Jovem lê um livro digtal em Sevilla, na Espanha, no último dia 20 de maio.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 24 de maio de 2020
Ler em um formato diferente é ler pior?
O confinamento aumentou ainda mais a digitalização de nossa
leitura, que transforma silenciosamente nossos circuitos neurais. Há vantagens
em consumir conteúdo em papel em relação ao do celular ou de um e-book?
Por Carmen Pérez-Lanzac
O circuito neural que nos dá a capacidade cerebral para ler
está mudando rapidamente para todos. Tablets, computadores, laptops, Kindles e
celulares estão substituindo os antigos livros, promovendo uma transformação
silenciosa em cada um de nós. O ser humano não nasceu para ler. A aquisição da
alfabetização é uma das conquistas mais importantes do Homo sapiens. O ato de
ler reorganizou completamente um circuito de nosso cérebro. Mudou a própria
estrutura das conexões neurais e isso transformou a natureza do pensamento
humano. Em 6.000 anos, a leitura deu impulso ao nosso desenvolvimento
intelectual. A qualidade de nossa leitura não é apenas um indicador de nosso
pensamento, é a melhor maneira que conhecemos para desenvolver novos caminhos na
evolução cerebral de nossa espécie. Mas, como mudou a qualidade de nossa
atenção à medida que lemos mais e mais em telas e dispositivos digitais? Este
processo vem sendo reforçado durante o confinamento. Nossa capacidade de
percepção estará, como afirmou o filósofo Josef Pieper, diminuindo ao nos
depararmos com um excesso de estímulos e informações?
Em seu livro O Cérebro no Mundo Digital - Os Desafios da
Leitura na Nossa Era (Editora Contexto), a neurocientista Maryanne Wolf, diretora
do Centro para a Dislexia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles,
observa que no cérebro impera uma máxima: "Use essa capacidade ou
perca-a". Assim, cada meio de leitura beneficia alguns processos
cognitivos em detrimento de outros. Wolf lança uma pergunta: a mistura de
estímulos que distraem continuamente nossa atenção e o acesso imediato a várias
fontes de informação dá ao leitor menos incentivo para construir suas próprias
reservas de conhecimento e pensar criticamente por si mesmo?
A plasticidade do nosso cérebro nos permite formar circuitos
cada vez mais extensos e sofisticados, dependendo do que lemos e em que
plataforma o fazemos. Como sugeriu o psicólogo cognitivo Keith Stanovich,
aqueles que não leram muito e bem terão menos bases para a inferência, a
dedução e o pensamento analógico, ficando propensos a serem vítimas de
informações falsas ou não comprovadas. Wolf acredita que não vemos mais nem
ouvimos com a mesma qualidade de atenção porque vemos e ouvimos muito e, além
disso, também queremos mais.
Ela mesma vivenciou a mudança. Teve que se esforçar para
reler O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse, um dos livros que a
marcaram em sua juventude e que lembrava que não era especialmente leve. Depois
de um primeiro fracasso, teve que definir períodos de leitura de 20 minutos
para terminar o livro, o que lhe tomou duas semanas. “O ritmo vertiginoso com
que eu costumara ler meus gigabytes diários de informações não me permitia
parar o tempo suficiente para entender o que Hesse estava transmitindo”, escreve
ela em O Cérebro no Mundo Digital.
A linguista Naomi Baron é, com Wolf, a ponta de lança dessa
questão nos Estados Unidos. Baron comenta que os jovens trocam de mídia 27
vezes por hora e, em média, consultam o celular entre 150 e 190 vezes por dia.
Por sua plasticidade, afirma o neurocientista argentino Facundo Manes, o
cérebro se adapta às mudanças ambientais e a atenção que dedicamos aos avanços
possíveis graças às novas tecnologias nos faz enfrentar uma nova maneira de
processar informações. O cérebro tem que se adaptar a essas mudanças, e as
crianças e os jovens que estão crescendo entregues às novas tecnologias
possivelmente desenvolvam e potencializem a capacidade de fazer várias coisas
ao mesmo tempo "em detrimento de outras habilidades”.
Nem todos os especialistas concordam com essa tese ou
acreditam que nossa leitura seja afetada pelo formato escolhido. A Comissão
Europeia quis fomentar o debate, por isso, apoiou entre 2014 e 2018 (com um
milhão de euros no total, cerca de 6 milhões de reais) o projeto E-Read, que
financiou 200 professores universitários de toda a Europa para estudar o
assunto e se reunirem regularmente. Anne Mangen, do Centro de Leitura da
Universidade de Stavanger, na Noruega, foi uma das coordenadoras do grupo.
Vários estudos merecem destaque nessa experiência, dois deles da própria
Mangen: ela comparou o entendimento impresso e no Kindle de um conto apimentado
e de outro de mistério de 28 páginas (o mais longo estudado até o momento)
entre um grupo de alunos do ensino médio. Concluiu que os alunos que leram o
livro impresso entenderam melhor as duas histórias, principalmente na hora de
ordená-las cronologicamente.
Ladislao Salmerón, professor de Psicologia Evolutiva e
Educação da Universidade de Valência, foi com seu então estagiário, Pablo
Delgado, o autor do estudo mais relevante da equipe conhecida como Grupo
Stavanger. Eles realizaram um metaestudo de 54 estudos realizados entre 2000 e
2017, com um total de 170.000 participantes de diferentes idades, que demonstra
que a compreensão de textos expositivos e informativos (não narrativos) é maior
quando são lidos em papel do que em mídia digital, especialmente se o leitor
está com um tempo de leitura limitado. “O que descobrimos é que, em igualdade
de condições, sistematicamente se entende melhor o que é lido em papel”, diz
Salmerón. E o que mais o surpreendeu: quanto mais jovens as pessoas, maior a
diferença de compreensão entre os dois formatos.
Durante a década passada, houve um importante esforço para
aproximar as telas das escolas. O projeto One Toplap per Child, planejado para
reduzir o fosso digital, levou minicomputadores para crianças do Uruguai a
Ruanda. Outros projetos os levaram a Glasgow ou ao Estado do Kansas. Também na
Espanha houve esforços para aproximar a tecnologia dos pequenos. O Governo da
Andaluzia entregou um minicomputador a 390.000 estudantes. Salmerón, que está
em contato com a comunidade educacional, diz que recebe cada vez mais pedidos
para falar sobre os possíveis efeitos negativos da leitura excessiva nas telas.
"A tecnologia entrou nas escolas levada por esperança e fé", diz Anna
Mangen, "e muita gente tem vergonha de se tornar antiquada vetando a
tecnologia". Ladislao não se esquecer da reação de um alto funcionário
dinamarquês que participou de uma das apresentações do Grupo Stavanger:
"Mas o que fizemos?”.
Um dos assuntos que preocupam os especialistas em ensino é o
efeito que essa nova maneira de ler pode ter nas universidades. Uma pesquisa
realizada por Baron e Mangen com professores universitários dos Estados Unidos
e da Noruega, que será divulgada no próximo ano, revelou que 40% dos 150
entrevistados pedem aos alunos menos leituras que antes e um terço deles
respondeu que fazia isso porque diretamente não liam o que lhes pediam que
lessem. No total, 81% afirmaram que em sua opinião a tecnologia digital está
levando os alunos a leituras mais superficiais.
Distintos graus de interesse na Europa
Antes de decretar o estado de alarme, Salmerón preparava um
estudo com cerca de 100 estudantes universitários para detectar, por meio de um
eletroencefalograma, o nível de atenção durante a leitura em formato impresso e
digital (o financiamento era do BBVA). Atualmente, ele está computando os
resultados de uma pesquisa com 4.000 espanhóis sobre as mudanças nos hábitos de
leitura durante o confinamento. O professor acredita que, embora o aumento da
leitura digital ajude a se chegar a alunos que, de outra forma, não teriam
acesso às leituras em papel, é urgente encontrar soluções para limitar os
efeitos negativos que o formato digital tem na compreensão da leitura. Ele vê
um contraste importante no interesse por essa questão em relação ao norte da
Europa. Diz que, para fazer um estudo sobre o benefício da leitura nas telas,
encontra inúmeros candidatos. Por outro lado, para estudar seu lado negativo, é
difícil encontrar participantes e patrocinadores. Cita André
Schueller-Zwierlein, responsável pela biblioteca da Universidade de Regensburg
(Alemanha), por seu esforço na promoção da leitura profunda. Schueller-Zwierlein
considera que as bibliotecas têm a responsabilidade de criar salas diferentes
para diferentes tipos de leitura (em sua biblioteca há 13 salas diferentes) e
promover o ensino das habilidades de leitura.
Há pouco mais de um ano, o Grupo Stavanger divulgou uma
declaração resumindo os resultados obtidos pelos pesquisadores participantes.
Um dos responsáveis pela redação, Paul van den Broek, especialista holandês e
membro do grupo de profissionais que prepara o relatório PISA, destaca que não
se opõe à leitura digital, mas ressalta que cada formato tem um público para o
qual é adequado e que o assunto precisa ser aprofundado. A declaração defende a
relevância do texto impresso para a leitura de textos longos, especialmente
quando se trata de compreender em profundidade e reter informações.
Dentre as recomendações incluídas, três se destacam: 1)
ampliar a pesquisa sobre as condições em que o aprendizado e a compreensão em
textos impressos e digitais aumentam ou diminuem, 2) o ensino aos estudantes de
estratégias de domínio da leitura em profundidade no ambiente digital e que as
instituições educacionais motivem os alunos a ler livros impressos em sua grade
curricular e 3) que os professores estejam cientes de que intercambiar o
aprendido mediante papel e lápis não é indiferente à mudança para o digital.
Ler nem sempre é divertido. Implica esforço, diz Anna
Mangen. “Devemos pedir evidências de que a leitura digital melhora a leitura”,
diz a especialista norueguesa, que enfatiza: “É importante, pois é uma questão
de saúde mental”. Como disse o visionário tecnológico Edward Tenner, seria uma
pena se uma tecnologia tão genial acabasse ameaçando o tipo de intelecto que a
tornou possível.
PARA QUE OU PARA QUEM É MELHOR, ESSA É A PERGUNTA, POR
FACUNDO MANES (NEUROCIENTISTA E DOUTOR POR CAMBRIDGE)
A leitura supõe, em primeira instância, reconhecer o formato
das letras e, com elas, as palavras. Mas também, durante a leitura, percebemos
a totalidade do texto como se fosse uma paisagem. Assim, fazemos uma representação
mental dele, que serve de base para a interpretação das informações que estamos
processando. Na neurociência, não há consenso sobre qual é o formato mais
adequado para a leitura. Muitos estudos mostram as vantagens do papel, enquanto
outros apontam que não há diferença alguma entre os dois formatos ou mostram as
vantagens do formato digital. A pergunta importante não é qual formato é
melhor, mas para quem, para quê, e quando. É o mesmo para um adulto e uma
criança? É melhor para leituras escolares, mas pior para leituras recreativas?
Existem vantagens que justifiquem o uso de um formato específico para textos de
ficção, mas não para os técnicos? Uma das mudanças estruturais que ocorre na
leitura digital é que nela a experiência do limite não se dá de maneira tão
acabada como na leitura no papel: quando lemos na tela vemos apenas uma parte
do livro, podemos avançar ou voltar ao longo do texto, mas essa noção de
finitude não é tão clara. É por isso que a metáfora da "navegação"
usada para se referir à Internet não é aleatória, já que não há caminho
predeterminado e também não se sabe onde está a margem. Um livro tradicional,
por sua vez, oferece ao leitor traços topográficos que lhe permitem se orientar
sem perder de vista o conjunto: a página à esquerda, a página à direita, os
quatro cantos e um texto fluido que não é interrompido por links ou anúncios. A
isto se soma a possibilidade de tocar as páginas com as mãos e deixar um rastro
à medida que se avança na leitura, o que nos propicia um informe sensorial-motor
de quanto lemos e quanto falta. Todos esses elementos fazem com que muitas
pessoas percebam a leitura no papel como algo mais controlável, pois lhes
oferece um mapa mental coerente e sem nenhum obstáculo. Por sua vez, a
orientação espacial tem um impacto na memória: muitas pessoas dizem que é mais
fácil recordar o que leem quando lembram onde as informações estavam situadas.
A interação com o texto é diferente em cada plataforma, já que esta se encontra
relativamente bloqueada (por exemplo, em um formato sem possibilidade de
edição) ou tem uma capacidade de inserção sem marcas de limite entre o alheio e
o próprio (por exemplo, em um texto de processador). Escrever nas margens,
sublinhar, destacar e voltar para trás para reler uma frase é algo mais vinculado
ao livro em papel. Esse senso de apropriação do texto a partir dos traços
originais torna o livro um pouco mais próximo. Embora talvez seja pelo fato de
a pessoa ter sempre lido nesse formato. É importante entender que a compreensão
da leitura é um processo posterior à decodificação: primeiro se lê e depois se
compreende o que é lido. Sabemos que, para um leitor, ler em uma tela não é o
mesmo que ler um livro. Faltam mais pesquisas que avaliem o efeito do uso da
tecnologia no funcionamento cognitivo a longo prazo. Enquanto isso, o segredo
estaria em usar a tecnologia de maneira equilibrada e saudável.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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