Publicado originalmente no site OBVIOUS
A semântica do tesão: A Lolita de Nabokov e o imaginário
masculino
Publicado em literatura, por Dante Donatelli
A Lolita de Nabokov e a genialidade criadora
Vladmir Nabokov (1899 – 1977) um dos grandes, senão o maior,
escritores do século XX legou a nós a obra prima do desejo, confissão mais
contundente de que homens maduros desejam mulheres mais jovens, e que elas, em
fim de contas, também os desejam, mesmo que em meio a estultice e o açodamento
do querer mais que bem querer.
Amar uma menina adolescente, para um homem de meia idade
como o Humbert, de Nabokov, é na verdade como um libelo de libertação de tudo
que possa haver de convencional e estabelecido para se dar vazão ao mais
elementar dos instintos da condição humana, o desejo.
A beleza e perfeição da obra não estão somente no encontro
entre um enredo perfeito e uma criatividade prodigiosa nas mãos de um gênio da
palavra, é mais que isso, é a exposição das tensões típicas, e muitas não
confessadas de um homem maduro. Dentre as muitas virtudes da obra, destaco
incialmente seu salto para fora da teia conservadora e atrasada que permeava a
sociedade norte-americana, a claustrofóbica condição de cidadão “visitante”,
exilado, em um meio tomado por forte caráter moralista e religioso, no qual a
castração e a sublimação eram parte da vida de todos. Nos anos 1950 o
Macarthismo perseguia e desempregava artistas, jornalistas e críticos com
extrema facilidade. E mesmo Hollywood era espezinhada há décadas por um rígido
código de conduto moral, no qual até os casais apareciam dormindo em camas
separadas e os beijos controlados. Não será por menos que Nabokov preferiu,
quando pode viver e morrer na Suíça.
Quando Nabokov escreve as memórias de seu personagem ele põe
à mostra as evidências da modernidade já depurada pelo freudismo e a liberação
total do sentimento de culpa, impingindo pelos séculos de catequização cristã e
castração dos instintos mais humanos. O texto é ao mesmo tempo memória e fluxo
de consciência de um homem em vias de morrer, na qual a tradição literária
russa e as experiências de construção textual de Joyce e mesmo Zola aparecem na
obra prima.
Humbert tem tesão por Lolita, tesão desmedido, tesão como
todos, ao menos os mais normais, já sentiram por alguém um dia. Lo-li-ta,
assim, desta forma se inicia a obra, como quem com sofreguidão fala e ao mesmo
tempo sente, ainda, trazido pela memória bem assentada na razão se confunde com
a lembranças deixadas pelo corpo, elas parecem se unir e em comunhão fazem
Humbert contar sua história em um misto de melancolia e felicidade efusiva, e
tudo que de melhor se possa ter para lembrar, uma pequena deusa de doze anos
predisposta e disposta a ser sua, e somente sua.
A brincadeira de soletrar silabicamente o nome da amada, com
a pertinência de lembrar como se comporta foneticamente a boca, a língua ao
pronunciar seu nome, denota toda intensidade e prazer que teceu o amor e o
tesão de Humbert e Lolita. É possível imaginar a boca na boca, a língua com a
língua, as mãos em contornos leves em devaneio e estupor pelo corpo sensível,
jovial e teso de Lolita, se sente a ereção contida pelas mãos quase infantis em
desalinho, as mãos são de uma Lolita e corpo parece padecer ao avivar memórias
de tanta felicidade vividas e sentidas.
A maravilha do livro é que nas suas mais de trezentas
páginas não há uma descrição objetiva e direta de qualquer ato, mas, estão
todos lá narrados, revelados em minúcias e com precisão tal que o leitor se
arrepia e se deixa tomar pela sensação de desejo e prazer de Humbert e Lolita,
sim, a doce e sensual Lolita se deleita com seu amor da mesma forma que o
castiga e envolve nos seus jogos, marchas e contramarchas típicas das relações
amorosas e sexuais.
Em outro livro estupendo Fala, Memória (Alfaguara, 2014)
onde Nabokov expõe as suas memórias até a fuga, dele e de toda sua família da
Rússia da Revolução Soviética, nele a certa altura ele narra a sua primeira
experiência sexual, ela se dá com uma adolescente um pouco mais jovem que ele,
mas é tudo tão delicado, sensível, tocante como em Lolita, está tudo lá e não
há nada além de beleza e suavidade. A semântica do tesão. O personagem Humbert
não é o homem Nabokov, mas o homem “empresta” ao personagem a destreza sublime
da palavra como meio de chegar a verdade e a exposição honesta de “tudo que
Humbert sentiu e, ainda sente”, da mesma forma que o homem sentiu e conosco
compartilhou em Fala, Memória.
Há em Lolita um amor pungente, desencarnado de convenções e
clichês, tão presentes no senso comum e nas artes menores que abundam na
modernidade, é a declaração ao amor e não de amor, que se deixe claro, Humbert
ama amar porque ele lhe traz um tesão e um desejo de viver como nunca antes
sentira, é um amar maduro em vivido em meio a contradição da imaturidade
condenada pela sociedade e pelos valores culturais, mas é amor, poucos podem e
sabem amar assim, em quase desamor por si, diria que Nabokov troca o fardo da
existência enfadonha por um sentimento e sensações legitimadoras desta vida
deprimente e vazia imposta a nós.
O prazer da obra, se contrasta com a anacrônica constatação
das limitações impostas pelas regras e normatizações sociais, pois a percepção
semântica do tesão por uma lolita, (sinônimo hoje de adolescente sensual) é
vedada a qualquer homem, ao menos neste mundo ocidental de cultura
judaico-cristã, o peso do texto, entre outras coisas, é perpetrar no leitor um
outro olhar sobre as lolitas a nossa volta. E neste momento a solidão leitora
se amalgama ao olhar silencioso, quase envergonhado, se adentra a realidade e
enleva o leitor a condição de executor fantasioso de sua própria obra.
É inevitável não buscarmos as lolitas ou Lolita e traze-las
ao nosso imaginário criador e criativo. Ler Nabokov, longe de nos fazer sentir
culpados ou indispostos com a nossa imaginação, somos compelidos a dividir a
dor da narrativa e seu desfecho, mas também, a enorme inveja de Humbert. Ele
pôde fazer e fez. Será que eu também poderia? Não pode, e nos frustra saber a
verdade.
Ler Lolita é um desafio e um prazer, palavras, palavras,
verbos, adjetivos e substantivos se avolumam em uma prosa na qual o leitor,
cúmplice de Humbert, suponho que fosse este um dos desejos de Nabokov ao
escrever o livro, transformar os homens em cumplices de seu personagem, nos
fazendo solidário, ao menos com seu desejo irrefreável e amoroso. As sentenças
que inventam e criam a obra, nos dispõe a um patamar no imaginário no qual a
maioria de nós não se permitiu chegar, mas com Lolita chegamos, com a tranquilidade
plácida de um senhor de meia idade cônscio, sabedor, de tudo que ainda não
fizemos, mas que ainda podemos fazer. Ao menos no imaginário.



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