segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Cinema terá premiações sem a devida temporada

A entrega do Oscar foi adiada para 25 de abril de 2021, dois meses depois do previsto.

Texto publicado originalmente no site HUFFPOST BRASIL, em 4 de outubro de 2020

Cinema terá premiações sem a devida temporada

Esta será a corrida ao Oscar menos convencional em décadas. E talvez isso seja positivo.

By Matthew Jacobs, HuffPost US

Se 2020 fosse pelo menos um pouco normal, já haveria indícios mais ou menos claros dos principais candidatos ao Oscar de melhor filme em 2021. Em vez disso, porém, praticamente não sabemos o que vai acontecer entre agora e a entrega das estatuetas.

A Warner Bros diz que Duna ainda está previsto para estrear em 18 de dezembro, mas, com o estúdio já tendo recebido retorno financeiro apenas morno por Tenet, de Christopher Nolan, será que outra grande produção comercial de ficção científica vai se arriscar na areia movediça da covid-19?

Na semana passada, a Disney adiou o lançamento do remake dirigido por Steven Spielberg de Amor Sublime Amor de dezembro deste ano para dezembro de 2021, evidentemente não querendo abrir mão da fanfarra de um grande lançamento em muitos cinemas, o que beneficiaria o filme nas premiações. É um candidato a menos ao Oscar em 2021.

Saberemos em breve se a Universal Pictures vai cancelar sua estratégia de lançar o drama News of the World, estrelado por Tom Hanks, no dia do Natal. Se isso acontecer, a agenda do fim de ano sairá empobrecida.

A anormalidade da temporada de premiações do cinema deste ano se evidenciou nas últimas semanas, quando os festivais de Veneza e Toronto tiveram apenas versões resumidíssimas de sua festa habitual. Ao lado de Telluride, o outro grande festival de cinema que ocorre perto do feriado americano do Labor Day (primeira segunda-feira de setembro), Veneza e Toronto funcionam como plataformas de lançamento para a disputa em Hollywood.

Instigados pelo agito dos festivais, os futurologistas cinematográficos tendem a anunciar um candidato favorito a Melhor Filme já no início de setembro, quando faltam poucos títulos para serem exibidos para a imprensa. O cenário caótico – tapetes vermelhos, reações do público, repercussões na indústria, festas glamurosas – faz parte do que promove e derruba as esperanças de Oscar. Mas o evento de Toronto foi quase inteiramente virtual, limitando a capacidade das pessoas de rastrear a trajetória percorrida por cada filme.

Assim começa uma temporada de premiações que não possui muitos elementos de uma temporada verdadeira.

Já sei – nada disso tem importância realmente. Temos preocupações muito mais urgentes do que saber quais filmes vão estrear de fato em dezembro. Mas a temporada de premiações é uma placa de Petri dos altos e baixos da América.

Através da indústria do entretenimento, formamos ideias sobre política, tecnologia, moda, imagem corporal, raça e economia. Com a pandemia impondo mudanças ao establishment inteiro, este pode terminar sendo o ano que acaba com um pouco da campanha exagerada de promoção de filmes para o Oscar. Os eleitores podem descobrir que não precisam de todos aqueles almoços chiques, aqueles eventos com beijos em bebês, aquelas narrativas de relações públicas fabricadas sobre de quem é a “vez” de vencer.

Há muito a ser ganho e a ser perdido com a realidade anormal de 2020. Algumas das discussões constantes em torno dos prêmios tiveram que ser decididas de cima para baixo para acomodar estes tempos estranhos. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo Oscar, hesitou em abraçar plenamente a era do streaming, temendo que ela acabe erodindo o mercado dos cinemas.

Além disso, a organização estendeu o prazo limite para a inscrição de filmes na disputa, que geralmente é 31 de dezembro, para 28 de fevereiro, e adiou a cerimônia de entrega para 25 de abril. Isso fará da temporada atual a mais longa em décadas, apesar de haver menos candidatos qualificados que normalmente. Uma estreia em fevereiro normalmente anularia as chances de Oscar de um filme, mas agora isso colocará o filme em terreno privilegiado.

Um efeito interessante disso é que podemos ter a lista de candidatos menos tradicional da história do Oscar. Não é segredo para ninguém que, apesar das iniciativas em curso para promover maior diversidade, a academia tende a favorecer filmes ditos “sérios”, feitos por homens brancos que contam com apoio institucional suficiente e apelo popular para conseguirem lançar cruzadas que custam milhões de dólares. Já cansei de ouvir publicitários que representam filmes idiossincráticos, feitos com orçamentos reduzidos, dizerem “não temos dinheiro para uma campanha de verdade, então já sabemos que nosso filme não será indicado”.

As vitórias recentes de Moonlight: Sob a Luz do Luar e Parasita sugerem um futuro melhor para filmes que não se enquadram nos moldes típicos de Hollywood, mas nada que diz respeito aos 9.412 membros votantes da Academia é garantido. Se forem obrigados a escolher filmes de um pool reduzido, é possível que eles se rendam aos encantos de gêneros e cineastas aos quais de outro modo não dariam atenção.

Tampouco é certeza que haverá tapete vermelho. Independentemente de como estiver a situação com a covid em abril próximo, é provável que o tapete vermelho não se pareça com nada já visto no passado, devido à dificuldade de respeitar o distanciamento social.

No caso do Emmy, todas as entrevistas com indicados antes da cerimônia foram feitas pelo Zoom – sem flashes, sem interações espontâneas com celebridades que levam a internet ao delírio, com menos vestidos de estilistas famosos. Mas os tapetes vermelhos de cerimônias de premiação, normalmente redutos de glamour, polêmicas e superficialidade, perdem muita da atração quando transmitidos através de tantos pixels.

Muitas das celebridades vestiram preto no Globo de Ouro de 2018 em sinal de protesto contra o assédio sexual, e ativistas como Tarana Burke, fundadora do Me Too, e Ai-jen Poo, diretora da Aliança Nacional de Trabalhadores Domésticos, acompanharam atrizes famosas à cerimônia.

Talvez você não aprecie quando famosos bem vestidos ganham uma plataforma que abrange desde falar a verdade a figuras de poder até construir uma “marca” pessoal lucrativa, mas não há como negar o impacto que ocorre quando figuras públicas se reúnem cara a cara para denunciar o assassinato de George Floyd, Breonna Tayler e incontáveis outras pessoas negras.

Outra coisa que perdemos na ausência de uma temporada de premiações à moda tradicional é um elemento que marca o passar do tempo. Com tantas pessoas desempregadas ou trabalhando de casa, as horas e os dias podem parecer que são elásticos. Certos costumes que nos proporcionam um senso de normalidade estão desaparecendo.

Por mais que seja supérflua, a temporada de premiações do cinema é um fenômeno regular, mesmo para pessoas pouco interessadas na cultura pop. Em novembro e dezembro os cinemas costumam ficar cheios dos melhores filmes do ano, e em janeiro ocorrem o Globo de Ouro e a entrega dos prêmios SAG, do Sindicato de Atores do Cinema e da Televisão. Parte de nossa atividade comunitária no inverno envolve assistir a filmes que são prováveis candidatos a Oscar e julgar as roupas das celebridades.

Não seria desmedido pedir que esta temporada de premiações definisse um precedente mais humilde, para instaurar um pouquinho da meritocracia que o Oscar se arroga. É hora de derrubar a ideia de que performances de horror não são válidas, que lançar um filme na primeira metade do ano equivale a assinar sua sentença de morte, que os estúdios podem abrir caminho ao Oscar de Melhor Filme à custa de manipulação.

Uma lista reduzida é uma pena para o público, mas também significa que Delroy Lindo não terá tanta dificuldade em receber a indicação a Melhor Ator que merece por Destacamento Blood, título da Netflix lançado em junho.

Significa que pequenas joias independentes como Never Rarely Sometimes Always e First Cow podem ter uma chance, fortalecendo a carreira de seus diretores aclamados (respectivamente Eliza Hittman e Kelly Reichardt). Significa que uma sátira excêntrica como French Exit, com Michelle Pfeiffer, Lucas Hedges e um gato falante, pode ser visto como mais do que apenas uma comédia de nicho.

Significa que poderemos ter a lista de indicados mais diversa da história, com destaque para One Night in Miami, Respect – a cinebiografia de Aretha Franklin – e The United States vs. Billie Holiday, para citar apenas alguns.

Um pouco de normalidade seria bem-vinda agora, mas ainda não está no horizonte. Portanto, qualquer mundo novo que venha a emergir de nossa névoa pós-covid talvez tenha superado alguns dos hábitos mais desprezíveis da temporada de premiações. O show vai continuar, mas não precisa ser uma reprise.

*Este texto foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês.

Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário