desordem obsessivo-compulsiva, abuso de
drogas, conflito familiar etc. Você entra no aplicativo ou site, escolhe um
terapeuta, liga a câmera e a sessão. (Só em inglês.) O Talkspace ainda oferece
tratamentos especializados de psiquiatria (incluindo receitas para remédios),
terapia para casal e para adolescentes entre 13 e 17 anos.
O cliente fala com terapeutas licenciados, que podem estar
em qualquer lugar, por vídeo, por texto ou por voz. Objetivos e prazos passam a
ser definidos pelos pacientes. Os preços não são nenhuma pechincha — embora bem
inferiores aos cobrados por terapeutas que atuam exclusivamente pelo método
tradicional. Você pode escolher um plano de meio ano por US$ 700. Ou uma
assinatura do tipo Netflix de US$ 65 a US$ 100 por semana. Cancela quando
quiser.
O sucesso do Talkspace abriu caminho para uma onda de
aplicativos de terapia no mercado internacional. O Youper cria as condições
para que o usuário seja guiado a fazer sua própria terapia. Uma assinatura
básica custa US$ 13 por mês. Gráficos monitoram sua evolução. Se precisar de
remédios, o psiquiatra os receita e eles chegam de mês em mês. O Paired
estabelece um canal de contato e orientação para melhorar a vida do casal. O
distrACT é voltado especialmente a quem sente impulsos suicidas.
A lista vai longe: Woebot, Bloom, BetterHelp, Brightside, Calmerry, Doctor on Demand, Amwell, iPrevail, SuperBetter, MoodKit, MindShift CBT, MDLIVE, Real, Larkr, 7Cups, BestHelp, Sesh, Sanvello. Alguns são mais caros; outros, mais baratos. Alguns são mais completos; outros, mais limitados. E existem os que formam um campo de atuação em comum com os também muito populares aplicativos de meditação.
E, se você pensa que um dia essa onda vai chegar ao Brasil,
fique sabendo que já chegou. O Cíngulo, por exemplo, já tem até um plano para
empresas. No Zenklub, você encontra listas de terapeutas, cada um com sua especialidade,
com preços de R$ 70 a R$ 150 por sessão de 50 minutos. Para marcar sua sessão
por vídeo, basta clicar na lista de horários disponíveis.
No OrienteMe (de R$ 280 a R$ 359 por mês), além das
consultas você pode dispor de orientação por escrito duas vezes por dia. O
Terapia mistura psicanálise com práticas alternativas, como constelação
familiar, reiki e ioga. No Cogni e no MoodPath, o usuário anota sensações,
emoções e pensamentos na hora em que os identifica. O aplicativo é útil na
técnica conhecida como terapia cognitivo-comportamental, ou TCC. O registro
detalhado do que passa por sua cabeça é de grande utilidade no tratamento.
O Ombro Amigo e o Amigo Virtual ligam pessoas de forma
anônima para que conversem sobre assuntos que não têm coragem de contar a
nenhum conhecido. Não é exatamente ciência, mas pode ajudar muito. O
Metamorfosis cumpre papel semelhante, misturando atendimento pessoal com
criação de comunidades de usuários que enfrentam os mesmos problemas. São
aplicativos de desabafo.
Claro que os princípios científicos da psicanálise e da
psiquiatria precisam ser respeitados. Mexer com a mente das pessoas a distância
exige muita responsabilidade e senso ético. Mas o processo de cura está
descendo do pedestal das fórmulas e procedimentos imutáveis.
O próprio fundador da psicanálise não era tão estático e
isolado quanto muitos de seus atuais seguidores. Sigmund Freud se preocupava
com a popularização do seu tratamento, especialmente após o trauma da 1ª
Guerra. Ele escreveu um livro chamado A Psicopatologia da Vida Diária, no qual
comentou a importância analítica de pequenos atos, como erros inconscientes na
fala, esquecimento de nomes e até a criação de piadas e trocadilhos. Além
disso, era um escritor compulsivo de cartas — calcula-se que tenha escrito
cerca de 30 mil durante seus 83 anos de vida. Se vivesse hoje, provavelmente
estaria grudado no WhatsApp e nas redes sociais.
A ciência da compreensão e cura da mente não pode ser
congelada no tempo e tratada como um culto imutável para privilegiados. A
apresentação do aplicativo BetterHelp resume bem o espírito da coisa: “Terapia
não tem de ser conversar sobre sentimentos. Terapia pode ser o que você quiser
que seja”.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com
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