Leonardo DiCaprio, Brad Pitt e Quentin Tarantino,
numa foto de divulgação de ‘Era Uma Vez em... Hollywood’.
Sharon Tate, em seu apartamento de Londres em outubro de 1965.
Margot Robbie, caraterizada como Sharon Tate no filme.
Publicado originalmente do site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 11 de agosto de 2019
Quentin Tarantino: “Já não é fácil ser um provocador”
O cineasta estreia ‘Era Uma Vez em... Hollywood’, um canto
de amor ao cinema e à cidade de sua infância, Los Angeles, que perdeu a
inocência com o assassinato de Sharon Tate
Por Rocío Ayuso
Não surpreende que Quentin Tarantino tenha encontrado sua
inspiração para Era Uma Vez em... Hollywood no cinema. Na cabeça de um cinéfilo
como ele, ressoam as palavras de John Milius em Roy Bean: O Homem da Lei. “As
coisas não são como foram, e sim como deveriam ter sido”, recorda o diretor, às
gargalhadas. Seu nono — e, como não deixa de lembrar, penúltimo antes de se
aposentar — filme é uma visão muito pessoal da Los Angeles que ele conheceu na
infância, uma Hollywood onde ainda não existiam barreiras entre estrelas e
espectadores, na qual aterrissava uma nova fornada de criadores — liderados
naquele momento por Francis Ford Coppola, Arthur Penn e Mike Nichols —, um
paraíso de liberdade que desmoronou em 9 de agosto de 1969 com o selvagem
assassinato de Sharon Tate e seus amigos por parte de La Familia, a seita de
Charles Manson. Meio século se passou desde aquele crime, com o qual Tarantino
também joga em seu filme — que homenageia Tate através do belo retrato, repleto
de inocência e felicidade, que Margot Robbie realiza com sua interpretação.
Assim, esse sopro de nostalgia não responde tanto à
realidade, mas às recordações de Tarantino que, embora nascido em 1963 no
Tennessee, mora na cidade dos sonhos desde os três anos. “Era Uma Vez em...
Hollywood é minha espécie de Roma [filme de Alfonso Cuarón]. Um momento
descrito exatamente como ficou na minha memória”, confessa, deleitando-se
nessas lembranças. A rede KHJ no rádio, os passeios por Los Angeles num Karmann
Ghia contemplando do carro as marquises dos teatros, os anúncios fluorescentes
e a paisagem de bairros como Cielo Drive, nos quais moravam as estrelas da
época. Lugares que alimentaram essa fábula numa pessoa que desde criança
absorve os detalhes de tudo o que a rodeia. “Porque para mim os detalhes são muito
importantes”, adverte.
Conversar com Tarantino sobre o filme, que estreia no Brasil
em 15 de agosto, é falar com uma enciclopédia de cinema. Dos filmes de Elke
Sommer (Deadlier Than the Male é o primeiro que lembra ter visto numa sala de
exibição) à obra do realizador filipino Cirio H. Santiago, do qual possui uma
extensa coleção de DVDs, passando pela admiração que sente por Chicho Ibáñez
Serrador. Por isso, mais do que com anotações, Tarantino alimentou suas
estrelas à base de filmes. Mostrou Billy Jack (1971) a Brad Pitt para encontrar
o personagem de Cliff Booth, um dublê de ação que conheceu melhores tempos.
“Com Leo [DiCaprio] foi uma negociação mais longa porque ele interpreta quase
três personagens diferentes. Temos Rick Dalton — figura vagamente inspirada em
Burt Reynolds, confessou em outra ocasião —, mas também Caleb, o personagem que
interpreta no episódio-piloto de Lancet, e os outros quatro ou cinco papéis em
que o vemos em diversos filmes. Mostrei a ele Edd Byrnes, que fez o papel de Kookie
em 77 Sunset Trip. E também Ty Harden e Ralph Meeker, um dos meus atores
favoritos. E Pete Duel. Foi muito divertido porque Brad e eu temos a mesma
idade, mas Leo não os conhecia e pude ver como ficou intrigado”, saboreia sua
subversão. Não é preciso que seus espectadores saibam disso tudo. Que conheçam
Steve McQueen, a seita de Charles Manson ou diferenciem os detalhes já
desaparecidos de uma cidade sempre mutante. Tarantino tampouco sabe de tudo
isso.
Por exemplo, a música de Los Bravos que ele usa no filme lhe
era completamente alheia, mesmo que descreva sua coleção de discos como uma
miniloja sem seção de salsa. “Bring A Little Lovin’ foi uma das maiores
descobertas da minha carreira. Quando a escutei, achei incrível. E quando a
ouvi pela segunda vez, soube que a incluiria no filme”, diz. Também pensou em
rodar a parte dedicada ao spaghetti western em Almería (Espanha), cidade que
sempre quis conhecer para seguir os passos de outro de seus ídolos, Sergio
Leone. No final, ficou em Los Angeles para filmar em restaurantes como Musso
& Frank, El Coyote — que não teve nem que recordar — e Casa Vega, onde
celebraram sua aparição em Era Uma Vez em... Hollywood com uma margarita que
leva o seu nome: The Tarantino.
Agora que anuncia que só lhe resta mais um filme, para o
realizador a maior conquista de sua carreira foi a Palma de Ouro que recebeu em
Cannes há 25 anos com Pulp Fiction: Tempo de Violência. “Sei que é só um
prêmio. Mas fazer parte da lista de diretores ganhadores em Cannes é um
reconhecimento maior do que... estar na lista dos que nunca conseguiram a
Palma”, diverte-se.
Tarantino também tem dois Oscars como roteirista de Pulp
Fiction e Bastardos Inglórios. Agora, Era Uma Vez em... Hollywood poderia lhe
render mais estatuetas. Mas nem tudo são elogios. O filme também tem seus
críticos, que, como a The New Yorker, censuram a glorificação machista e
racista de anos passados. E também o Los Angeles Times, descontente com sua
excessiva nostalgia. “Já não sou nem jovem nem estou irritado com o mundo”,
afirma. Em maio, em Cannes, começou a explicar que sua vida mudou — ele
inclusive abandonou o costume de ver dois ou três filmes por dia — desde que se
casou com a cantora israelense Daniella Pick. “Já não é fácil ser um
provocador. Você tem que pagar por isso.”
No início da carreira, o cineasta foi um revulsivo, alguém
que desde seu segundo filme, Cães de Aluguel (1992) — do primeiro My Best
Friend's Birthday (1987) só podem ser vistos alguns fragmentos nos porões do
YouTube — se transformou na voz de toda uma geração de cinéfilos nascidos no
calor do VHS. O próprio Tarantino alimentou sua cultura cinematográfica graças
ao seu trabalho num videoclube, o Video Archives, em Manhattan Beach
(Califórnia). Seu estilo, que deglute referências e gêneros de todo tipo, criou
uma onda de seguidores que não chegaram a ofuscá-lo. E o cineasta já avisava
havia tempo: não se imaginava aos 60 anos em locações exteriores. Poderia
continuar criando, mas como roteirista ou autor de romances.
Tarantino agora se aprofunda nessa confissão. “É claro que
penso mais nas coisas. Mas tampouco vou assumir os valores que a sociedade
atual nos impõe. Você pode rechaçar o que faço ou talvez goste, tudo bem, mas o
que não penso é mudar minha obra para me adequar à atual correção política”,
afirma, com um silêncio final. “E isso é certo”, acrescenta, lendo seu próprio
silêncio. “É certo que disse que me aposentaria ao filmar meu décimo filme, e
mantenho o que disse. Sinto que fiz o trabalho que queria fazer. Era Uma Vez
em... Hollywood é, de algum modo, a soma da minha carreira. Não o havia
planejado assim, embora tenha descoberto que há um pouquinho de todos os meus
filmes nele. De modo que chegou o momento de guardar os cavalos no curral.”
OS ACENOS DE QUENTIN TARANTINO À ESPANHA
Cartaz de 'Garringo', filme de Rafael Alecrim Marchent de
1969.
Por Gregorio Belinchón
Que Quentin Tarantino inclua num de seus filmes uma canção
de Los Bravos – escutamos Bring a Little Lovin' em Era Uma Vez em... Hollywood
– não surpreende seus seguidores. Mas que um filme de Hollywood sobre Hollywood
remeta ao nome do madrilenho Rafael Romero Marchent, artesão do spaghettii
western dos anos sessenta e setenta, diretor de um dos melhores filmes do
emblemático lutador mexicano Santo, Santo Contra El Dr. Muerte (1973), e
realizador de séries da TV como Curro Jiménez, isso já é coisa de ultracinefilia
galopante. Num dado momento, Tarantino envia a Almería o seu protagonista, Rick
Dalton (Leonardo DiCaprio), para rodar spaghetti westerns (como Clint
Eastwood?) e ali colabora com o italiano Sergio Corbucci — nome fundamental,
juntamente com seu admirado Sergio Leone, no coração do cineasta
norte-americano — e com Romero Marchent. Nesse instante, Tarantino exprime sua
coleção de cartazes e coloca seu protagonista em alguns filmes da época,
brincando com os títulos deles. Naqueles anos, Romero Marchent estava em plena
produção e forjou produções como ¿Quién Grita Venganza? (1968), Garringo (1969)
e El Zorro Justiciero (1969). Em Garringo, o personagem de DiCaprio poderia ter
substituído Anthony Steffen como o tenente Garringo, que sai à caça de um
fora-da-lei que se dedica a matar soldados.
Em junho de 2004, quando o cineasta visitou Madri para
promover Kill Bill: Volume 2, deu uma escapada do hotel onde atendia à imprensa
para fuxicar entre os incunábulos da livraria Ocho y Medio. Ali, não só quis
adquirir cartazes dos dois filmes de Chicho Ibáñez Serrador (La Residencia e
¿Quién Puede Matar a Um Niño?), mas também perguntou por outros desenhados pelo
ilustrador valenciano José Peris Arago, mais conhecido como Jano, uma potência
artística no mundo dos cartazes feitos à mão e dos usados pelo cinema.
Certamente, devemos prestar atenção aos cartazes que aparecem nas decorações
nessa ocasião, porque também há surpresas. Vários filmes de Tarantino escondem
acenos à Espanha. No final de Jackie Brown (1997), a protagonista conta ao
personagem encarnado por Robert Foster sua intenção de se mudar à Espanha. Ele
lhe pergunta se irá a Madri ou Barcelona e explica que no país não se janta
antes da meia-noite. Em Kill Bill: Volume 1 (2003), um de seus capítulos usa o
nome de La Novia Ensangrentada, de Vicente Aranda. No Volume 2 (2004),
escutamos Tu Mirá, de Lole e Manuel. Tanto em À Prova de Morte como em Os Oito
Odiados já aparece a referência a Romero Marchent: no primeiro, vemos o cartaz
de El Límite del Amor (1976); e no segundo, a honra vai para seu irmão, Joaquín
Romero Marchent: seu eurowestern Condenado a Vivir foi uma influência clara na
trama do filme de Tarantino.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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